Até aí, não há novidades para as pessoas minimamente versadas no tema. O que muita gente desconhece é que o Brasil chegou a ser seriamente cogitado como um sexto membro permanente do Conselho de Segurança da ONU na Conferência de Dumbarton Oaks, realizada entre agosto e outubro de 1944, nos Estados Unidos. Esta e outras informações dos bastidores dos históricos encontros que selaram a configuração do mundo no pós-guerra estão presentes no recém-lançado “O Sexto Membro Permanente”.
No livro, com muitas informações inéditas para o público brasileiro, o autor procura aliar o rigor da pesquisa histórica a informações que iluminam algumas nuances das intrincadas negociações do mundo diplomático.
No caso das Nações Unidas, o maior entusiasta de sua criação, já no início de 1941, era o presidente americano, Franklin Delano Roosevelt. O criador do New Deal percebera desde logo que os Estados Unidos não conseguiriam manter sua tradicional posição isolacionista, voltando-se, no máximo, para as questões do continente americano, enquanto o resto do planeta mantinha-se em convulsão. A guerra inevitavelmente acabaria por arrastar o país, que não poderia voltar a desperdiçar a chance de projetar-se como grande líder global, como havia acontecido em 1919, quando desprezou a Liga das Nações.
Mesmo com a ameaça dos aviões e submarinos alemães e das limitações naturais dos transportes da época, Roosevelt e seus emissários saíram a campo, deslocando-se para lugares tão diversos como Londres, Moscou, Casablanca e Teerã, enquanto o conflito tinha curso. Em um desses deslocamentos, o presidente americano desembarcou em Natal, no Rio Grande do Norte, para o seu lendário encontro com Getúlio Vargas, em janeiro de 1943.
Simbolicamente, o encontro marcaria a autorização formal para que mais de 5 mil militares dos Estados Unidos atuassem em território brasileiro, na base aérea de Parnamirim (ali permaneceram até a derrota da Alemanha). Valeria também para que os presidentes firmassem o compromisso de instalação da Companhia Siderúrgica Nacional e tratassem da criação de uma força expedicionária brasileira. Já no fim do encontro, Roosevelt fez um convite informal para que o Brasil participasse das conferências de paz que levariam à criação das Nações Unidas.
De acordo com a doutrina desenhada pelo chanceler Osvaldo Aranha na época, a aproximação do país aos interesses americanos deveria ser automática, garantindo-se, em contrapartida, um protagonismo regional brasileiro. A Casa Branca também via com bons olhos essa relação, uma vez que o alinhamento informal da Argentina às potências do Eixo servia como fonte de grande inquietação.
Não obstante serem extremamente cordiais as relações entre Brasil e Estados Unidos, a aproximação do fim do conflito gerava uma série de imperativos, que, até a ratificação da Carta da ONU, se mostrariam incontornáveis sob a perspectiva do pragmatismo da realpolitik. É neste ponto que aparece uma das maiores virtudes do trabalho de Vargas Garcia.
Roosevelt chegou a fazer gestões junto a seus assessores diretos sobre o tema e lançou balões de ensaio em direção aos representantes russos e britânicos. Mas a ideia de inclusão do Brasil como membro permanente do conselho a ser instituído foi firmemente rechaçada pelos outros dois aliados.
O desenho de entendimento feito em Dumbarton Oaks, ratificado no encontro de Yalta, em fevereiro de 1945, com a definição do direito exclusivo do uso do poder de veto aos membros permanentes do Conselho de Segurança, baseava-se na ideia de predomínio dos “quatro policiais”: Estados Unidos e Rússia, por seu incontestável poderio militar; Inglaterra, por seu inquestionável sacrifício e pelo seu ainda existente império ultramarino; e China, pela necessidade de inclusão de um importante país asiático que fizesse um contrapeso a um eventual ressurgimento japonês no futuro. Mesmo a França, naquele momento, era apenas cogitada para ocupar em momento oportuno a vaga de um quinto membro permanente, para fazer sombra à ameaça Soviética na Europa continental.
Como lembra Vargas Garcia, a ONU não nascia como um apêndice do sistema que surgiria no pós-guerra, e sim como o seu núcleo. Neste concerto, não havia espaço para que países sem expressão significativa e, principalmente, sem um exército com menos de 5 milhões de homens, no dizer do primeiro-ministro britânico Winston Churchill, pudessem ocupar um lugar de destaque na nova ordem mundial. O fato é que todo esse embate foi travado à revelia não só do Brasil, mas também de todos os demais 46 países que ratificaram a carta de fundação do organismo ao lado dos “quatro policiais”.
É provável que, há duas ou três décadas, o livro de Vargas Garcia não provocasse mais do que uma curiosidade de verbete enciclopédico, mas em tempos de Brics, de questionamento das configurações estabelecidas na ordem do pós-guerra e demandas por transformações na governança global, bem vale a pena o mergulho no conhecimento dos bastidores daqueles dias que moldaram o mundo tal qual o conhecemos hoje.
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“O Sexto Membro Permanente – O Brasil e a Criação da ONU”
Eugênio Vargas Garcia. Contraponto. 458 págs. R$ 65,00
Fonte: Valor