A experiência chinesa combina o máximo de competição – a utilização do mercado como instrumento de desenvolvimento – e o máximo de controle. Entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo Consenso de Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a “proposta” americana para a economia global incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento. Assim controlaram as instituições centrais da economia competitiva moderna: o sistema de crédito e a política de comércio exterior, aí incluída a administração da taxa de câmbio. Os bancos públicos foram utilizados para dirigir e facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura.

Entre semelhanças e diferenças, a nova configuração da economia internacional evoca a segunda metade do século XIX e os primórdios do século XX , a era da Segunda Revolução Industrial e da Primeira Globalização Financeira. As reviravoltas econômicas, tecnológicas e sociais da primeira globalização nasceram de um jogo peculiar entre o monopólio industrial e financeiro da Inglaterra, suas políticas de livre-comércio e a resposta dos países ameaçados em sua identidade nacional pela revolução sem precedentes nas forças produtivas e na finança capitalista.

A adoção generalizada do padrão-ouro a partir dos anos 70 do século XIX ensejou uma forte expansão das transações financeiras internacionais e engendrou um intenso processo de concentração bancária na Inglaterra. Em seu desenvolvimento, o sistema financeiro internacional liderado pela “pérfida Albion” sustentou a emissão e negociação de títulos de dívida estrangeira, soberanos ou privados, a concessão de avais e o recebimento de depósitos forâneos na praça de Londres.

A liderança do sistema financeiro inglês estava assentada no grande desenvolvimento dos bancos de depósito, o que havia permitido a Londres assegurar-se do financiamento do comércio de todo o mundo. A Inglaterra possuía então todos os requisitos para o exercício dessa função de “financiadora do mundo”: a moeda nacional, a libra, era reputada a mais sólida entre todas e por isso mantinha uma sobranceira liderança enquanto intermediária nas transações mercantis e como instrumento de denominação e liquidação de contratos financeiros. O rápido crescimento e a impressionante concentração dos bancos de depósito colocavam à disposição essa matéria-prima para o desconto de cambiais emitidas em vários países.

Impulso decisivo para o avanço da globalização financeira daqueles tempos foi dado, em boa medida, pelo crescente endividamento dos países da periferia latino-americana e da semiperiferia europeia, obrigados a tomar empréstimos com o propósito de sustentar a conversibilidade de suas moedas. Isso porque os problemas de balanço de pagamentos eram recorrentes, normalmente associados a perdas nas relações de troca ou às flutuações periódicas no nível de atividades nos países centrais. As economias periféricas funcionavam, na verdade, como áreas de expansão comercial e financeira do país hegemônico nas etapas expansivas do ciclo e como uma “válvula de segurança” para o ajustamento das economias desenvolvidas nas fases de contração.

Enquanto os bancos ingleses concentravam suas operações no financiamento do comércio internacional e na exportação de capitais, a estrutura empresarial do país permanecia “congelada” nas formas “competitivas”. À semelhança das relações sino-americanas, a Inglaterra monopolista, em seu movimento de expansão mercantil, industrial e financeiro, “produziu” a industrialização dos EUA e da Europa (leia-se, sobretudo Alemanha) concomitantemente à criação da periferia produtora de matérias-primas e alimentos.

A emergência dos novos protagonistas “industrializantes” foi acompanhada das inovações que trouxeram o aço, a eletricidade, o motor a combustão interna, a química da soda e do cloro, o desenvolvimento da farmacêutica. Tais inovações alteraram radicalmente o panorama da indústria, até então marcado pelo carvão, pelo ferro e pela máquina a vapor. A aplicação simples da mecânica cedeu lugar à utilização e integração sistemática da ciência nos processos produtivos.

A segunda Revolução Industrial carregou em suas entranhas a ampliação das escalas de produção. O crescimento do volume de capital requerido pelos novos investimentos impôs novas formas de organização à empresa capitalista. A sociedade por ações tornou-se a forma predominante de estruturação da propriedade. Na Alemanha e nos Estados Unidos, os bancos universais, os bancos de investimento e os trusts funds passaram a avançar recursos para novos empreendimentos (crédito de capital), e cuidaram de promover a fusão entre as empresas existentes. As corporações financeiras organizaram a produção industrial nos setores de tecnologia avançada sob a forma de grandes empresas. Estas, por sua vez, promoveram o surgimento de novos canais de distribuição no atacado e no varejo (as lojas de departamento) e fomentaram a constituição de redes de pequenas e médias empresas fornecedoras. O movimento de concentração do capital produtivo e de centralização do comando empresarial nas mãos dos capitalistas associados tornou obsoleta a figura do empresário típico da industrialização inglesa originária, que confundia o destino da empresa com sua própria biografia.

A Inglaterra pregou e adotou o livre-comércio enquanto desfrutava do monopólio concedido por seu pioneirismo industrial. Foi atropelada pelos novos “industrializados” que avançaram sob o patrocínio de estruturas empresariais monopolistas e ao abrigo de políticas desabridamente protecionistas. Os Estados Unidos e a Alemanha, como a China contemporânea, aceitaram as regras darwinistas da concorrência universal e impuseram a superioridade de suas respectivas estruturas capitalistas, ancoradas na capacidade de centralização e mobilização de recursos dos seus bancos e – escândalo! – na presença ativa, nem sempre visível, de seus respectivos Estados nacionais.

* Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor

Fonte: CartaCapital