Um dia após a passagem do ex-governador Aécio Neves (PSDB) para o segundo turno da eleição presidencial contra a candidata à reeleição, Dilma Rousseff, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) partiu para o ataque contra o eleitorado da presidenta e disse que a legenda adversária cresce nos grotões. Na condição de sociólogo, FHC analisou que Dilma vem colhendo votos entre a população mal informada que, “coincidentemente, é mais pobre”.
“Não é porque são mais pobres que votam no PT, mas porque são menos informados. Como era a Arena no regime militar: se apoiava nos grotões. Essa caminhada do PT dos centros urbanos industriais para os grotões é um sinal preocupante, porque é um sinal de perda de seiva. Estão apoiados num setor da sociedade sobretudo mal informado. Mas é preciso colocar um pouco na perspectiva, porque, por exemplo, aqui em São Paulo, quando o PSDB ganha, ganha porque tem apoio de pobre, não de rico”, disse o tucano, em entrevista ao jornalista Josias de Souza, no Uol.
FHC reverberou a inconformidade com a votação na esquerda, apesar do massacre midiático que seus governos sofrem permanentemente. Embora tenha evitado citar os nordestinos, são esses eleitores as vítimas preferenciais da militância de direita do Sul-Sudeste, a cada eleição em que a esquerda sai vitoriosa das urnas. Fernando Henrique prefere referir-se aos mais pobres, com esse olhar de cima, como se estivesse sacando dos melhores autores da sociologia e fazendo uma rigorosa e respeitosa etnografia.
O vício dos tucanos, em especial de FHC, de sempre atacar o eleitor de esquerda, caricaturando-o como miserável, ignorante, corrupto e manipulável, atordoa a todos que ainda acreditam que ele possa ter algum traço de finesse e inteligência estratégica. Afinal, atacar com impressões negativas o eleitor que votou em Dilma, pelos mais diversos motivos, só acrescenta mais uma razão para que ele repita o gesto com mais paixão. O tucano não ganha ninguém com isso, pois já tem o voto de racistas, reacionários e elitistas, e ganha mais antipatia de setores, digamos, menos preconceituosos.
Desde que os nordestinos começaram a derrubar, um a um, seus coronéis de direita e eleger políticos progressistas que levaram a região a se tornar a que mais cresce economicamente no país, com taxas acima da média nacional, passaram a ser considerados uma praga. Até então, eram considerados bem informados, mas vítimas da geografia inóspita em que viviam. A classe média paulista se sentia motivada e nacionalista ao enviar donativos para as vítimas da secas que apareciam no Globo Repórter.
Mas nada disso é novo. A moderna elite que viaja a Miami para comprar equipamentos Apple pensa exatamente do mesmo modo que os abastados coronéis dos anos 1940, quando tinham que engolir a popularidade do getulismo. Se, hoje, pobres são “comprados” pelo Bolsa Família, naqueles tempos era o salário mínimo criado junto com tantas outras leis que protegiam o trabalhador. São Paulo, em particular, tinha horror a Getúlio.
Não seria nada surpreendente, se um Pastor Everaldo Qualquer ou um dos dezenas de Bolsonaros que chegam aos parlamentos propusessem o voto qualitativo que a UDN tentou contra Getúlio. Já se falou em impedir beneficiários do Bolsa Família de votar, assim como se propunha que o voto de eleitores com diploma tivesse mais valor que o de operários.
A sutileza do início do século XX era até maior que a desses novos tempos. Enquanto na era das redes sociais, os eleitores de Lula e Dilma recebem os xingamentos mais vis e irreproduzíveis, os eleitores trabalhadores eram, segundo os udenistas, os “marmiteiros”, essa gente que leva bóia-fria de casa para o trabalho, já que, naqueles tempos, não existiam os acessíveis bufês a quilo de hoje ou vales-restaurante. Era bem fácil para um assalariado entender que tipo de gente o desdenhava como “marmiteiro”: gente que sentia nojo do que havia naquelas latinhas ocupadas com arroz e feijão, mas, principalmente, gente que não trabalhava.
Assim como, hoje, o nordestino tem orgulho de sua origem e de seu voto no pernambucano Lula, o marmiteiro também virou sinônimo do orgulho de ser trabalhador. O tiro pela culatra acabou forçando os jornais e políticos conservadores da época a se explicarem sobre o xingamento, cambaleando enquanto tentavam dizer que se referiam a pessoas de mau-caráter e bandidas, e não a trabalhadores.
Este é o tema do artigo de Pedro Motta Lima, direitor da “Tribuna Popular”, jornal do Partido Comunista do Brasil, em 23 de novembro de 1945, que mostra como a elite brasileira sempre foi cínica e atrasada em aceitar a democracia em sua plenitude e menosprezar a inteligência do trabalhador.
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Marmita e marmiteiro na “acepção” udenista
Pedro Motta Lima
Publicado na Tribuna Popular de 23/11/1945

Só preocupada antes com as intrigas preparatórias do golpe armado, a U.D.N. desperta, à ultima hora, – um pouco tarde – de sua negligência em relação a massa eleitoral. E todo o esforço de seus propagandistas se orienta no sentido de neutralizar o efeito do tratamento depreciativo e insolente que deram ao povo no decorrer de sua campanha de cunho nitidamente reacionário.
