O golpe militar, dado em 1º de abril, estava para completar oito meses dentro de poucos dias. Os generais no poder começaram a se desmascarar mesmo diante dos setores liberais que os haviam apoiado. Estes, se pensando espertos, esperavam uma operação cirúrgica por parte das Forças Armadas. Elas removeriam à força o presidente Jango e seus aliados e, gentilmente, lhes ofereceriam o poder, sem os aborrecimentos da participação operária e popular.

Contudo, os generais tinham outros planos. Logo no dia 9 de abril o Comando Supremo da Revolução promulgou o primeiro Ato Institucional (A-I). O texto dizia: “fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimidade”. Ironicamente, o golpe havia sido dado em nome da defesa da Constituição e do regime liberal-democrático que estavam sendo ameaçados pela subversão janguista e comunista.
O novo presidente agora tinha a prerrogativa de apresentar emendas constitucionais, que teriam apenas 30 dias para ser apreciadas no Congresso, sendo necessário para aprová-las maioria simples e não mais os 2/3 dos votos como determinava a Carta ainda vigente. Poderia decretar Estado de sítio por até 60 dias, sem autorização do poder legislativo, teria ainda o direito de suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão brasileiro; cassar mandatos e demitir servidores públicos. Para garantir que um dos seus pares pudesse galgar à presidência, foi revogada a cláusula constitucional que impedia que oficiais da ativa pudessem ser presidentes.
A “toque de caixa”, em 11 de abril, um Congresso desfalcado elegeu o general Castelo Branco. Poucos meses depois, em junho, já estavam cassados cerca de 50 deputados e senadores. Entre eles o ex-presidente Juscelino Kubitscheck, que apoiara discretamente o golpe e votara em Castelo Branco na esperança de ser mantido na vida política.
A legislação determinava que fosse realizada eleição direta para presidente em 1965. O general-presidente ao tomar posse se comprometeu a respeitar o calendário eleitoral. Contudo, pouco depois, o governo arrancou do Congresso a prorrogação do mandato por mais um ano. Diante dessa medida, que lhe roubava a possibilidade de chegar à presidência, o líder civil dos golpistas, Carlos Lacerda, passou a fazer críticas ao novo mandatário.
A ditadura já havia cassado os governadores de Pernambuco, Miguel Arraes; de Sergipe, Sampaio Dória; e do Rio de Janeiro, Badger da Silveira. Agora, colocava seus olhos gulosos sobre o estado de Goiás. Neste caso, porém, tinha um complicador. O governador Mauro Borges, apesar do seu passado democrático, havia ficado do lado do golpe e tinha apoio político. Mas para o seu azar, os chamados militares “linha-dura” não perdoavam seu apoio à posse de Jango em setembro de 1961 – quando fez uma aliança com Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, considerado um dos piores inimigos do novo regime.
Quando chegou o início de novembro de 1964, os boatos sobre uma iminente intervenção no Estado eram bastante fortes. Os Inquéritos Policiais Militares (IPM) procuravam por todos os meios – inclusive torturas – incriminar o governador em atividades consideradas subversivas. Este, por sua vez, prometia resistir e não entregar o poder sem luta. Inúmeras manifestações populares eclodiram na capital do estado. Dizia-se que se pretendia reeditar, em menor escala, a campanha da legalidade que havia garantido a posse de Jango. Mas, os tempos eram outros.
 
