A Comissão da Verdade paulista, em reunião coordenada pelo deputado João Paulo Rillo (PT), ouviu, na manhã de quarta-feira, (3), a autora do livro Luta, Substantivo Feminino, Marise Egger-Moellwald. O livro traz depoimentos de 45 mulheres brasileiras, presas políticas durante a ditadura militar, que foram torturadas e brutalizadas nos porões durante as décadas de 1970 e 1980.

Marise acredita que a sociedade tem direito de saber a verdade sobre as terríveis ocorrências daquele período. Indagada pelos presentes sobre suas expectativas a partir de efeitos causados pelos depoimentos das vítimas da ditadura militar, Marise disse que espera um movimento de repúdio suficientemente grande para impedir que os acontecimentos narrados se repitam neste país. As comissões e outros grupos que procuram a verdade a partir dos depoimentos dos que vivenciaram a época têm as ferramentas necessárias para tornar público o que ocorreu nesse período obscuro da história brasileira.
Sensibilidade social
O fato de ser filha de refugiados austríacos, vítimas da 2º Guerra Mundial, da qual conseguiram escapar rumo ao Brasil, foi o motivo pelo qual mantinham em seu lar brasileiro absoluto silêncio sobre conflitos de qualquer natureza, conservando-se à margem de envolvimentos políticos. Não havia, portanto, oportunidade em sua família para esse tipo de debate.
Foi assim que Marise se aproximou dos moradores da favela do Buraco Quente (zona sul de São Paulo). Ela conviveu intimamente com os moradores daquela comunidade carente, onde entrou em contato com a realidade social e os dados concretos da vida das pessoas mais pobres que as teorias não mostravam. Ali as pessoas ficavam expostas a um ambiente de omissão do poder vigente, onde o povo carecia de qualquer tipo de serviço público ou das facilidades da qual desfrutavam os mais bem aquinhoados da sociedade na época.
O que levou Marise a se integrar ao Partido Comunista Brasileiro em 1975, quando era estudante de Ciências Sociais na USP, foi a empatia que teve com a estratégia escolhida pelo partido para lutar pela sociedade democrática. No período de sua atividade política, junto com as militantes do PCB, integrou-se a grupos da sociedade organizada, com quem discutia sobre as vantagens das liberdades democráticas, que poderiam trazer a melhoria da qualidade de vida para aqueles com menor renda.
Do Buraco Quente ao Paraíso
Marise foi presa em 23 de outubro de 1975. Sua relação com a comunidade da favela era tão forte na época que deixou seus filhos sob os cuidados de uma das moradoras do Buraco Quente, enquanto ficou detida no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão subordinado ao Exército localizado na Rua Tutóia, em pleno bairro do Paraíso, na capital, onde funcionou um dos principais centros de tortura do país.
No depoimento da Assembleia Legislativa, Marise evitou detalhes, já fartamente públicos por meio de seu livro e outros relatos já feitos. Mas ela menciona uma crueldade adicional sofrida pelas mulheres ali detidas, que eram sempre abusadas sexualmente.
“Os homens que me torturavam se revezavam entre o local onde eu estava e a sala contígua. Estavam num estado de alteração psíquica indescritível. Eu era erguida da cadeira e jogada, nua e encapuzada, como se fosse uma peteca, de mão em mão, no meio de xingamentos e gritarias. Depois fui submetida a tapas e choques elétricos. Perdi alguns dentes e todas as minhas obturações caíram. Como estava amamentando, o leite escorria pelo meu corpo, o que constrangeu alguns torturadores e estimulou outros”, foi como descreveu sua prisão em relato recente na UFPR.
“Eu e meu companheiro, George Duque Estrada, fomos presos em meio a uma avalanche de prisões que tinham como alvo o PCB, de norte a sul do país”, disse ela. Só em São Paulo, em outubro de 1975, ela lembra que estavam detidas 96 pessoas do partidão, dentre as quais: Lenita Yassuda, Dilea Frate, Marisa Saenz Leme, Eleonora Freire, Sonia Morossetti, Sandra Miller, num total de 28 mulheres.
Segredo de estado
“No DOI-Codi, passei a noite encapuzada, ouvindo os gritos de um homem sendo brutalizado”, diz ela em relatos registrados sobre o assunto. O dia seguinte, ela soube depois, foi aquele em que Vladimir Herzog foi torturado até a morte.
“O entra e sai era frenético. De repente, instalou-se um silêncio sepulcral. Sobe e desce de escadas. Os interrogatórios foram suspensos. Na madrugada entre 25 e 26 de outubro, agentes passavam pelos corredores e perguntando se ‘alguém também estava passando mal’.  Pensei que algo de terrível tivesse ocorrido com o Geroge. Não havia sido com ele, mas com o Vladimir Herzog. Foram provavelmente dele os gemidos que ouvia da sala contigua.”
Mas, nesse período, ela conta que as torturas eram ouvidas nas salas por onde passava. Foi assim que ouviu os gritos abafados de uma pessoa amordaçada, que pode identificar como seu companheiro George. “Achei que iam matá-lo”, diz ela, revelando o ambiente de terror, excessos e criminalidade institucional que se tornaram as instalações do Doi-Codi.
Força dos relatos
“Foi um depoimento muito emocionante, trouxe informações importantes acerca do histórico dela, e Marise reforçou uma posição da comissão, que é apontar para um caminho, no sentido de não se perdoar quem torturou”, diz o deputado João Paulo Rillo (PT), que coordenou a audiência pública em substituição ao titular Adriano Diogo (PT). Segundo Rillo, o depoimento de Marise se destaca por vários motivos. Por exemplo, ela falar de um momento que coincide com o período marcado pela morte de Vladimir Herzog.
“Embora ela estivesse encapuzada nas sessões de tortura, é possível apurar (a partir do depoimento na CPI) qual era a equipe que estava trabalhando, os militares que passaram pelo Dops naquele momento. Agora temos que avançar para isso, para revelar os torturadores”, diz Rillo.
Mesmo destacando aspectos do depoimento de Marise Egger-Moellwald, João Paulo Rillo afirma que não se pode dizer que um depoimento seja mais importante do que outros. “O conjunto de coisas é o mais importante, não só um depoimento.”
Para ele, a comissão faz um trabalho histórico e a importância desse trabalho é mais estrutural do que pontual, dos depoimentos em si, por mais importantes que sejam. “Todos os depoimentos são reveladores na medida em que os depoentes não tiveram outro foro para fazê-lo”, avalia o petista.