Mandatos comunistas de 1945: o resgate de um patrimônio da democracia brasileira
Exercendo a presidência da Câmara dos Deputados, declaro os mandatos cassados simbolicamente restituídos. A frase da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que assumiu a presidência da sessão solene realizada na terça-feira 13 de agosto de 2013 por indicação do presidente da Casa, deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), resumiu o desfecho do Projeto de Resolução apresentado por ela em março deste ano. O requerimento para a sessão solene de entrega dos mandatos também partiu da parlamentar comunista. “A reparação na história já foi feita mediante o poder público; cabe agora darmos conclusão com a entrega simbólica dos mandatos aos familiares queridos”, disse a deputada comunista.
Receberam os mandatos simbolicamente os seguintes deputados da bancada do Partido Comunista do Brasil cassada em 1948: Jorge Amado, Carlos Marighella, João Amazonas, Maurício Grabois, Francisco Gomes, Agostinho Dias de Oliveira, Alcêdo de Moraes Coutinho, Gregório Bezerra, Abílio Fernandes, Claudino José da Silva, Henrique Cordeiro Oest, Gervásio Gomes de Azevedo, José Maria Crispim e Osvaldo Pacheco da Silva.
O presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, afirmou que esses parlamentares foram impedidos de concluir “um mandato outorgado pelo povo”. “Mesmo após ser colocado na ilegalidade, o Partido Comunista deu continuidade às suas lutas. Procedemos à devolução simbólica do mandato dos 14 deputados, mantendo o vinculo inalienável que o Parlamento deve manter com o povo brasileiro”, declarou.
Jandira Feghali
Logo após as formalidades da abertura da sessão, um vídeo institucional resumiu o processo democrático que encerrou a ditadura do Estado Novo e garantiu a Assembleia Nacional Constituinte e a eleição para a Presidência da República. “Um dos episódios mais escandalosos da história recente. O presidente Dutra queria agradar aos Estados Unidos, que iniciava a Guerra Fria com a União Soviética, e mandou cassar os comunistas dizendo que eles não defendiam os interesses do Brasil”, narrou o resumo, que contou com um depoimento de João Amazonas sobre a cassação dos mandatos e uma fala de Jandira Feghali explicando os objetivos do seu Projeto de Resolução.
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Em seu pronunciamento (íntegra aqui), Jandira Feghali disse que vivenciar algo tão forte, de tamanho simbolismo histórico, criava uma contradição literal com a estrofe de Walter Franco em sua composição “Coração tranquilo”: “Estou com a mente quieta, apesar de inquieta, com a espinha ereta, apesar do peso da responsabilidade deste momento, e com o coração tranquilo, apesar da emoção que sinto.” Segundo a parlamentar comunista, com a análise da história do Brasil no período da década de 1940 por meio da leitura de depoimentos e dados é difícil compreender não apenas o que levou 10% da população brasileira a dar seus votos aos comunistas, mas perceber o grande trabalho que eles desenvolveram no parlamento, o significado que imprimiram a cada mandato e a cada conquista.
Jandira Feghali destacou as digitais que os parlamentares comunistas deixaram na Constituição de 1946 e ressaltou a violência que foi cometida contra a opção popular, a sua liberdade de escolha, o uso democrático do seu voto, o exercício legítimo do mandato parlamentar. Para ela, a dura resistência que foi empreendida por esses aguerridos combatentes e por democratas que se aliaram contra o arbítrio e os sentimentos que os envolveram, a seus familiares e camaradas de Partido, são fatos que merecem registros para não se perderam na história. “Calaram os deputados e o senador Luís Carlos Prestes do Partido Comunista do Brasil, mas não calaram a voz desses militantes e dirigentes que deixaram o front institucional de cabeça erguida e suas ideias sólidas na cabeça”, salientou.
