3- A democracia como realização histórica

Essa realização não ocorre após a Revolução Francesa de 1789. 1789 não é a realização da democracia, pois é uma tentativa ilusória de efetivar uma definição anacrônica de democracia. Sobre isso Marx desenvolve uma crítica interessante do projeto de Robespierre. Robespierre e Saint-Just fundaram seu projeto político sobre uma “ilusão colossal” que é a seguinte: “eles confundiram a sociedade com democracia realista da antiquidade, apoiada sobre a base da escravidão real, com o Estado representativo moderno e a democracia espiritualista, que se apoia sobre a escravidão moderna na sociedade burguesa. […]Pretender formar de modo antigo a direção política dessa sociedade: que ilusão colossal!” (30)

A realização da democracia é a Comuna de Paris. A Comuna de Paris é apresentada por Marx como uma política experimental, um experimento da possibilidade de realização de um espaço democrático. É por essa razão que ele precisa especificar que a Comuna “não tem utopias prontas para serem introduzidas por decreto do povo. […] Ela não tem um ideal a realizar, mas apenas libertar os elementos da nova sociedade que a velha sociedade burguesa que afunda, traz em suas entranhas”  (31).

Outro fato de importância relativa nessa irrupção na história da “realização da verdadeira democracia”: ao mesmo tempo em que a Comuna realiza a democracia, ela confere sentido à ditadura do proletariado: “O filistino social-democrata foi recentemente invadido por um terror salutar ao tentar pronunciar a palavra ditadura do proletariado. Pois bem, senhores, quereis saber que face tem essa ditadura ? Olhais para a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado” (32).

Vamos ver então nesse rico texto A guerra civil na França qual é a face da ditadura do proletariado. Do conjunto desse texto extraordinariamente denso, eu me limitarei aos  traços que caracterizam politicamente essa ditadura.

1- A Comuna se define pela possibilidade histórica de que os excluídos, os despossuídos da política conquistem o poder soberano governamental:

“ Quando a Comuna de Paris tomou a direção da revolução em suas mãos; quando os simples operários, pela primeira vez, ousaram infringir  o privilégio governamental de seus superiores naturais, os possuidores e, em condições de extrema dificuldade, realizaram a sua obra modesta, consciente e eficazmente, o velho mundo contorceu-se em convulsões de raiva vendo a bandeira vermelha, símbolo da República do trabalho, tremular sobre o Hotel de Ville.” (33)

O que se torce com essa bandeira é a velha ideia desde Platão de que para ascender ao poder é preciso possuir um título: de nascimento, de riqueza ou de saber. A Comuna mostra que os sem-títulos, os simples trabalhadores possuem uma capacidade política, uma capacidade de fazer política. É por isso que os sem-títulos podem legitimamente aspirar a possuir esses dois poderes: o Executivo e o Legislativo de uma só vez. Marx torna preciso: “A Comuna deve ser não um organismo parlamentar, mas um organismo vivo, ao mesmo tempo executivo e legislativo” (34).

2- Os cidadãos dispõem também de um poder ampliado de controle sobre o funcionário que dispõe de um poder político. Esse poder de controle ocorre de alto a baixo. No alto, os funcionários de todos os ramos da administração, em vez de serem empossados hierarquicamente, são eleitos pelo sufrágio universal; e abaixo esses funcionários são responsáveis, quer dizer, são passíveis de serem substituídos a qualquer momento. Citamos:

“Em vez de decidir a cada três ou seis anos que membro da classe dirigente deverá ‘representar’ e espezinhar o povo no parlamento, o sufrágio universal deveria servir ao povo constituído em comuna. […] E é um fato bem conhecido que as empresas, tal como os indivíduos, em matéria de negócios geralmente são instruídos a colocar cada um em seu lugar, e caso cometam um erro, sabem prontamente corrigi-lo. Por outro lado, nada poderia ser mais estranho à Comuna do que a substituição do sufrágio por uma investidura hierárquica.” (35)

Mais uma vez, Marx se bate contra a velha ideia platônica de que o povo não sabe o que quer, nem poderia escolher corretamente os indivíduos investidos de poder. Para Marx, graças ao sufrágio universal, o povo não apenas escolhe corretamente, como também controla as suas decisões. Desse modo, em uma democracia, o sufrágio serve não apenas para designar como também para controlar e destituir um indivíduo culpado de abuso de poder. É por essa razão que um dos traços característicos do poder democrático é sua mobilidade: o poder é móvel se todos os detentores de poder são, diz Marx, “passíveis de serem substituídos a qualquer momento e ligados a um mandato imperativo” (36). O mandato imperativo é o meio político para evitar a representação que divide. Aí está a responsabilidade política de um eleito em uma democracia: sempre  defender o interesse geral, e não privado.

3- Não se trata de um regime que pretenda se fundar sobre uma verdade absoluta encarnada por um partido ou uma administração. Para parafrasear Rousseau, mas o tomando no contrapé, a vontade da Comuna não é sempre justa, mas está aberta à sua própria retificação. Para permitir essa retificação, a democracia se define pela criação e a preservação de um espaço público, espaço no qual todas as decisões tornam-se públicas para permitir a sua correção: “Certamente a Comuna não pretendia ser infalível, como fazem sem exceção todos os antigos governos. Ela publica todos os seus atos e decretos, ela informa o público de todas as suas imperfeições” (37).

4- Ela destrói o caráter puramente repressivo do poder de Estado: o exército permanente, a polícia política. Sobre a polícia, Marx afirma: “Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente desprovida de seus atributos políticos, e transformada em um instrumento da Comuna, responsável e passível de ser substituída a qualquer momento” (38).

5- A democracia, segundo Proudhon, é démopédie (39). Não há democracia sem uma política educativa, graças à qual existe um paralelo entre igualdade política e igualdade de acesso ao conhecimento. De fato, para Marx, a igualdade não é apenas uma igualdade perante a lei, mas é uma possibilidade efetiva de acesso. Há igualdade política quando os cidadãos possuem um igual acesso aos diferentes locais do poder. Marx sobre isso diz: “A totalidade dos estabelecimentos de ensino foi aberta gratuitamente ao povo, e ao mesmo tempo libertos de toda ingerência da Igreja e do Estado” (40).

Ao final dessa breve enumeração das características principais da ditadura do proletariado, podemos dizer que ela se livra da possibilidade de inspirar qualquer tipo de totalitarismo. Ela se aproxima bem mais “da tendência de um governo do povo para o povo” (41), como afirma Marx.

A partir dessa análise de A guerra civil na França é conveniente sublinhar uma originalidade no pensamento político de Marx.

Vamos então sucintamente desenvolver a segunda ideia de nossa primeira parte.

Notas

(30) La sainte famille, Éditions Sociales, 1972, p. 148.
(31) La guerre civile en France, p. 67.
(32) Engels, Introduction, La guerre civile en France, p.25 (Disponível em português no site: www.marxists.org – N. T.).
(33) Ibidem, p.69.
(34) Ibidem, p.63.
(35) Ibidem.
(36) Ibidem.
(37) Ibidem, p.70.
(38) Ibidem, p.63.
(39) Educação do povo (N. T.).
(40) Ibidem, p.68.
(41) Ibidem, p.68.