O tom aflitivo das retificações pelo rádio, os quadros em negrito na primeira página de órgãos que reservam aquele local exclusivamente para as agências informativas estrangeiras – relegando a páginas interiores mesmo os mais importantes acontecimentos nacionais – tudo indica o desespero de causa de corrilhos antidemocráticos já desmascarados e batidos nos primeiros encontros em campo aberto com o povo.
Pretendem agora manter polêmica sobre o significado exato de “marmita” e “marmiteiro”… Procuram negar, a princípio, que o candidato das supostas “elites”, assim apresentado acima da “ralé”, do “populacho” da “escória demagógica dos morros”, haja usado o termo que está sendo glosado nas ruas. Mas ao mesmo tempo admitem que ele o tenha proferido, e então convidam os trabalhadores e todo o povo a aplaudí-lo, pois ninguém ignora – acrescentam com uma pasmosa coragem de afirmar – que “marmiteiro”, em linguagem corrente, quer dizer sinecurista, lucrador sem escrúpulos.
Vamos transcrever, sem a alteração de uma vírgula, o que diz em seu solene artigo de fundo de ontem o “Diário de Notícias”: “Que ele a tivesse proferido, entretanto (ele, o brigadeiro), e os trabalhadores e todo o povo somente teriam motivo para aplaudi-lo, pois ninguém nesta cidade, onde decerto nasceu a acepção jocosa de “marmita”, ignora que corresponde esta à vantagem fácil, sinecura, proveito escuso, chamando-se, portanto, de “marmiteiros” os sinecuristas, os lucradores sem escrúpulos, os apropriadores de recursos ilegais, e nunca, de modo nenhum, aos pobres homens que conduzem para a o trabalho a sua minguada refeição em vasilhas chamadas de marmita na acepção própria desse vocábulo”.
Na desorientação em que se encontram, chegam, antes, a atribuir a “nazistas” e “quinta-colunas” a famosa frase. Os nazistas, porém , não hão de antipatizar o candidato da U.D.N., até porque suas ideias coincidem em muitos pontos: no conceito de puro sabor goebbeliano sobre o comunismo, na resistência à legalização e regulamentação do fato social já tão comum, o divórcio (que, sobretudo, as chamadas altas esferas praticam hoje em dia sem escândalo, na sustentação do princípio racista segundo o qual os bandeirantes, penetrando nas terras de nossos silvícolas, haviam “firmado o direito da raça branca”…
Não. Quinta-colunistas, nazi-integralistas não estariam interessados em deixar mal o candidato anticomunista, anti-divorcista e racista, em benefício da “patuleia”, da “escória dos morros”, das “crioulas robustas” que o sr. J. F. de Macedo Soares citara, pensando ridicularizar com isso as manifestações da autêntica e respeitável massa popular proletária. Não houve nenhuma intriga de quinta coluna, quando o brigadeiro Eduardo Gomes usou, em relação ao povo que reclamava a convocação da Constituinte, esta outra expressão menos pitoresca, mas ainda mais ofensiva: “Malta de desocupados”. O povo tem boa memória. E se lhe faltasse a memória, aí estão as coleções dos jornais udenistas para refrescá-la.
Socorram-se os udenistas de exegetas ou etimólogos para dar-nos a “verdadeira” acepção de marmita e marmiteiros, aquela em que seu candidato haveria empregado a palavra fatal. Não acham ridícula essa desculpa de papa-terra? Não vêem que se afundam cada vez mais?
Fiquem avisados os cidadãos que receberam de bom humor o aleive e respondem a seus useiros e vezeiros agressores, já não apenas com o desprezo de sempre, mas com a chapa de Yeddo Fiuza, candidato do povo: quando os udenistas falam em “marmiteiros”, querem referir-se, explicam só agora, a sinecuristas, lucradores sem escrúpulo, beneficiários do “cambio negro” e de negociatas como a da banha, a dos pneumáticos e a do embarque das batatas para a Espanha franquista, em plena guerra… Estão se referindo, portanto, a alguns de seus próceres. Nunca – afirma o “Diário de Notícias” – de modo nenhum, aos “pobres homens” que conduzem para o trabalho a sua minguada refeição em vasilhas chamadas de marmita.
Pois sim! Os marmiteiros, a malta de desocupados, a patuleia, a ralé, o populacho, as crioulas e os crioulos robustos, a escoria dos morros, os “pobres homens” tomam nota de todos esses sinais de pânico nos arraiais do candidato das “elites”. Sorriem da petulância com que lhes falam em “campanha de regeneração” os responsáveis, diretos ou indiretos, por esse estado de penúria em que vegetam, até hoje, mais de dois terços da população brasileira.
Sorriem porque confiam em sua arma invencível: o voto secreto. Porque estão convencidos de sua vitória pacífica nas urnas. Porque elegerão para a presidência da República o candidato de união nacional, o candidato do povo, Yeddo Fiuza, e para a Assembleia Constituinte os mais provados dirigentes da vanguarda proletária e popular, os representantes da cultura, das artes, das letras, da técnica, da ciência, combatentes da F.E.B, da F.A.B e da Marinha, professores e estudantes, camponeses e agricultores, homens do comércio e da indústria, cidadãos dos mais diferentes credos religiosos e filosóficos, todos acordes em trabalhar pela unidade, pela democracia, pelo progresso do Brasil.