A deputada comunista recordou uma passagem do discurso final de Maurício Grabois, o líder da bancada comunista, asseverando que quando ressurgisse a verdadeira democracia, a democracia do povo, quando fosse respeitada sua vontade, os comunistas voltariam ao parlamento. Jandira Feghali lembrou que Haroldo Lima, ao assumir a liderança da bancada do PCdoB em agosto de 1985, reproduziu essa passagem do discurso de Grabois e proclamou: “E assim, senhor presidente, senhores deputados, povo brasileiro, voltamos”. “Hoje, após 28 anos de proferido o discurso do deputado Haroldo Lima, realizamos esta sessão solene, que recupera a biografia e os direitos dos catorze deputados comunistas. E agora podemos dizer: voltamos todos!”, destacou a deputada comunista.
Manuela D’Ávila
A atual líder da bancada comunista, Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), agradeceu ao presidente da Câmara pelo gesto de convidar Jandira Feghali para presidir a sessão solene e viabilizar o evento durante os trabalhos parlamentares, em uma tarde de terça-feira. Segundo ela, a devolução dos mandatos comunistas é parte da reconstrução da história do país. E ressaltou que passaram-se sessenta e cinco anos para que a Câmara dos Deputados formalizasse um pedido de desculpas pelo ocorrido. Manuela D’Ávila se deteve na análise das bandeiras levantadas pela bancada comunista eleita em 1945 e enfatizou que elas estão presentes, “porque a luta do povo brasileiro passa por todas essas causas”.
A líder da bancada comunista encerrou seu discurso citando a poetisa comunista Lila Ripoll, do seu Estado natal — o Rio Grande do Sul —, que em seu poema “Primeiro de Maio”, que chama pelos nomes os operários que caíram chacinados em uma passeata dissolvida à bala, registrou: “Morreram? Quem disse, se vivos estão? Não morre a semente lançada na terra, se vivo os frutos estão!” “Centenas de comunistas estão vivos porque a nossa luta é viva. A luta pela liberdade, a luta pelo socialismo”, concluiu.
Entrega dos bótons
Após os discursos de abertura, Jandira Feghali iniciou a cerimônia de entrega dos bótons, que tem a simbologia do mandato, e do diploma de parlamentar dos cassados. “Fizemos uma busca intensa, mas não conseguimos encontrar todas as famílias”, observou, informando que “pessoas representativas” receberiam os bótons e os diplomas “que permanecerão na Casa para que as famílias possam em algum momento retirá-los”.
Maria Marighella, neta de Carlos Marighella, recebeu o bóton do ex-líder da bancada do PCdoB na Câmara dos Deputados e também baiano, Haroldo Lima. Ao receber a homenagem, ela não se conteve e, emocionada, gritou: “Esses deputados amaram o Brasil!”. Chico Lopes (PCdoB-CE) entregou a Olga Crispim, filha de José Maria Crispim. Paloma Jorge Amado e João Jorge Amado receberam pelo pai, Jorge Amado, do deputado Nilmário Miranda (PT-MG). Luiz Eduardo Oest recebeu em nome do avô, Henrique Cordeiro Oest. E João Carlos Amazonas, filho de João Amazonas, recebeu de Renato Rabelo, presidente nacional do PCdoB.
Pelos familiares de parlamentares que não estavam na sessão solene, Haroldo Lima recebeu a devolução simbólica do mandato de Maurício Grabois; Glauber Braga (PSB-RJ) de Abílio Fernandes; Jô Moraes (PCdoB-MG) de Agostinho Oliveira; Miro Teixeira (PDT-RJ) de Francisco Gomes; Edson Santos (PT-RJ) — ex-ministro da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) — por Claudino Silva — único negro na Assembleia Nacional Constituinte de 1946 —; Luciana Santos (PCdoB-PE) por Gervásio de Azevedo; Paulo Teixeira (PT-SP) por Alcêdo Coutinho; e Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) por Osvaldo Pacheco.
Para receber o mandato simbólico de Gregório Bezerra, Jandira Feghali disse que “fizemos questão de chamar uma pessoa que fez história e sofreu demais na luta e na batalha contra a ditadura militar, o ex-deputado Antônio Modesto da Silveira”.
