Um memorial para a anistia política no Brasil
O projeto do memorial nasce pelas mãos do Ministro da Justiça Tarso Genro em 2008. Os seus principais objetivos são a preservação e a difusão da memória política daqueles que foram perseguidos e assassinados durante a ditadura militar brasileira. O local escolhido para montagem deste importante memorial foi a cidade de Belo Horizonte.
O ministério estabeleceu termos de cooperação com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), prefeitura de Belo Horizonte e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A universidade, entre outras coisas, cedeu o prédio do “coléginho” da antiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich). Este foi um espaço da resistência dos estudantes mineiros à ditadura militar. Ele será adaptado para abrigar uma exposição de longa duração. Um outro prédio será construído para abrigar o arquivo da Comissão de Anistia, no qual se incluem as dezenas de milhares dos processos relativos ao julgamento dos anistiados políticos.
No início deste ano foi constituído, no âmbito da Comissão de Anistia, o Comitê Curador da exposição permanente do Memorial composto por Alípio Freire, Augusto Buonicore, Heloísa Starling e Valter Pomar. Este comitê se reuniu pela primeira vez em Uberlândia (MG) no dia 5 de novembro. Além dos curadores participaram do encontro o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, os conselheiros Egmar de Oliveira, Edson Pistori e Roberta Baggio e a vice-reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais, Rocksane Norton.
O Memorial será um espaço público dedicado à memória das vitimas da repressão, pois a reparação devida pelo Estado brasileiro que violou os direitos dessas pessoas não deve se restringir ao simples ressarcimento monetário – seguido do esquecimento. É preciso que seja realizada também uma reparação moral e política, com a reafirmação do direito inalienável de um povo poder resistir a governos despóticos.
Esta iniciativa do governo Lula se insere no interior de um movimento internacional contra o esquecimento dos crimes cometidos contra a humanidade, para que essas atrocidades não se repitam, ao exemplo do que foi feito na Alemanha pós-nazismo, na África do Sul pós-apartheid, e nos Estados Unidos após as leis dos direitos civis. Isto também está sendo feito na Argentina e Chile, países que construíram memoriais dedicados a relembrar seus mortos e denunciar as violações cometidas pelas ditaduras militares nestes países. Para o atual direito internacional, nascido da derrota do nazi-fascismo, a anistia não pode significar o esquecimento dos crimes cometidos contra a humanidade. Estes devem ser denunciados e exemplarmente punidos.
Caravanas da Anistia: semeando a liberdade
As caravanas de Anistia foram uma das iniciativas mais importantes tomadas pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Refletiram uma mudança substancial na lógica dos processos de reparação política iniciado no último ano do governo FHC.
Desde a criação das caravanas, a Comissão de Anistia passou a realizar seus julgamentos em grandes atividades públicas nos próprios locais onde os direitos daqueles cidadãos foram desrespeitados. Garantindo que aquele ato fosse além da simples reparação econômica. Assim, colaboraram para difundir uma passagem pouco conhecida da história política brasileira e ampliaram a possibilidade de acesso dos requerentes e da população às sessões de julgamento. Uma forma de democratizar as informações e o acesso à justiça.
O balanço é bastante positivo. Foram 47 caravanas que passaram por 19 estados brasileiros – onde se concentram o maior número de processos. Mais de mil processos foram relatados e calcula-se que mais de 15 mil pessoas participaram dessas atividades públicas. As caravanas foram realizadas em parceria com várias entidades da sociedade civil, entre elas a UNE, OAB, ABI, CNBB.
Desde 2001 o total de pedidos de indenização chega a 66 mil, tendo sido julgados aproximadamente de 55 mil casos. Destes 14 mil tiveram direito a algum tipo de reparação econômica, outros 22,5 mil receberam apenas o pedido oficial de desculpas do Estado brasileiro, embora muitos tivessem restituídos o direito de retornar ao curso superior do qual tinham sido expulsos ou inclusão do nome do pai ou mãe na certidão de nascimento dos filhos. Para outros 18 mil os pedidos de anistia e de reparação foram negados, por falta de provas. Atualmente, ainda restam menos de 10 mil processos a serem analisados.
Os processos, mesmo os indeferidos, formam um valioso acervo de milhões de páginas. Cada um deles traz um pedaço da história de resistência do povo brasileiro e a vileza de seus algozes. Esta documentação representa o ponto de vista das vítimas e resistentes ao regime militar. Os arquivos da repressão também trazem informações através dos depoimentos de presos seviciados, mas elas são contaminadas pelo ambiente em que foram colhidas. Sabemos que os presos muitas vezes, para ludibriar a polícia, davam informações falsas. Outras vezes eram forçados, sob tortura, a confessar coisas que não fizeram.
A Anistia na mira da direita
Este rico e educativo processo de anistia e de ressarcimento dos perseguidos políticos está sob ataque cerrado dos setores conservadores da sociedade brasileira – uma parte deles cúmplice do golpe militar e dos crimes cometidos durante a ditadura. Entre os inimigos da reparação material e moral se encontram os grandes meios de comunicação, os parlamentares dos partidos de direita, a cúpula das Forças Armadas e ramos do poder judiciário e executivo.
Exemplos disso são: os termos criados e reproduzidos diariamente pela imprensa conservadora, como bolsa-ditadura e dita-branda; a decisão de um juiz do Rio de Janeiro que – suscitado por personalidades vinculadas a direita brasileira – suspendeu a anistia dada aos camponeses pobres da região do Araguaia; os ataques sistemáticos realizados pela burocracia do Ministério da Defesa – com a complacência do próprio ministro Jobim – aos direitos dos militares anistiados. A família de Carlos Lamarca teve suspensa sua pensão, aprovada na Comissão de Anistia, por uma decisão judicial a pedido do Clube Militar.
Na última campanha eleitoral vimos forças políticas reacionárias – embaladas pela grande imprensa – voltarem utilizar termo como terroristas para classificar militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura militar. Isso constitui um verdadeiro retrocesso intelectual e moral. Esquecem – ou finge esquecer – que as próprias constituições nascidas das grandes revoluções democráticas – ainda que burguesas – garantem aos povos o direito de reagir contra os regimes tirânicos. Por esse princípio, pessoas como Lamarca, Marighella, Grabois, Helenira Rezende, Iara Iavelberg, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira podem ser considerados heróis e heroínas do povo brasileiro.