Os comunistas, contudo, pagaram preço elevado por essas jornadas. Dezenas de seus dirigentes e militantes foram mortos, ou em combate, ou nas torturas, ou friamente assassinados.

Neste 16 de dezembro de 2006, completam-se 30 anos de um crime que se fez contra o Partido, o último grande massacre praticado pela ditadura militar, a Chacina da Lapa. Reverenciando os três camaradas dirigentes que tombaram naquele episódio – Pedro Pomar, Ângelo Arroio e João Batista Franco Drumond – os que subscrevem esse texto, tendo estado na casa da Lapa e presos na mesma oportunidade, relembramos aqui aspectos do acontecido, para honrar os que tombaram e educar as novas gerações de combatentes.

Em 1976 a ditadura caminhava para seus 13 anos. Apresentava sinais de desgaste. Para vencer a chamada “guerrilha urbana”, teve que forjar tiroteios e assassinar jovens rebelados. Para vencer a guerrilha do Araguaia, teve que empreender três anos de lutas, fazer grande deslocamento de tropa, montar três campanhas de aniquilamento e estabelecer férrea censura, para impedir que a notícia da guerrilha fosse ao conhecimento público. E, depois de tudo isso, a Direção do Partido que comandara o Araguaia não fora desarticulada.

Na busca dessa Direção partidária, Carlos Nicolau Danielli, Lincoln Oest, Luis Guilhardini e Luis Bicalho Roque, todos dirigentes, foram presos e mortos na tortura. Mas a tortura, que após 1969 passara a ser aplicada amplamente, passou a ser tão desmascarada, dentro e fora do Brasil, que o regime começou a ficar, nesse terreno, na defensiva.

O novo general-presidente, Ernesto Geisel, disse que haveria “distensão lenta, gradual e segura”. E eis que o jornalista Wladimir Herzog e o dirigente sindical Manoel Fiel Filho são presos. E assassinados. Para não se desmoralizar, Geisel teve que demitir o comandante do Exército localizado em São Paulo e nomear um outro, que chegou dizendo que não haveria torturas sob seu comando. A ditadura já sentia necessidade de se explicar, porque estava moral e politicamente enfraquecida.

Mas sua força repressiva continuava intacta e enfrentava um problema não resolvido – a Direção do partido que comandara o Araguaia continuava articulada, seu dirigente principal, e principal responsável pelo Araguaia, João Amazonas, continuava vivo, e em liberdade. A ditadura considerada isto inaceitável. Concentrou-se, assim, na procura do núcleo de Direção.

Na ocasião a agenda do Partido encontrava-se em mudança, acompanhando a mudança da conjuntura: o enfraquecimento da ditadura e o aumento da resistência democrática.

Em pauta estavam a revisão da experiência do Araguaia, para a retirada dos ensinamentos, e os encaminhamentos ligados às três bandeiras centrais do momento, segundo o pensamento do Partido, a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita, pela revogação dos atos e leis de exceção e pela convocação de uma Constituinte livremente eleita.

Uma reunião do Comitê Central estava prevista e sendo convocada. Por precaução, alguns de seus membros ficariam de fora. Ocorreu um fato imprevisto. Amazonas, que iria participar da reunião, teve que viajar, nas vésperas, ao exterior, juntamente com Renato, por decisão tomada no âmbito da comissão executiva. O conjunto só ficou sabendo dessa viagem quando a reunião foi aberta por Pedro Pomar.

Na Rua Pio XI, na Lapa, em São Paulo, existia uma casa onde se reunia o Comitê Central. O deslocamento dos dirigentes para o local era feito de forma absolutamente sigilosa. Ninguém ficava sabendo para onde ia. Para o lugar desconhecido todos eram levados, de olhos fechados, por um mesmo guia – Elza de Lima Monerat.

A reunião do Comitê Central, antecedida de outra da Comissão Executiva, deu-se entre os dias 14 e 15 de dezembro de 1976. Participaram da reunião Pedro Pomar, Ângelo Arroyo, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Elza Monnerat, Wladimir Pomar, Jover Teles, João Batista Franco Drumond e José Novais. Arroio viera da frente do Araguaia, há pouco tempo.

Como previsto, a reunião procedeu a uma nova rodada de avaliação das lições do Araguaia. Documentos já estavam escritos, pontos de vista diferenciados já vinham aparecendo desde momentos anteriores. O tema foi mais uma vez investigado, pela sua importância, mas, naturalmente sem se pretender chegar a opiniões conclusivas, o que foi esclarecido, desde o início pelo Pomar. Todos falaram.

Destoou a intervenção de Jover Teles, agressiva, exageradamente crítica, com convicções radicalizadas, e achando que já estava na hora de decisões conclusivas. A reunião rechaçou-o. Outros itens da pauta foram tratados normalmente.

