Este ano, temas como o aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e o consumo de drogas assumiram posição central, especialmente no período entre o final do primeiro turno e o início do segundo. Ao longo dessas semanas, parecia que a eleição tratava fundamentalmente deles e que todos os demais eram secundários.

O pano de fundo para o destaque que esses temas receberam talvez tenha sido o quase consenso que existia na opinião pública sobre a continuidade das políticas do governo Lula. Na medida em que a vasta maioria dos eleitores a desejavam, nem Serra, nem Marina (orientados por seus marqueteiros e pesquisadores) quiseram discuti-la, preferindo apresentar-se como opções a Dilma apenas no plano pessoal.

Era como se dissessem que a escolha deveria basear-se em critérios extra-políticos: a biografia de cada um, sua subjetividade e as diferenças entre eles em questões morais. Não estavam em contraste visões de Brasil e modos de tratar seus problemas, mas individualidades e assuntos da vida privada.

Bem que a campanha Dilma tentou manter a comparação entre os candidatos no plano político, insistindo na contraposição entre os governos FHC e Lula, e trazendo de volta a discussão sobre as privatizações. Mas a tarefa não era fácil, pois Serra não media esforços para se associar a Lula (chegando a se apresentar como o Zé para continuar o trabalho do Silva) e Marina até se parecia ao presidente no simbolismo. Ou seja, era difícil evitar que uma pauta não-política vicejasse.

É claro que isso não passou despercebido pelos estrategistas tucanos. Conscientes de que a eleição se encaminhava para a vitória de Dilma no dia 3 de outubro, moveram todos seus recursos para fazer com que essa pauta se impusesse, pelo menos junto a um segmento suficiente do eleitorado para levar a eleição para o segundo turno. Com sucesso, como vimos.

O resultado é que passamos cerca de três semanas dominadas pelas discussões sobre aborto e casamento homossexual, sem esquecer a liberação do consumo de drogas. Nelas, Dilma e Serra frequentaram todas as missas, cultos e serviços religiosos que sua agenda permitia (sem esquecer a inacreditável procissão de Mónica Serra ao Chile), assumiram compromissos e deram declarações contrárias a qualquer avanço na legislação relativa a esses assuntos. Um para ganhar, ela para não perder o voto do eleitor preocupado com eles.

A mais recente pesquisa nacional da Vox Populi ajuda a compreender o modo como a opinião pública reage a tais temas e revela um aspecto pouco óbvio de seu impacto eleitoral. Ela foi feita entre os dias 19 e 23 de novembro.

A primeira coisa que chama a atenção são as proporções que apóiam as restrições existentes: 82% dos entrevistados são de opinião que o aborto não deve deixar de ser considerado crime; 72% acham que o governo não deve propor mudanças na legislação que o descriminalizem; 60% entendem que a união civil de pessoas do mesmo sexo não deve ser permitida; 72% acham que o governo não deve propor leis que descriminalizem o consumo de drogas.

As variações socioeconômicas e regionais nas respostas são pouco relevantes, embora aconteçam nas direções esperadas. Pessoas de escolaridade mais alta, com maior renda, mais jovens, moradores de áreas urbanas e de estados mais desenvolvidos, tendem a ser menos hostis a mudanças, mas nunca em proporções elevadas (a aceitação de que o aborto não seja considerado crime é de 10% entre pessoas de baixa ou nenhuma escolaridade, mas vai a apenas 20% nas de alta escolaridade). Ou seja, se quisermos falar em conservadorismo, trata-se de um fenômeno majoritário na sociedade inteira.

Outro resultado interessante é que não há diferenças nos padrões de resposta dos eleitores de Dilma e Serra. Contrariando uma expectativa que se difundiu quando a campanha do PSDB pisou no acelerador dessa temática, a “taxa de conservadorismo” do voto Serra foi idêntica à de Dilma: 82% dos eleitores da petista e 82% do tucano, por exemplo, são favoráveis a que o aborto continue a ser considerado crime.

O mesmo acontece no tocante à união civil homossexual (60% dos eleitores de Dilma e 62% de Serra acham que não deve ser permitida) e à revisão da legislação que proíbe o consumo de drogas (apenas 11% de Dilma e 12% de Serra acham que deve mudar).

Olhando esses números, vemos que há eleitores do PT conservadores e progressistas nessas questões, assim como do PSDB. Não é com base nelas que se explica a vitória de Dilma ou a derrota de Serra.

* Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi, publicado originalmente no Correio Braziliense