A primeira delas é um artigo publicado por Eric Hobsbawm, onde o historiador inglês pergunta o que restou para os vencedores da Guerra Fria. Neste texto, Hobsbawm adverte que, rompido o equilíbrio geopolítico mundial existente até então, com o colapso da União Soviética, as forças destrutivas do capitalismo poderiam movimentar-se sem maiores barreiras com uma consequência nefasta para os direitos sociais e trabalhistas no mundo inteiro. A segunda memória é uma foto feita logo após a queda da União Soviética, mostrando um cafetão numa esquina de Moscou oferecendo uma criança vestida de mulher.

A queda do Muro de Berlim, ocorrida em 1989, é relativamente recente. Passaram-se apenas 24 anos, o que, do ponto de vista histórico, é quase nada, um espirro. As promessas democráticas do capitalismo liberal de então não se realizaram neste período e a história, para a decepção de alguns, não acabou. “E aqui estamos nós discutindo a crise da representação e da democracia”, comentou Tarso Genro. Nos últimos anos, especialmente a partir da crise financeira internacional de 2007-2008, massivos processos de mobilizações de rua ocorreram, por razões variadas, em países como Tunísia, Egito, Espanha, Grécia, Portugal, Estados Unidos, Turquia e, mais recentemente, Brasil. Cada caso com suas particularidades, mas também com um elemento comum: a insatisfação com o atual estado de coisas no mundo e com a qualidade da democracia real vivida (ou não) por milhões de pessoas.

Uma nova formatação do capitalismo no mundo

“A crise existe, é grave e pode gerar monstros”, resumiu Altamiro Borges, blogueiro e presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé. Uma das causas centrais dessa crise, defendeu Miro, é a nova formatação do capitalismo no mundo, com predomínio do capital financeiro. Uma das consequências dessa nova formatação, prosseguiu, é uma mudança na estrutura de classes no Brasil e no mundo. “Nunca a classe ligada ao trabalho foi tão heterogênea como agora”. Uma constatação cujas consequências na esfera da política ainda são pouco consideradas. Para Altamiro Borges, uma delas seria o esgotamento da democracia representativa do ponto de vista histórico. Mas, se há um predomínio do capital financeiro no mundo e a democracia representativa está esgotada, o que é possível esperar do futuro?

Outra consequência da hegemonia do capital financeiro na estrutura de poder mundial está relacionada à atuação dos grandes conglomerados midiáticos. “A mídia não é mais o quarto poder, mas sim o segundo Estado. Ela deixou a fase romântica da imprensa e representa hoje um grande poder econômico”, assinalou o presidente do Centro Barão de Itararé. Reside aí, para ele, o sentido e a urgência de uma lei democrática para regulamentar a mídia no Brasil, que faça cumprir regras que já estão previstas na Constituição, como a proibição do monopólio. “Lamento a posição recuada do governo Dilma neste tema”, criticou Altamiro Borges.

Stédile: vivemos uma carência de democracia real

Analisando o cenário nacional, João Pedro Stédile, do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), apontou problemas na política econômica do governo federal que ajudariam a entender alguns dos motivos dos protestos massivos que tomaram conta das ruas de várias cidades do país em junho. “Há sérios problemas na economia que não podemos varrer para debaixo do tapete. O governo não tem controle sobre as políticas relacionadas com juros, câmbio e transferência de lucros. O Banco Central faz o que quer. Se é o presidente do Banco Central que decide tudo isso, na próxima eleição vamos incluir esse cargo na cédula de votação na urna eleitoral. E aí eu voto no Raul Pont”, brincou.

Stédile contou que vira e mexe ouve algumas vozes palacianas dizendo que se a inflação estiver sob controle e o PIB voltar a crescer na casa dos 3% a crise está solucionada. “Mas nosso problema não é a inflação”, defendeu. Do ponto de vista político, assinalou, temos um problema grave que é a ausência de participação popular no processo de tomada das decisões públicas. “Me digam onde que um jovem de 25 anos vai lá levantar o dedo para decidir sobre algo. Há uma carência de democracia real onde a juventude, que é quem tem mais disposição para participar, não tem espaços onde pode ir para levantar o dedo. Não tem no sindicato, não tem nos partidos, não tem nos governos e muito menos na imprensa. Temos, portanto, uma crise política de participação que exclui a nossa juventude”.

“Reforma do Judiciário tem que ser parte da Reforma Política”

Na avaliação do dirigente nacional do MST, a crise da representação se expressa também no funcionamento do Poder Judiciário. “O Poder Judiciário no Brasil é a única instituição monárquica. Nós precisamos denunciar essa situação e defender uma reforma do Judiciário como parte da reforma política que precisamos fazer neste país. O próprio STF precisa passar por uma reforma democrática”, defendeu.

Para Stédile, os protestos de junho evidenciaram o fim do pacto da conciliação de classes que marcou o período do governo Lula e do governo Dilma até aqui. “Acabou o governo para todos. Agora precisamos tomar uma posição. É urgente a construção de um processo de unidade das forças de esquerda da sociedade em torno de uma agenda de reformas estruturais. O Brasil precisa de um novo projeto de desenvolvimento como nação para resolver problemas urgentes da infraestrutura, da saúde e da educação que afetam o dia-a-dia de sua população”.

“Para retomar um programa de investimentos produtivos e de políticas para atender as necessidades sociais não há outra forma que não o fim do superávit primário”, defendeu ainda Stédile. “Só o Brasil e a Argentina praticam o superávit primário. Nem os Estados Unidos nem a Europa o adotam. Por que insistir nesta tese, como se fosse uma cláusula pétrea, de garantir os 200 bilhões reais por ano para o capital financeiro? Nós temos que chamar eles e dizer: isso fica para daqui a dez anos. Agora nós vamos usar esse dinheiro para atender as necessidades da população”.

Outro ponto dessa agenda seria a Reforma Tributária. Sobre isso, Stédile perguntou: “Por que é que os pobres pagam mais imposto no Brasil? Por que os recursos do orçamento do Rio Grande do Sul vão diminuindo? Porque as exportações de soja não pagam ICM, por conta da Lei Kandir. E ninguém quer revogar a Lei Kandir. Nunca a burguesia agrária desse país ganhou tanto dinheiro. Precisamos fazer ainda a Reforma Agrária e discutir o modelo agrícola que queremos: é para produzir alimentos ou venenos? Estão aí os dados do Ministério da Saúde: 400 mil novos casos de câncer na sociedade brasileira, sendo que uma grande parte deles é causado pelo acúmulo de agrotóxicos no organismo humano. A sociedade precisa decidir se quer continuar produzindo câncer e quem vai pagar essa conta.”

As promessas não realizadas do fim da Guerra Fria

As recordações de Tarso Genro sobre a queda do Muro de Berlim e a desaparição da União Soviética, as observações de Altamiro Borges sobre a nova formatação do capitalismo no mundo e o diagnóstico de João Pedro Stédile acerca do fim do pacto da conciliação de classes no Brasil sugerem fortemente que é preciso pensar a crise da representação política, expressa nos protestos de junho, nos marcos das promessas não realizadas do fim da Guerra Fria. Os temores de Hobsbawm em torno da ameaça da destruição de direitos sociais acabaram se materializando. O Estado de Bem-Estar Social europeu está em ruínas, o sistema financeiro internacional acumula crises nos últimos anos e a ordem internacional apresenta crescente instabilidade com várias guerras regionais. É neste cenário que se trava hoje o debate sobre os problemas e o futuro da democracia brasileira.