Um olhar inocente e desinteressado não pode deixar de capturar nas reiteradas e tediosas choramingas dos moralistas a intenção de “olhar para o outro lado”. O episódio Siemens tem a virtude de revelar que a proliferação de corruptos supõe a multiplicação dos corruptores. Não há venda sem compra.

Para não tropeçar nas hipocrisias, seria bom compreender a lógica que move a concorrência entre os grandes blocos de capital na economia contemporânea. Para ser mais preciso, desde o século XIX, com distintas morfologias, o movimento da grande empresa moderna é articulado pelas forças dos mercados financeiros e pela busca do controle dos mercados e das fontes de abastecimento.

Ontem como hoje, estes mercados promovem a circulação global do “capital livre e líquido”, organizado sob a forma “coletiva” dos fundos de investimento, fundos de pensão e hedge funds.

Na economia movida pelas fusões e aquisições, quem não engole o concorrente corre o risco de ser deglutido por ele

O objetivo é diversificar a riqueza de cada grupo privado, centralizar o controle nas empresas integradoras que comandam a rede de fornecedores também monopolistas e, assim, ganhar maior participação nos mercados globais. Na economia movida pelas fusões e aquisições, quem não consegue engolir o concorrente corre o risco de ser deglutido por ele. Os agentes dessas operações são os grandes bancos de negócios. Eles definem os novos proprietários, os métodos de financiamento, a participação acionária dos grupos, as estratégias de valorização das ações, antes e depois das ofertas públicas.

A transferência de ativos públicos para os grupos privados não soluciona o confronto entre tais gigantes “coletivizados” e, portanto, comandados pelo poder dos acionistas. O capitalismo da grande empresa e da alta finança torna-se ainda mais promíscuo e pegajoso em suas relações com o Estado.

Os que estudam o fenômeno da generalização das praticas ilícitas e ilegais não têm qualquer dúvida em apontar como causa mais importante a infiltração da “ética dos negócios” nos negócios da política. Enquanto alguns clamam para que o Estado abandone suas pretensões de interferir na economia, a realidade dos negócios exige que ele passe a arbitrar e articular os interesses privados. Há quem aposte em fórmulas mágicas para prevenir o dinheiro mal havido e as práticas ilícitas.

A substituição dos órgãos tradicionais de vigilância e controle do Estado por agências reguladoras não realizou, nem poderia realizar, o milagre da ressurreição da livre concorrência livre, limpa e desimpedida. No caso das telecomunicações, por exemplo, a experiência internacional mostra que depois de um período breve de “concorrência” as empresas tendem a se fundir, provocando uma enorme concentração do capital e produzindo situações de monopólio. Sem independência dos reguladores e a vigilância permanente de um Congresso acima de qualquer suspeita, os usuários-consumidores vão perder a parada da fixação de tarifas e do controle da qualidade do serviço.

Os liberais nefelibatas preferiram, no entanto, refugiar-se na retórica da transparência, da livre concorrência e da igual oportunidade garantida a todos os interessados. Cascata. “Seria melhor afirmar a verdade claramente”, diria o saudoso John Kenneth Galbraith.

Não há quem possa negar que a perda da capacidade de regulação do Estado é a marca registrada da convivência entre o público e o privado no capitalismo da concorrência monopolista. Os conservadores pretendem enfrentá-la reinventando o liberalismo e renovando a fé na capacidade de auto-regulação do mercado.

Robert Skidelsky, biógrafo de Keynes, ironizou o temor de Hayek de que a saúde da democracia pudesse ser afetada pela força excessiva do Estado. Muito ao contrário, diz Skidelsky, o Estado foi muito fraco para impedir a invasão, tornando-se dependente e ficando à mercê das “forças externas” que acabam anulando ou reduzindo a capacidade de gestão econômica. “Keynes superestimou a possibilidade de uma gestão econômica racional pelos governos democráticos”, concluiu.

Schumpeter deplorava que a ordem criada pelo capitalismo individualista pudesse ser devastada pela força avassaladora do progresso capitalista. “Assim”, dizia ele, “a evolução capitalista arrasta para o fundo todas as instituições, especialmente a propriedade e a liberalidade de corporação, que responderiam às necessidades e às práticas de uma atividade econômica verdadeiramente privada”. A grande corporação, o proprietário de ações e a importância cada vez maior dos mercados em que circulavam os direitos de propriedade – os mercados financeiros – significavam a desmaterialização da propriedade, sua despersonalização. “Um possuidor de um título abstrato perde a vontade de combater econômica, física e politicamente por sua fábrica e pelo domínio direto sobre ela, até a morte se for preciso”. O capítulo XII de “Capitalismo, Socialismo y Democracia” arrisca uma previsão sobre os destinos da ordem capitalista fundada na iniciativa individual: “Não sobrará ninguém que se preocupe em defendê-la”. Enganou-se: é cada vez maior a força das grandes estruturas capitalistas e de seus métodos de controle na moldagem subjetiva dos indivíduos.

Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

Publicado no Valor Econômico – 06/08/2013