Palavra à sociedade
Em seguida, Jandira Feghali afirmou que uma sessão como aquela no poderia deixar de abrir a palavra à sociedade. E chamou Paloma Jorge Amado para falar em nome do conjunto dos familiares. A filha do ex-parlamentar comunista baiano disse que havia muitas histórias para contar, em especial sobre Claudino José da Silva, mas lamentou que o tempo curto não permitia que ela se estendesse em detalhes. Paloma registrou que a bancada comunista eleita em 1945 foi cassada unicamente pelo que pensavam seus integrantes e pela forma decente com que agiram durante todas suas vidas. “Agora que voltaram a ser deputados, eles devem servir de exemplos a todos”, destacou. Eram pessoas decentes, honestas e generosas, enfatizou.
No auge do atrevimento, disse, “já que sou filha de Zélia Gattai, que foi conhecida como uma menina atrevida, peço licença para cantar quatro versos em homenagem aos catorze e a todos”. E cantou o início da Internacional Comunista: “De pé, ó vitimas da fome / De pé, famélicos da terra / Da ideia a chama já consome / A crosta bruta que a soterra”.
Após a fala de Paloma Jorge Amado, Jandira Feghali deu continuidade “a essa marca das artes, da poesia e do canto”, chamando “um membro da sociedade brasileira que tem tudo a ver com essa história que estamos demarcando na Câmara dos Deputados, que veio da Bahia para falar especificamente nessa sessão que está resgatando a história verdadeira do Brasil”: José Carlos Capinan, músico e poeta. Emocionado, ele disse que era um grande risco “colocar um poeta e suas emoções diante de um publico tão especial”. Após comentar que Jorge Amado inventou a Bahia, e ao fazer isso uma grande parte do Brasil, Capinan afirmou que foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), “uma escola de democracia”, onde aprendeu “o que é ser republicano e democrata”.
Capinan também destacou que os partidos comunistas têm um compromisso muito grande com a história do país e representam a continuidade dos valores que o seu povo representou e criou ao fazer a nação ser a grandeza que é. “Queria lembrar que ontem (12 de agosto) foi dia da fraternidade”, uma alusão à Revolta de Búzios, de 1789, quando negros se revoltaram lutando pela República. “Negros esclarecidos, que liam livros vindos da França na época da Revolução Francesa, que pregavam a liberdade, a igualdade e a fraternidade, que são lemas republicanos e creio que também lemas dos comunistas”, observou, complementando que os protagonistas da Revolta foram enforcados. Capinan encerrou dizendo que algumas de suas canções não teriam sido feitas sem a convivência com os comunistas, entre elas Soy Loco por ti América e Viramundo.
Renato Rabelo
Renato Rabelo falou em seguida, registrando no início que procuraria resgatar a memória de um período significativo da história política brasileira. Segundo ele, a Constituinte de 1946 foi o coroamento no Brasil da vitória da democracia e da liberdade no mundo, com a conquista dos Aliados contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial. “O mundo corria o risco de ser dominado pela fúria da ditadura nazista, durante longo período”, registrou. Para o presidente do PCdoB, as forças democráticas, progressistas, e os comunistas tiveram que enfrentar uma poderosa e gigantesca máquina de guerra (nunca vista até então). “Foi um tempo de arbítrio, perseguição, de campos de concentração e o extermínio hediondo de populações inteiras”, enfatizou.
Segundo Renato Rabelo, só da União Soviética mais de vinte milhões de pessoas perderam suas vidas. “O Exército Vermelho teve um papel fundamental e heroico na destruição das divisões de guerra nazista. O Exército Vermelho foi a primeira força a entrar em Berlim e libertá-la. O impacto da vitória libertária e democrática ergueu uma grande onda de avanço civilizatório em todos os quadrantes do mundo. Nesse rastro civilizacional vieram os avanços sociais e a libertação colonial em regiões significativas da Ásia e da África”, registrou. “A Constituinte de 1946 é expressão no Brasil — considerando a realidade própria de então em nosso país – da avalanche democrática que enterrou o tenebroso terror expansionista nazista”, completou.
