Garrincha, passarinho apedrejado
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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a décima crônica da série: “Garrincha, passarinho apedrejado”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
“E pior do que o terremoto, pior do que a torcida, pior do que as manchetes, pior do que o escárnio do rádio e da televisão: foi o juiz.”
Garrincha, passarinho apedrejado
Amigos, a vitória sobre o Chile fez nascer um penacho em cada cabeça e esporas em cada calcanhar. O brasileiro anda por aí com ares do dragão do Pedro Américo. É a epopeia ventando nas nossas caras. Invisíveis cornetas soam por todo o território nacional. Somos uma nação de 75 milhões de almas eretas como lanças. Mas vamos e venhamos: — o triunfo de quarta-feira merece toda essa euforia nacional.
O sujeito que, após os 4 x 2, não chorou lágrimas de esguicho é um mau-caráter. Mas eu dizia que foi uma vitória perfeita e irretocável. Os idiotas da objetividade querem colocar a partida em seus termos táticos e técnicos. O futebol, porém, foi um detalhe miserável, um frívolo pretexto. Pior era o que estava por trás. Amigos, o futebol do Chile não ameaçaria, normalmente, nem o Rosita Sofia. (1)
O perigo estava no massacre emocional do nosso escrete. Eis o sonho do Chile: — já que perderia no futebol, quis ganhar pela intimidação, pelo sarcasmo, pelo medo e, também, pelo apito. Contra os onze gatos-pingados do nosso time, levantou-se toda uma população. Imaginem vocês a luta desigual: — milhões querendo ver a caveira da equipe brasileira, posta em desesperadora solidão. A guerra das manchetes contra os nossos foi simplesmente hedionda.
Eis o que os jornais diziam, em letras garrafais, tomando todo o alto da página: — “Com Didi ou sem Didi, os brasileiros farão pipi.” A palavra pipi, transmitida num berro gráfico, era de arrepiar. Ora, o escrete brasileiro tem seus negros plásticos, folclóricos, divinos. Há, no citado Didi, por exemplo, toda a dignidade racial de um príncipe etíope de rancho. Pois bem: — esses negros líricos, ornamentais, eram xingados como se fossem da Mau-Mau. (2)
Não havia ninguém, no Chile, disposto a aplaudir ou simplesmente reconhecer os nossos possíveis méritos. Ou, por outra: — fomos tratados a pires de leite até o momento em que os locais venceram os russos e os nossos os ingleses. E como éramos os adversários, passamos a ser, automaticamente, os anticristos. Os piores ventos dos Andes, os ventos mais lívidos e mais pungentes, vinham queimar a nossa delegação. Dir-se-ia que a própria natureza se associava à guerra contra o pobre escrete brasileiro.
Aqui, a distância, eu via a hora em que haveria, lá, um terremoto privativo dos brasileiros. Pois bem. E vencemos, amigos. Vencemos contra tudo e contra todos. E reparem que o escrete do Brasil não podia apresentar a sua máxima potencialidade. Primeiro houve uma baixa medonha. No jogo da Tchecoslováquia, com efeito, contundiu-se o deus Pelé. A notícia de sua distensão parou todo um povo. E viu-se uma coisa inédita para a experiência humana: — uma distensão chorada e velada por toda uma pátria.
Mas o povo brasileiro é tão formidável que, na vaga de um gênio, pôs outro gênio. Ou, por outras palavras, na vaga de Pelé, arranjou, improvisou outro Pelé: — Amarildo. E, no jogo seguinte, também Amarildo se machuca. Como se não bastasse, abriu-se, nas canelas de Didi, uma constelação de feridas. E que vimos nós? Levando nas pernas chagas deslumbrantes, Didi foi mais um príncipe etíope do que nunca. Contra o Chile, através dos noventa minutos, ele não perdeu, em instante nenhum, a sua ginga maravilhosa de gafieira.
Ferido na carne e na alma, o escrete do Brasil derrubou o Chile. É possível que até a natureza tivesse preparado algum terremoto contra nós. E ganhamos. Mesmo que atirassem contra o Brasil um furacão da Flórida, sairíamos invictos da batalha. E pior do que o terremoto, pior do que a torcida, pior do que as manchetes, pior do que o escárnio do rádio e da televisão: foi o juiz. Está provado que o árbitro entrou em campo para meter a mão no bolso do Brasil.
O ladrão fez o diabo para impedir o triunfo brasileiro. Inventou um pênalti, ou seja, deu um gol de presente ao Chile. Perseguiu os nossos jogadores com um descaro gigantesco. Não se conhece, na história do futebol, um apito tão cínico e tão vil. O seu pecado mais horrendo, porém, foi a expulsão de Garrincha. Não há no Brasil, não há no mundo, ninguém tão terno, ninguém tão passarinho como o Mané. O sujeito que se aproxima dele tem vontade de oferecer-lhe alpiste na mão. Os pombos aqui da Cinelândia, os pardais do Boulevard Vinte e Oito de Setembro, diriam: — “Nosso irmão, o Mané.” E Garrincha foi expulso. Mas ganhamos assim mesmo. Pois vencemos o juiz, vencemos o escrete chileno, as manchetes, os terremotos, a cordilheira. Apedrejaram Garrincha, e vencemos.
Eis o mistério do escrete e do Brasil. O time ou o país que tem um Mané é imbatível. Hoje, sabemos que o problema de cada um de nós é ser ou não ser Garrincha. Deslumbrante país seria este, maior que a Rússia, maior que os Estados Unidos, se fôssemos 75 milhões de Garrinchas.
Fatos & Fotos, 23/6/1962
(1) O Sport Club Rosita Sofia foi fundado em 1941, no bairro de Cosmos, na cidade do Rio de Janeiro. O time era conhecido por perder para quase todos os adversários.
(2) A Mau-Mau foi um grupo paramilitar que lutou contra o domínio britânico no Quênia. Entre 1952 e 1960, liderou uma das principais revoltas da descolonização do continente africano.