E no esporte, como isto funciona? Da mesma forma, com certeza. Exemplos não faltam principalmente entre os atletas vitoriosos negros norte-americanos, desde Jesse Owens até Michael Jordan. De Garrincha e Robinho muitos vitoriosos de nosso esporte bretão carregam um pouco. Dos fundistas africanos nem se fala. Enfim, não estou batendo em ferro frio, principalmente se me lançar à comparação entre dois gigantes do esporte brasileiro. Refiro-me a Sócrates, o melhor que vi jogar – tanto com a camisa do meu Corinthians, como entre os que vi em ação no Brasil – quanto Gustavo Kuerten, o maior tenista brasileiro de todos os tempos.

Na verdade não faz muito tempo que me pego nesta comparação. Mais precisamente desde a primeira vez que vi Gustavo Kuerten em ação nas finais do torneio de Roland Garros em 1997, momento aquele em que ele despontava para o Brasil e o mundo. Independente de minha vibração com cada vitória sua, ficava imaginando como um rapaz magro, nada musculoso e com 1,90 cm. de altura conseguia desferir golpes tão fortes, contundentes e cirúrgicos. Sim, é de analisar, pois ele não tem nada a ver com o biotipo de gente como Agassi, Sampras e outros que ele teve de derrotar até se tornar o número 1 do mundo em 2000. DERROTOU TODOS, diga-se de passagem, mesmo com seu tipo desengonçado de “manézinho da ilha”. Foi o melhor de seu tempo, independente das opiniões de “analistas” europeus e norte-americanos.

E Sócrates, o que falar de um jogador que como Guga era alto (1,92 cm.) e magro numa época em que o futebol já era mais força que técnica e onde Pelé só foi o “atleta do século” também pelo fato de em 1972 ele fazer 100 metros rasos em pouco mais de 10 segundos? Sócrates não jogou num Santos onde além de Pelé havia toda uma plêiade dos melhores de seu tempo para lhe servir, nem um Flamengo onde Zico tinha a companhia de jogadores do mais alto gabarito. Sócrates jogou num Corinthians limitado e muito aquém de um Internacional de Porto Alegre campeoníssimo na década de 1970 e de um Flamengo que ganhou tudo. Mesmo assim, levou – muitas vezes – ampla vantagem sobre beques do porte de Luís Pereira, Oscar e Darío Pereyra. Mais: foi o capitão da inesquecível seleção de 1982. Não foi um craque criado à base de vitaminas e acompanhamento diverso como Zico e Ronaldo e não abria mão de sua cerveja.

Foi pura inspiração, como Guga. A meu ver, numa análise que nos mostrasse alguma variável em matéria de QI para o futebol, Sócrates talvez perderia somente para Pelé ou mesmo Maradona. Sócrates ou Zico? Como jogador completo ficaria com Zico, como inteligência e visão de conjunto o cara é o Sócrates. No final escalaria os dois. A mesma análise vale para comparações entre Guga e Pete Sampras, Andre Agassi ou mesmo contra Roger Federer. Não estou julgando estilos de jogo, nem tampouco em que tipo de quadra praticavam seu melhor tênis. Estou falando em raciocínio, inteligência. Enfim, de genialidade. Não estou falando de Beethoven e sim de Mozart. Nem de Celso Furtado e sim de Ignácio Rangel. Para bom entendedor, algumas palavras bastam.

O final da carreira de Sócrates e Guga acirram suas semelhanças. Ambos lutando contra o corpo, apesar de suas mentes. Como explicar estes dois orgulhos da nação? Tratam-se de dois gênios ímpares, cujos corpos passaram a não mais permitir o que a abstração de suas geniais mentes elaboravam. O correr da vida tratou de cimentar suas semelhanças: não se vê nem Sócrates, nem Guga saltando na ponte aérea Rio-São Paulo atrás de reputação e carinho perdido em algum momento de suas vidas. Sócrates continua torcendo por seu Corinthians em sua Ribeirão Preto, tomando seu chope e escrevendo suas cortantes linhas contra as mazelas do sistema capitalista. Guga é uma humildade só em sua Florianópolis, torcendo por seu amado e querido Avaí e com certeza tomando suas biritas. Ambos, muito diferentes dos picaretas, falsos, covardes e mal-carateres – de esquerda e direita, com partido ou sem partido – que nos cercam diariamente.

São grandes gênios e grandes seres-humanos!!!

Assim como Sancho Paça e Dom Quixote de Cervantes: tão distantes, porém tão iguais!!!

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Elias Jabbour é geógrafo e pesquisador da Fundação Maurício Grabois.