Lago tinha outros planos e, apesar da pressão contra, ninguém na casa tinha moral para reclamar. O pai e avós, além de tios, eram todos músicos, como Mário que, já aos 15, fez uma marchinha para a namorada, com declaração de amor ditada pela militância política, outra vocação. Dizia: “nosso amor vai melhorar quando vier a Constituição”.

Com esses versos, o adolescente selou o destino definitivo e um elefante branco invadiu a sala de visitas da casa. O pai sentenciou: “Você está treinando para profissão de fome”.

Ainda bem que não foi praga, nem foi de coração, não pegou. Mas dinheiro, a julgar pelo que o Mário personagem público expunha, nunca sobrou. Nem faltou. Em entrevista no programa “Ensaio”, da TV Cultura, Mário se aventurou a fazer uma conta de cabeça.

Complicou-se tanto que ninguém conseguiu sequer ajudá-lo. Explicou que foi reprovado três vezes em matemática e soltou a piada, já que bom humor, sim, esbanjava: “Eu não sei somar, por isso sou pobre, sei menos ainda multiplicar”.

Este é “o” Mário, segundo contam a lenda, a história e seu filho, Antônio Henrique Lago, jornalista, que faz aqui um rápido e delicioso perfil do pai. Antônio Henrique tem o mesmo humor e convicções do pai, além de já ter produzido obras memoráveis no campo da reportagem.
 

Acompanhe a entrevista a seguir:

Vermelho – Ator, produtor, diretor, compositor, radialista, escritor, poeta, autor de teatro, cinema, rádio e TV, frasista (que eu trocaria por “filósofo do cotidiano”), militante sindical, ativista político e boêmio. Está tudo lá, no site oficial do Mário Lago. Entre tantas facetas, uma ou algumas se sobrepunham a outras?
Antônio Henrique Lago – O político sempre. Discutia as questões brasileiras diariamente com a família, amigos, o motorista de táxi, qualquer um que puxasse conversa. A pregação por uma sociedade mais justa e igualitária jamais ficava escondida ou em plano secundário. Papai nunca perdeu uma campanha política. Comunista por formação ideológica, sempre apoiou os candidatos de esquerda e do seu partido.

Mas há também o ator, sempre, porque este foi uma parte importante da vida profissional dele. Dar vida a personagens era parte do “ser Mário Lago”. Fazia laboratório sozinho para enriquecer o papel, discutia com o autor e diretor todas as cenas. Atuar era um exercício de vida!

E o escritor/autor/poeta, igualmente, sempre. Nos intervalos de gravação, nas férias, ele criava sempre um projeto para escrever. Durante as filmagens de O Padre e a Moça, recolheu material para um livro sobre o Chico Nunes das Alagoas, repentista e boêmio. Numas férias, traduziu a peça Fuente Ovejuna, do espanhol Lope de Vega. Do mesmo modo, escreveu uma peça sobre a revolução dos alfaiates – Foru Quatro Tiradentes na Conjuração Baiana — que acabou censurada. Nunca deixou de compor, não havia como conter os versos.

Vermelho – Em casa, quais características pessoais predominantes você enumeraria?
AHL – Conversa franca, sobre qualquer assunto. Respeito às decisões de cada um da casa. Clima muito democrático.

Vermelho – Boêmio em um casamento que durou a vida toda. Como o Mário dividia o tempo entre o amor/família e as paixões, como a arte. Ficava em déficit com um lado ou outro?
AHL – Olha, papai sempre ia para os locais da boemia e levava minha mãe junto, mas eu lembro de ele chegar para uma conversa noturna sobre política, meus estudos – às vezes ele até me ajudava com os trabalhos escolares. Discutíamos minhas decisões pessoais e ele sempre respeitou as minhas escolhas. Ele e mamãe tinham a democracia entranhada no corpo e na mente.

Vermelho – Como era a casa do Mário? Um burburinho de música, amigos, festas? E o silêncio para criar, também habitava esse lar de artista?
AHL – A porta da casa de papai estava sempre aberta. Dolores Duran ia lá mostrar músicas. Carlos Marighela ia lá discutir coisas do PCB. Meus amigos e companheiros de militância política iam lá conversar. Era assim desde que me entendo por gente.

Na hora de criar, papai ia pro quarto, fechava a porta e se transportava para a criação, quer fosse para estudar as falas de um personagem, quer fosse para tocar o projeto de um livro.

Vermelho – Em uma frase, na sua opinião, qual o maior legado do Mário para:

– Você, filho

AHL – A defesa de uma sociedade justa e igualitária com o fim da exploração do homem pelo homem.

– A arte

AHL – Grandes interpretações como a do pescador Santiago, de O Velho e o Mar; e o Atílio da novela Casarão. Os versos de Nada Além, de Aí que saudades da Amélia e Aurora.

– A sociedade

AHL – Um exemplo de coerência política, honestidade de princípios. Tudo parte da luta pela sociedade sem exploração e opressão.

Vermelho – Sem segunda opção, qual música, filme (como ator ou diretor), papel na TV você colocaria como número 1 no ranking das criações do Mário?

AHL – Como música, eu gosto mais, puramente pessoal, do Nada Além. Mas sempre me emocionei muito nos bailes de carnaval ao ouvir o povo cantando Aurora. O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade, como filme. E papel na TV foi o Atilio, do Casarão.

Vermelho – Mário criava compulsiva ou metodicamente? Há ainda muita produção dispersa, inéditos? O que podemos esperar?

AHL – Papai era um criador compulsivo/metódico. Ele não podia ficar parado. Se não estivesse gravando, estava bolando algo e escrevendo.Escrevia, depois lia, corrigia, mudava, lia de novo e assim por diante, até ficar satisfeito.

Vermelho – O Mário era polivalente e multimídia. Como ele se relacionava com as novas tecnologias? Chegou a incorporar essa linguagem internética a seus trabalhos?

AHL – Papai não chegou a usar a tecnologia multimídia moderna. Ele exercia a multimídia pessoalmente. Acho que a formação sem a internet bastou para ele. Além do que ele conviveu muito pouco com a internet.

Vermelho – Qual, na sua opinião, foi a grande realização dele no campo das artes? De qual ou quais obras ele mais se orgulhava?

AHL – Papai achava que cada texto, música e personagem eram um sucesso particular e parte do todo que ele considerava o melhor da sua obra. Ele realmente gostava de tudo que fez.

Vermelho – E na política, qual a grande conquista e a grande frustração na sua vida de lutador?

AHL – Ele tinha muito orgulho de ter participado do comando da greve dos radialistas de 1962, que resultou na regulamentação da profissão. E de ter participado das lutas pela liberdade e ter visto as quedas das ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares. Acho que frustração foi a de ver que o homem ainda vive numa sociedade intrinsecamente injusta e exploradora.

Vermelho – Pacifista e inconformado, por isso mesmo eterno militante, que causa ou causas você acha que ele defenderia hoje?

AHL – Acho que ele continuaria a lutar contra a exploração do homem pelo homem. E, é claro, as causas ambientais também estariam entre as suas preocupações.

Fonte: Redação Vermelho