No contexto denominado Dia de Fúria, milhares de egípcios se manifestaram ontem nas principais cidades desse país para exigir a imediata demissão do presidente Hosni Mubarak – a quem encabeça, há três décadas, um regime ditatorial, corrupto e violador dos direitos humanos [NT: Mubarak sucedeu a Anwar Sadat em 1981 quando este foi assassinado] – reivindicando ainda a imediata revogação da Lei de Emergência, vigente desde 1981, que permite prisões arbitrárias e que tem sido usada para reprimir qualquer voz discordante do regime, bem como reclamaram da violência policial, do desemprego, do aumento dos preços e dos salários baixos. O saldo preliminar foi de três mortos: dois manifestantes em Suez (à Noroeste) e um policial no Cairo [NT: hoje, 28 de janeiro, as mortes se elevam para seis e mais de 800 detidos].

Com isso, tem aumentado a velocidade com que se alastra essas manifestações no mundo árabe a partir da revolta na cidade de Túnis, capital da Tunísia desde há 15 dias (às quais provocaram a derrubada de Zine Abdine Ben Ali em 14 de janeiro). Com efeito, ainda que os distúrbios e o descontentamento no Magreb [NT: países árabes que ficam no Norte da África] tenham diminuído, o entorno da explosividade política e social tem contagiado o Egito, país que igual que a Tunísia, presumia gozar de certa estabilidade interna, mas que também vive sob um governo autocrático e repressor, assim como o desespero da população pelos efeitos nefastos da globalização econômica.

Fora esses traços em comum, o caso egípcio reveste-se de particularidades que potencializam seu impacto internacional: a diferença com a Tunísia, que é uma pequena nação do Norte da África, o Egito é o país mais populoso do mundo árabe – com cerca de 80 milhões de habitantes – e que conta com o maior exército entre os países árabes; tem uma posição geográfica estratégica – entre os continentes africano e asiático, entre os mares Vermelho e Mediterrâneo – e tem uma rota chave para as comunicações e provimento energético da Europa: o canal de Suez. Outra diferença substancial é que, enquanto na Tunísia não existe praticamente nenhuma oposição islâmica – que foi duramente reprimida pelo governo de Ben Ali – no contexto das mobilizações no Egito tem sido clara a participação da Irmandade Muçulmana [NT: Grupo existente no Egito desde 1928 e que inspirou o Hamas, Jihad Islâmica e Hezbolláh em outros países árabes], partido ortodoxo sunita que constitui a principal oposição ao regime, considerada a instituição que inspirou o grupo Hamas e que representa, em consequência, um dos principais fatores de preocupação das nações ocidentais.

Mas, o caso mais importante é que, se Ben Ali era considerado um aliado do Ocidente na região, seu governo não teve o peso estratégico para os interesses de Washington e seus aliados, o regime do Egito. De fato, a partir da assinatura dos acordos de Camp David [NT: Assinados na gestão de Anwar Sadat, onde Israel devolve o Sinai ao Egito e em troca, Sadat reconhece o estado de Israel; assinado com o 1º Ministro Menachem Beguin, sob os auspícios do governo Jimmy Carter dos EUA; Beguin e Sadat receberam posteriormente o prêmio Nobel da Paz] – com que se pôs fim ao conflito com Israel – e sob os regimes de Anwar Sadat e do próprio Hosni Mubarak, o Cairo tem sido o segundo maior beneficiário da ajuda externa estadunidense, perdendo apenas para Israel. Estima-se que a cada ano, os Estados Unidos enviem ao Egito pelo menos dois bilhões de dólares anuais em assistência econômica e, sobretudo militar. A posição do Egito como aliado privilegiado dos EUA na região continuou sob a administração de Barak Obama, que inclusive escolheu esse país para fazer o seu célebre pronunciamento, no início de sua administração, acerca do mundo muçulmano, sem levar em conta o regime do Cairo como contrapeso para a desarticulação da unidade que floresceu faz meio século entre os governos árabes e que tem colaborado com Israel no férreo bloqueio que esse país tem feito na martirizada Faixa de Gaza.

Ontem mesmo, a secretária de Estado dos Estados Unidos, Hilary Clinton, deu uma nova mostra da sua dupla moral, característica de Washington, ao afirmar que “nossa impressão é que o governo egípcio é estável”. No entanto, ante as revoltas como as ocorridas na Tunísia e no Egito, a lição inexorável para as diplomacias ocidentais, a estadunidense em primeiro lugar, é que se deve rever a fundo e corrigir a prática diplomática de apoiar regimes tirânicos em troca de alinhamento a seus interesses geopolíticos: assim, essa fórmula imoral resultou conveniente para Washington e seus aliados em algum momento, hoje é claro que é insustentável e contraproducente e que obstaculiza as perspectivas de democratização pacífica não só a região do Magreb e o Norte da África, como em todo o mundo.

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Sociólogo, Arabista e Colaborador do Grabois.org sobre Oriente Médio

Leia no original:

http://www.jornada.unam.mx/2011/01/26/index.php?section=opinion&article=002a1edi