PCdoB avalia o golpe militar e prepara a resistência armada

Em agosto daquele mesmo ano, a Comissão Executiva do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) se reuniu e fez uma avaliação dos acontecimentos que haviam culminado no golpe militar. O documento aprovado criticava asperamente a política reformista adotada pelo PC Brasileiro, o maior partido da esquerda socialista brasileira naquele momento. A tese “da revolução pelas reformas redundou em completo malogro”, afirmava o texto. E, de maneira pioneira, alertou que o golpe tinha vindo para ficar e não era algo passageiro, como muitos ainda pensavam.
Ele, então, passou a listar as lições que deveriam ser extraídas daquele processo. A primeira delas era a constatação da “inviabilidade do caminho pacífico” para se derrotar a ditadura e conquistar um novo regime. Por isso, o partido procurou aumentar o ritmo no trabalho de preparação da luta armada. Ainda no mês de março de 1964, em meio à movimentação golpista, seguiu para a China o primeiro grupo de comunistas que faria um curso político-militar. Eram nove militantes, comandados por Dynéas Aguiar.
No país, o primeiro passo foi iniciar o processo de escolha de locais onde seria implantada a futura guerrilha. Desde o início – mesmo antes do golpe – Goiás havia chamado a atenção dos dirigentes do PCdoB. Nas suas cabeças ainda estava fresca a experiência de resistência armada ocorrida na região de Trombas e Formoso. Em 1963, Ângelo Arroyo e Dynéas Aguiar já haviam feito uma viagem de reconhecimento daquela área.
O pequeno PCdoB, recém-reorganizado, começou a adquirir alguma expressão naquele estado no segundo semestre de 1963. Um dos marcos desse processo de expansão partidária foi a palestra realizada por João Amazonas na Faculdade de Direito de Goiás no final de 1963. Ela causou um forte impacto entre alguns jovens, que procuravam alternativas para sua militância política. A maioria deles provinha do PCB e das Ligas Camponesas. Todos estavam convencidos de que somente a luta armada conquistaria um novo regime de democracia popular. O golpe militar apenas fortaleceu essa convicção.
Naquela época ingressaram no Partido, entre outros, Tarzan de Castro, Élio Cabral de Souza e Diniz Cabral Filho. Outro jovem que se impressionou com a exposição do veterano dirigente comunista foi o líder estudantil Neso Natal, que então pertencia ao PCB. Com a incorporação desses novos militantes podia-se dizer que o PCdoB tinha fincado suas raízes nesse estado.
O dirigente nacional responsável por dar assistência ao Partido em Goiás e Brasília era Ângelo Arroyo, um dos mais animados com a alternativa armada. Logo depois do golpe militar ele e sua família se transfeririam para aquela região, indo morar no Distrito Federal.
 
O Assalto ao Tiro de Guerra

Em novembro já ia avançando os planos da ditadura para destituir o governador Mauro Borges, que ameaçava resistir. A retórica se radicalizava. Falava-se em armar o povo e já começavam a aparecer os primeiros voluntários. O professor goiano Marcantônio Dela Corte afirmou: “a direção do Partido Comunista (do Brasil) teve várias conversas com o senador Pedro Ludovico que era enfático ao afirmar que haveria resistência”. De fato, a retórica dos membros das forças políticas que comandavam o estado era bastante radical.
Diante desse quadro dramático, alguns militantes do PCdoB começaram a se preparar para uma possível resistência armada contra a intervenção do Exército, que poderia ser o estopim de uma luta mais ampla e radicalizada contra a ditadura. A guerra popular já povoava as cabeças daqueles militantes. Mas, antes de tudo, era preciso conseguir as armas. Então, surgiu a ideia de assaltar o Tiro de Guerra de Anápolis, que estava praticamente desprotegido contra uma ação desse tipo.
Tudo indica que tenha autorizado aquela operação o dirigente Ângelo Arroyo, membro da Comissão Executiva do PCdoB. Essa informação apareceu num depoimento dado por Michéas Gomes de Almeida – o Zezinho do Araguaia –, que foi um ativo militante do Partido em Goiás naquela época. Vários depoimentos de presos políticos reforçam essa opinião.
Numa entrevista, dada ao autor deste artigo, Neso Natal afirmou que o papel de Arroyo foi o de apoiar a ideia elaborada por ele. Continua: “Primeiramente, fui ao Tiro de Guerra, em Anápolis-GO, fazer um levantamento das possibilidades reais de se executar a ação. Depois, com dados concretos, levei a proposta aos outros companheiros (…). A ação se deu através de um carro que Belmiro conseguiu com um taxista chamado Miguel Batista de Siqueira, que também participou da ação e que, por ironia, posteriormente, foi o responsável pela nossa denúncia e consequente prisão”.
A movimentação para a invasão do quartel se deu na madrugada do dia 13 para o dia 14 de novembro. Nela estavam envolvidos Neso Natal, Daniel Ângelo da Silva, Belmiro Vieira de Rezende, José Mendes Vieira e Jaime José Mendes – pai e filho. A Operação em si foi um sucesso, maior do que esperavam. Eles chegaram com o táxi de Miguel Batista e não encontraram nenhum segurança no local. O único trabalho que tiveram foi carregar o pesado armamento para o veículo. Eram 64 fuzis antigos, cuja data de fabricação era 1908.
Na manhã seguinte foi uma confusão. Tropas do Exército se deslocaram até Anápolis e colocaram barreiras em todas as estradas, fechando o acesso ao aeroporto. O governador de Goiás, por sua vez, declarou que “o furto das armas de Anápolis não passava de uma farsa destinada a precipitar as perseguições por parte dos duros que queriam vê-lo derrubado da chefia do executivo estadual”. Essa foi a linha de defesa adotada pela oposição liberal-democrática.
Até mesmo Flávio Tavares, um jornalista combativo que se vincularia à luta armada, se apressou em dizer que aquilo não passava de uma provocação montada pelos próprios militares. Na sua coluna no jornal Última Hora escreveu: “Ninguém – ou quase ninguém – em Goiás levou a sério o roubo de fuzis do Tiro de Guerra de Anápolis. Das 62 peças misteriosamente desaparecidas não mais de 3 ou 4 estariam em condições de funcionar (…). Tudo parece tratar-se de uma típica provocação, minuciosamente engendrada e preparada, com o que se cristalizaria e ideia de que Goiás se transformara num centro de ação de guerrilheiros”.
A situação de Neso Natal e de seus companheiros ficava cada vez mais difícil. Nada indicava que o governador pretendia resistir, muito menos de armas nas mãos. Tudo começou a desmoronar quando, amedrontado pelo clima de terror criado, o motorista da operação se apresentou aos órgãos de segurança estaduais e delatou todo o esquema. Em 16 de novembro, dois dias depois do assalto, a própria polícia de Mauro Borges prendeu o grupo e apreendeu o armamento, que estava na casa de Belmiro Vieira. Uma nota irônica foi que a repressão acabou levando um fuzil a mais – e mais moderno –, que pertencia aos militantes locais do PCdoB. Era um dos remanescentes de outra expropriação de quartel, ocorrida um ano antes durante o levante dos sargentos em Brasília.
Após o assalto ao Tiro de Guerra, em 23 de novembro, o Supremo Tribunal Federal deu habeas corpus ao governador e confirmou que somente a maioria da Assembleia Legislativa poderia cassá-lo. Mesmo assim, no dia 26 de novembro, o general Castelo Branco determinou a intervenção no estado e a destituição de Mauro Borges. A única reação foi a de um popular que agrediu o oficial que ia entregar o ultimato ao governo que caía.

