‘Comissão não pode substituir a Justiça’
GENEBRA – O Brasil não pode criar uma comissão de verdade para lidar com o passado da ditadura na esperança de que isso seja um substituto para a Justiça. A avaliação é de Juan Mendéz, relator especial da ONU Contra Tortura. Em entrevista ao Estado, Mendéz admite que existe uma resistência no Brasil em tratar do passado. Mas apela para que o governo não se deixe "chantagear". O relator participa nesta quinta-feira, 7, em Brasília, de evento promovido pelo Ministério da Justiça para falar sobre a criação da Comissão da Verdade, uma das promessas de campanha de Dilma Rousseff.
No Cone Sul, há uma tendência de julgar crimes cometidos na ditadura. O que significa politicamente essa movimentação?
Há uma obrigação judicial muito clara no cenário internacional. Mas também se justifica por razões morais e políticas. No sentido moral, esses crimes são tão graves e tão contrários à noção de humanidade que as sociedades não podem deixá-los na impunidade. Também porque as sociedades devem às vítimas um reconhecimento que só se podem obter por meio do processo e castigo aos responsáveis.
Qual seria a vantagem política em conduzir esses processos?
Para poder sair da memória das ditaduras e construir uma sociedade democrática, há que se restabelecer o estado de direito. E isso não se faz na base do esquecimento, da ignorância e de pretender que não ocorreu nada.
Como se explica que Brasil foi o único que não lidou com seu passado na região?
Na verdade, todos os países da região têm um déficit no que se refere à luta contra impunidade. Mesmo nos países que foram mais longe, como a Argentina e Chile, tudo ocorreu muito lentamente. A situação no Brasil se ressalta porque se fez muito pouco. Se tivesse enfrentado seu passado com honestidade e com franqueza, poderia ser exemplo para o mundo.
O sr. vê alguma chance de o Brasil lidar com seu passado?
A necessidade de Justiça e verdade não desaparece, mesmo depois de todos esses anos. O tema voltou para a agenda agora porque, quanto mais direitos se dá a uma sociedade, mais ela vai exigir saber da verdade e que o legado do passado seja resolvido. Resistências sempre existem e são de grupos com poder. Acredito que alguns setores democráticos se deixam chantagear por esses setores residuais, mas que ainda têm poder. É uma obrigação aos governos democráticos não se deixar chantagear. Se esse processo tivesse ocorrido já há anos no Brasil, as vozes que defendem o indefensável estariam mais quietas.
Faz algum sentido ter uma comissão de verdade mais de 25 anos depois dos crimes?
Essas comissões são sempre importantes. O que me parece ruim é se elas são concebidas como uma alternativa à Justiça. Em muitos países, foi justamente assim que elas foram criadas. Sempre é importante que essas comissões existam. Mas, claro, sempre que elas não signifiquem uma desculpa para que não haja justiça.
Qual seria o impacto político se o Brasil decidisse julgar os crimes?
O Brasil só tem a ganhar. Todas as nossas sociedades só se consolidam como democracias quando honram a Justiça e a verdade. Obviamente que esse não é o único fator que conta na qualidade de uma democracia. Mas seu peso é grande. Como vamos ter instituições legítimas se cortes não tocam de fatos os poderosos? Ninguém aceitaria que as cortes dessem anistia a quem roubou. Então como é que podemos aceitar que deem impunidade àqueles que mataram e torturaram?
Fonte: Estadão.