Após a reunião, na noite do dia 15, iniciou-se a saída dos participantes do evento. Wladimir Pomar e João B. F. Drumond foram os primeiros a sair, no início da noite. Haroldo Lima e Aldo Arantes foram levados para fora, mais tarde. Drumond, antes de sair, colocara documentos em um pacote de biscoito, fato que auxiliou na caracterização de seu assassinato.

O carro, com Elza como guia, deixou o Wladimir e o Drumond distantes da Lapa, e voltou para apanhar a outra dupla, Haroldo e Aldo. Wladimir e Drumond foram presos em seguida ao desembarque, mas o carro voltara sem se aperceber de nenhuma anormalidade. Haroldo e Aldo saem depois, e, sob aparente tranqüilidade, são deixados no final da Avenida Brigadeiro Luis Antonio, nas proximidades do Ibirapuera.

Aldo é preso pouco depois, na Estação Paraíso do Metrô. Haroldo foi seguido até sua casa, sendo preso no dia seguinte, logo que a deixara, ficando agentes da repressão dentro de sua residência por três dias, com sua companheira e filhas detidas, dizendo que estavam esperando o Haroldo chegar. A família ficou com a impressão que Haroldo, como não chegara, conseguira escapar. As torturas começaram logo após as prisões.

A partir de determinado momento a tortura sobre o Aldo parou e ele foi levado para uma cela algemado. Ali ouviu confusamente uma discussão. O suficiente para perceber que algo de grave havia ocorrido. Mais tarde, já no Presídio Tiradentes, Wladimir relatou ter ouvido que o rapaz que estava com o pacote de biscoitos havia morrido. A versão foi a de que Drumond fora “atropelado”. Muito magro, Drumond morreu na tortura.

No dia seguinte saíram do “aparelho” junto com a Elza e o motorista Joaquim Celso de Lima, José Novais e Jover Teles. Num determinado momento, notaram que estavam sendo seguidos.

Combinaram que o motorista tentaria despistar e quando conseguisse, parava o carro e daria fuga aos dois dirigentes. E assim foi feito. Logo que Jover e Novaes deixaram o carro, a repressão abalroou o automóvel e prendeu Elza e Joaquim.

Investigações partidárias descobriram, depois, que Jover tinha sido o responsável pela queda da Lapa. Preso, antes, no Rio de Janeiro, de fato não tinha como indicar onde seria a reunião próxima do CC, mas assumiu o compromisso de deixar-se seguir, ele que seria levado à reunião do CC, onde estaria, entre outros, João Amazonas, o homem do Araguaia. A não prisão de Jover e Novaes foi uma farsa montada para fazer supor que os dois evadiram-se. Prender Novaes sozinho, despertaria suspeita.

Na manhã do dia 16, numa ação combinada dos I, II e III Exércitos, a repressão partiu para matar quem estivesse na casa da Lapa. Não deu qualquer oportunidade de rendição, a ninguém. Pedro Pomar e Ângelo Arroio não receberam voz de prisão, nem foram advertidos ou chamados a se entregarem. Foram sumariamente fuzilados. Maria Trindade, cozinheira da casa, deitou-se durante o tiroteio e foi presa. A versão voltou à mesma batida mentira: houve um tiroteio e os dois comunistas morreram. Na casa não havia armamento.

Declaração de chefe militar revelou que a repressão se considerava enganada, pois, diferentemente da informação que tinha, Amazonas não estava na casa. O Jover não sabia da viagem do João.

Dos presos, Haroldo, Aldo, Wladimir e Elza foram conduzidos, encapuzados, a um avião que os levou ao Rio de Janeiro, pois fôra o I Exército, ali sediado, que chefiara a operação. Elza entrou no avião repetindo, como um refrão: “covardes, covardes”. Haroldo chamou por Dias, que respondeu. Fomos tomando conhecimento de quem estava preso.

No Rio, no início das torturas, manchetes de jornais foram mostradas a Haroldo, que assim percebeu a magnitude do golpe sofrido pelo Partido. A reação de Haroldo foi pronta: nu, sob um capuz, e na frente de agentes da ditadura, fez vigorosa denúncia das atrocidades que aquele regime estava cometendo no Brasil, e da absurda política de se tratar o povo como inimigo interno da Pátria.

A tortura no Rio foi contínua, Aldo e Haroldo se viram apenas uma vez, de longe. A “cadeira do dragão”, os espancamentos e a “geladeira” eram usados sistematicamente.

Como o controle repressivo sobre as imprensa já não era tão completo, as mortes dos camaradas e nossa prisão ganharam os jornais, se bem que, em geral, segundo a versão da ditadura.

