A caminho do golpe de Estado

Um dos derradeiros lances da guerra entre o Executivo e o Legislativo foi a destituição do ministro da Guerra Chagarnier — que se constituía num último obstáculo aos planos golpistas no interior do governo. A partir de então, o presidente dispunha de todo poder militar do qual necessitava para rasgar a Constituição, aplastar o Partido da Ordem e manter-se no poder.

O novo ministério indicado por Bonaparte foi recebido com um voto de censura do parlamento em 18 de janeiro. Toda oposição coligada (republicanos burgueses, legitimistas, oleanistas e socialdemocratas) conseguiu 415 votos contra 286 — a maioria destes era composta por desertores do Partido da Ordem, que começava a se desfazer. Os conservadores, temendo a radicalização política e social, preferiam se submeter ao novo Napoleão a correr o risco de ver um conflito institucional instalado e sobre o qual não poderiam prever os resultados.

Na linha do confronto, os deputados oposicionistas se recusaram a aprovar uma dotação de 1 milhão e 800 mil francos para o chefe do Executivo. Sabiam que esse dinheiro serviria para “comprar apoio” junto a políticos e militares. E também financiaria grupos de provocadores bonapartistas que se escondiam sob o manto da Sociedade 10 de dezembro. A vitória, desta vez, foi bastante apertada, por apenas 102 votos de diferença. Esfumaçava-se a bancada do Partido da Ordem, que havia eleito 500 deputados. Apenas os socialdemocratas se mantinham intactos com seus quase 200 deputados.

Apesar dessa situação, os poucos deputados que ainda se mantinham no Partido da Ordem se recusaram a votar favoravelmente à proposta concedendo anistia aos condenados políticos, apresentada pelos socialdemocratas. Desabafou Marx: “bastou que um simples Vaisse conjurasse o fantasma vermelho para que o partido da ordem rejeitasse sem discussão uma moção que teria certamente dado imensa popularidade à Assembleia Nacional e forçado Bonaparte a atirar-se novamente em seus braços. Em vez de se deixar intimidar pelo Poder Executivo com a perspectiva de novos distúrbios, devia ter dado à luta de classes uma pequena oportunidade, a fim de manter o Poder Executivo na dependência. Não se sentiu, porém, capaz de brincar com fogo”.

Bonaparte aproveitava a confusão e jogava com os diversos interesses, quer do Partido Republicano quer das correntes dinásticas do Partido da Ordem. Ao mesmo tempo, alarmava a burguesia com os perigos da anarquia que ameaçariam o bom andamento dos negócios. Uma crise econômica que se avizinhava no horizonte, reforçava esse temor que logo se transformaria em pânico.

Da pauta política ainda constava o problema da reforma da Constituição. Este era um fator de instabilidade política, justamente algo que a burguesia não queria.

Em 19 de julho a reforma foi rejeitada, embora tivesse conseguido 446 votos contra 278. Apenas os socialdemocratas, os republicanos burgueses e uma reduzidíssima parte do Partido da Ordem votaram contra. A maioria parlamentar ficou temerosa diante da possibilidade do uso da força por parte de Bonaparte ou de acidentalmente acender o estopim de uma revolução. Contra sua vontade, um novo e explosivo impasse foi criado: a letra da Constitução republicana, que previa um quorum para sua alteração, vencera a maioria da Assembleia Nacional e o presidente. A Nação se viu diante de um dilema: golpe bonapartista ou revolução!

Ao indicar o banqueiro Achille Fould para o poderoso ministério das finanças, o ex-candidato dos camponeses logo revelaria a quais interesses estaria vinculado. A partir deste momento, a aristocracia financeira tornou-se bonapartista e abandonou o Partido da Ordem. “Fould não representava apenas os interesses de Bonaparte na Bolsa, representava também os interesses da Bolsa junto a Bonaparte”, afirmou Marx.

A grande imprensa europeia não escondia o seu júbilo diante das opções bonapartistas e apregoava a necessidade de deixar o presidente governar em paz, sem os sobressaltos das ruas ou do parlamento. Um correspondente do jornal londrino The Economist escreveu: “Por toda parte pudemos constatar que a França exige, acima de tudo, tranquilidade. O presidente declara-o na sua mensagem à Assembleia Legislativa; ressoa como eco na tribuna nacional; é afirmado pelos jornais; é proclamado do púlpito; e é demonstrado pelos valores dos títulos públicos à menor perspectiva de desordem e pela sua estabilidade logo que triunfa o poder Executivo”. Às vésperas do golpe de Estado um editorial do mesmo jornal afirmou: “Em todas as Bolsas da Europa reconhece-se agora o presidente como o guardião da ordem” (MARX, 1982: 106-107). Este era o aval da finança internacional para o golpe de Estado.