O presidente do PCdoB afirmou ainda um sinal eloquente daquele novo tempo foi o crescimento do Partido Comunista do Brasil e a sua legalidade. “Historicamente, a Constituinte de 1946 veio para derrogar a Constituição outorgada em 1937 (expressão da ditadura estadonovista). Daí que os comunistas se empenharam na defesa imediata da revogação dessa Constituição que estava inteiramente superada pelo Novo tempo”, observou. Segundo ele, o centro da luta dos comunistas, expressando este novo tempo libertário que se abria, era a defesa consequente de uma nova etapa democrática para o Brasil. “Assim, o PC do Brasil, na Constituinte de 1946, teve uma atuação marcante e influente”, registrou.
Renato Rabelo disse ainda que os comunistas se dedicaram em toda linha pela defesa coerente da democracia, dos direitos políticos e de organização dos trabalhadores, do direito do povo, da soberania nacional e da reforma agrária. “Numa demonstração da concepção antidemocrática das classes dominantes no Brasil, mesmo diante da força do ascenso democrático do segundo pós-guerra, essas classes não permitiam a existência legal do Partido Comunista”, lembrou. “Temendo o rápido crescimento do Partido, o governo Dutra iniciou uma ofensiva contra a legenda comunista e as entidades sob sua direção”, asseverou. Segundo ele, a restituição dos mandatos comunistas “traz à luz dos nossos dias a memória desta importante época histórica do Brasil e revigora a democracia brasileira”. “Em nome do saudoso camarada João Amazonas, louvemos toda a bancada comunista de 1946”, concluiu.
Molho de esquerda
Em seguida, Jandira Feghali chamou os músicos do Quarteto Capital, do Teatro Nacional Cláudio Santoro, Daniel Cunha Rego, Igor Macarini, Daniel Marques e Augusto Guerra Vicente, que executaram Bachianas número 5, de Villas Lobos, e Sarau na Roça, de Aurélio Melo.
Logo depois se apresentaram Sérgio Ricardo e seu filho João Gurgel, que enriqueceram aquela sessão solene “tão importante para a democracia brasileira”, segundo Jandira Feghali. Eles cantaram as músicas Calabouço e Antônio das Mortes, parceira de Sérgio Ricardo com Glauber Rocha, trilha do filme “Deus e o Diabo na Terra Sol”.
A histórica sessão solene terminou com discursos de deputados saudando o evento. Segundo Miro Teixeira (PDT-RJ), ao pedir desculpas e devolver os mandatos a Câmara dos Deputados fez um grande gesto, “mas as desculpas não satisfazem as famílias dos torturados, desaparecidos e mortos”. Segundo ele, essas são “nódoas da história brasileira”. “Devemos rever também os atos que estamos praticando agora, para que daqui a mais 60 anos não tenhamos que pedir novamente desculpas”, enfatizou.
Paulo Teixeira (PT-SP) destacou os trabalhos da Comissão da Verdade e afirmou que “o país passa a limpo a sua história nesse momento”. “Convido o Supremo Tribunal Federal a se incorporar a esse esforço e reparar os erros jurídicos daquela Corte. Os ministros cassados da época também devem ser lembrados”, disse. Marcus Pestana (PSDB-MG), enfatizou que não se pode reivindicar o futuro aquele que não conhece o passado.Para ele, a sessão solene serviu também para a renovação do compromisso com a democracia.
Ivan Valente (Psol-SP) declarou que a democracia brasileira continua “engatinhando”. “Ainda é uma democracia dos bancos, do monopólio e do agronegócio. Ainda não é uma democracia dos de baixo”, disse. De acordo com o parlamentar, os deputados comunistas foram cassados “porque tinham um projeto generoso de sociedade”.
Silvio Costa (PTB-PE) concluiu os depoimentos afirmando que a Câmara dos Deputados celebrava a vitória de um partido que “compreende as dores e os sorrisos deste país”. Segundo ele, os deputados homenageados optaram por mostrar no Parlamento “o Brasil real”. “Não se pode contar a história do Brasil sem contar a história do PCdoB”, declarou. “O PCdoB é, foi e sempre será o grande molho de esquerda na política brasileira”, concluiu.