De qualquer maneira, desencadeou-se um grande movimento de solidariedade internacional, principalmente na França e em Portugal. Em Lisboa, fizeram uma música intitulada “Sangue em flor” que tinha versos como “Foi na noite dos chacais; Foi no Brasil dos generais; Morrendo pela revolução; Foi Pedro, Ângelo e João; Companheiros imortais”.

Passada a fase de onze dias e onze noites de torturas no Rio, na tristemente famosa Rua Barão de Mesquita, fomos transferidos para São Paulo, onde ainda houve torturas, principalmente no DOI-CODI, na também tristemente famosa Rua Totóia.

A prisão era em celas solitárias do DOPS paulista, onde ficávamos inteiramente nus, sem qualquer objeto, dormindo em uma cama de cimento, junto ao vaso sanitário. De noite Haroldo, deitando-se no chão, assobiava, por baixo da porta, a Internacional, que era respondida por Aldo. O contato assim estava feito, o Partido funcionado, a moral levantada.

Mais ou menos um mês depois, nosso advogado Luiz Eduardo Greenhalgh esteve com o Aldo, acompanhado de sua mãe. Viram as marcas da tortura. A mãe do Aldo foi ao Cardeal Dom Evaristo Arns denunciar o que viu. Em seguida, seguindo sugestão do Cardeal, fez carta que foi publicada na grande imprensa, fato que aconteceu pela primeira vez naqueles tempos.

Quando do nosso julgamento pela Auditoria Militar de São Paulo, apresentamos cartas-denúncias das torturas a que fomos submetidos, lidas no julgamento. Posteriormente, por intervenção do então Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil Raymundo Faoro, estas cartas foram publicadas em O Globo.

Esta foi também a primeira vez que a grande imprensa divulgava denúncias de tortura formuladas pelos próprios torturados. Era mais um sinal de que o declínio da ditadura continuava. A própria Folha de São Paulo, em sua edição de 3 de setembro de 1977, disse estar o Governo “diante de uma denúncia de inegável gravidade e dela não poderá fugir.

O procedimento esperado é o da apuração rigorosa dos crimes cometidos contra os direitos humanos, alegados nas petições enviadas à II Circunscrição da Justiça Militar, e a punição dos responsáveis por essa tentativa de retorno a negros tempos.” Evidentemente que nada foi apurado, mas nosso objetivo foi alcançado, desmascarar cada vez mais a sanha repressiva da ditadura.

Já estávamos há quase três anos em cadeia-política quando houve a Anistia, conquistada, ainda que com limitações, pelo movimento democrático que crescia cada vez mais. Depois da Anistia, na primeira eleição que houve, em 1982, fomos candidatos a deputado federal e fomos para o Congresso Nacional. A luta continuava, na nova trincheira conquistada, a da frente parlamentar.

Veio a grande campanha das Diretas Já e a derrota dessa campanha no Parlamento. Alguns se desesperaram. O Partido ajudou muitas forças democráticas do país a compreender que o objetivo central era por fim ao regime ditatorial e que, não tendo sido possível atingir esse objetivo através de uma eleição direta, caberia ás forças conseqüentes, democráticas e revolucionárias, perseverar na busca do fim do regime, ainda que fosse preciso ir ao Colégio Eleitoral. E assim a ditadura foi encerrada na eleição de Tancredo, após o que a Constituinte foi convocada.

O relato destes fatos tem por objetivo relembrar momentos trágicos da história política brasileira e dos graves prejuízos causados pela Ditadura Militar ao nosso País. Traz à tona, por outro lado, o importante papel exercido pelo Partido Comunista do Brasil na luta pela democracia e contra a Ditadura Militar.

Aproveitamos a oportunidade para prestar nossa homenagem a todos os que tombaram na luta contra a Ditadura, destacando os nomes de Maurício Grabois, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo, Carlos Danielli, Lincoln Oest, Osvaldo Costa, (Osvaldão), Jorge Leal, Helenira Rezende, João Batista Franco Drumond e mais ainda, Carlos Mariguela, Carlos Lamarca e tantos outros.

A história comprova que, quando mulheres e homens destemidos, se levantam e lutam por causas grandiosas, como a liberdade, a democracia e o socialismo, aí sim, avanços marcantes ocorrem.

Honra e Glória aos que tombaram na Chacina da Lapa.
Honra e Glória aos que tombaram na luta pela liberdade de todos os povos.
Honra e Glória ao Socialismo.

Aldo Arantes e Haroldo Lima são membros do Comitê Central do PCdoB, presos na operação militar que resultou na Chacina da Lapa

*Artigo escrito por ocasião dos 30 anos da Chacina da Lapa e publicado em livreto do então Instituto Maurício Grabois