Novamente com a palavra Marx: “a aristocracia financeira condenava a luta parlamentar do Partido da Ordem contra o poder Executivo como uma perturbação da ordem e festejava cada vitória do presidente como uma vitória da ordem”. Não era apenas a fração financeira da burguesia que assim pensava. “Também a burguesia industrial, em seu fanatismo pela ordem, se irritava com as querelas do partido da ordem no parlamento com o poder Executivo. Depois de seu voto a 18 de janeiro (…), receberam reprimendas públicas procedentes precisamente de seus mandantes dos círculos industriais, nas quais se estigmatizava sobretudo a sua coligação com Montagne como um delito de alta traição contra a ordem (…). Demonstrava que a luta pela defesa do seu interesse público, do seu próprio interesse de classe, do seu poder político, apenas o incomodava e o desgostava como a perturbação dos seus negócios privados” (MARX, 1982:107:108).

Ou seja, o conjunto das frações da burguesia se voltavam contra seus representantes no parlamento e na imprensa. Elas convidavam Bonaparte “a aniquilar parte dela que falava e que escrevia, os seus políticos e os seus literatos, a sua tribuna e a sua imprensa, a fim de poder entregar-se plenamente confiante aos seus negócios privados, sob a proteção de um governo forte e ilimitado” (MARX, 1982:109). O candidato a ditador, mais do que ninguém, compreendeu este clamor e estava disposto a atendê-lo.

O 18 Brumário de Louis Bonaparte

Visando a criar confusão e dividir ainda mais a oposição, Bonaparte enviou à Assembleia Nacional um projeto restabelecendo o sufrágio universal, que havia sido desfigurado pelo Partido da Ordem. Ele foi derrotado por 355 votos contra 348 — mas, desta vez, a socialdemocracia e os republicanos votaram com os bonapartistas. A Assembleia e os partidários da Ordem, novamente, se desmascararam diante da maioria do povo francês e, sem saber, assinaram o seu próprio atestado de óbito.

No dia 2 de dezembro Napoleão mobilizou suas tropas e cercou o Palácio Bourboun onde se reunia a Assembleia Nacional. Os deputados tomam outro prédio e, num ato de desespero, aos gritos de Viva a República!, votaram a destituição do presidente. Poucos levaram a sério aquela bravata e os deputados ali presentes foram conduzidos até as prisões de Mazas, Ham e Vincennes. Locais havia muito conhecidos pelos líderes proletários e democratas-pequeno-burgueses. E “assim terminaram o partido da ordem, a Assembleia Legislativa e a Revolução de Fevereiro”.

Na madrugada anterior, a polícia havia prendido as principais lideranças populares, ligadas aos clubes revolucionários, para se prevenir contra possíveis barricadas. No dia 3 de dezembro as tropas foram recebidas com vaias por alguns burgueses, que estavam nas varandas dos boulevards. Ouviram-se também gritos dispersos a favor da República. A resposta dos soldados foi uma tremenda fuzilaria que ensanguentou os bairros mais nobres. Pela primeira vez, o exército voltava suas armas contra aqueles que sempre procurou proteger: a burguesia.

Satiriza Marx: “E, por fim, os pontífices da ‘religião e da ordem’ veem-se eles mesmos expulsos a pontapés (…), arrancados da cama no meio da noite e do nevoeiro, encafuados em carros celulares, metidos nos cárceres ou enviados para o exílio; o seu templo é arrasado, a sua boca é selada, a sua pena quebrada, a sua lei rasgada em nome da religião, da propriedade, da família e da ordem. Os burgueses fanáticos da ordem são espingardeados nas suas varandas pela soldadesca embriagada, a santidade dos seu lares é profanada, e suas casas são bombardeadas como passatempo, em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem. As fezes da sociedade burguesa formam por fim a sagrada falange da ordem e o herói Krapülinski faz a sua entrada nas Tulherias como o ‘salvador da sociedade’” (MARX, 1982:31).

Em geral, o povo ficou na expectativa e, no fundo, até simpatizou com o fechamento daquela Assembleia Nacional e a exclusão dos deputados do Partido da Ordem, que haviam lhe cassado o direito de voto e eliminado outras conquistas da Revolução de fevereiro.

Bonaparte elaborou uma nova Constituição antidemocrática que lhe dava um mandato de dez anos. Ironicamente, este texto foi aprovado num plebiscito baseado no sufrágio universal. Um ano depois, não contente com sua situação de semiditador, ele se ungiria ao posto de imperador dos franceses, sob o título de Napoleão III.

Em seu O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, escrito meses antes, Marx havia afirmado: “quando o manto imperial finalmente cair sobre os ombros de Louis Bonaparte, a estátua de bronze de Napoleão despencará do alto da coluna de Vendôme”. Esta previsão se realizaria alguns anos mais tarde. A estátua do primeiro Napoleão, que simbolizava as suas conquistas imperiais, seria derrubada do seu pedestal em 1871 pelas mãos dos comunardos de Paris.

Bibliografia

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HUGO, Victor. Napoleão: o pequeno. São Paulo: Ensaios, 1996.

MARX, Karl. As lutas de classes em França. Lisboa: Avante!, 1984.

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MARX, K. & ENGELS, F. Las revoluciones de 1848. México: Fondo de Cultura Econômica, 1989.