A derrota e o esquecimento

Existe, no entanto, a polêmica sobre qual teria sido a posição da direção central do PCdoB naquele acontecimento. Tudo indica que ocorreram divergências entre os dois dirigentes nacionais que estavam em Goiás. Eles não se entenderam quanto aos rumos a serem dados durante a crise que levou à cassação do governador.
Em depoimento à polícia alguns militantes presos em 1966 disseram que “Vergatti afirmava que o roubo do quartel de Anápolis não foi feito com autorização dada pelo partido e sim uma ordem pessoal de Aluízio (Arroyo)”. Em outro depoimento à polícia José Rodrigues Neto afirmou que “Vergatti informou a ele que aquela ação tinha sido executada pelo PCdoB irrefletidamente”.
Zezinho do Araguaia, numa entrevista, narra o que aconteceu: “E então aconteceu o golpe militar. E começaram a cair os governos dos estados e nós precisávamos garantir Mauro Borges. O Ângelo Arroyo era o nosso orientador. Depois foi necessária a retirada dele do estado e veio o Luís Vergatti. Quando ele chegou todo o trabalho feito pelo Arroyo caiu por terra. Então houve um confronto entre os militantes. (…). Já estava tudo pronto para a tomada do Tiro de Guerra de Anápolis, em seguida o 10º BC e depois Ipamerê. Existia todo um projeto já estabelecido com o Arroyo. Quando veio o Vergatti, mudou tudo”.
A mudança de posição do Partido na região – que pode ser explicada pela substituição de Arroyo por Vergatti – se expressa no desabafo feito por Neso Natal vários anos depois: “tivemos um sentimento de que as pessoas, de uma forma geral, fugiam de qualquer situação que as aproximasse daquela ação. Inclusive houve um encontro com alguns companheiros que agiram como se não nos reconhecessem. Ficamos em uma situação complicada. Em suma, a nossa ação foi desprovida de qualquer respaldo partidário, sobretudo no momento seguinte”. Possivelmente, a direção nacional do PCdoB não tenha aprovado a ação.
Neso Natal permaneceu preso cinco meses – de novembro 1964 a abril 1965 – e saiu graças a um habeas corpus. Alguns anos depois acabou sendo condenado a seis anos de prisão, mas já estava afastado do PCdoB e estudando na União Soviética.
O comportamento dele e de seus camaradas foi exemplar diante de seus algozes, não revelando suas relações com o PCdoB. Isso contribuiu para que, na época, o nome do Partido não fosse relacionado àquela operação militar. O que poderia ter ocasionado um aumento da repressão sobre os comunistas. As relações existentes entre Arroyo, o PCdoB e o assalto ao Tiro de Guerra de Anápolis só viriam à tona quando ocorreram a “queda” do Partido no estado e a prisão de dezenas de militantes, em 1966.
A saga de Neso Natal não acabaria aqui. Em 1975, após seu retorno da URSS, foi preso em Santos. Ele mesmo nos contou o seu martírio nas mãos da repressão: “fui levado para a sede do DOPS local onde durante dois dias fui muito torturado. Depois acabei sendo transferido encapuzado para o DOI-CODI em São Paulo, onde houve a continuidade das torturas. Tiraram a minha roupa, jogaram água gelada em meu corpo, me conduziram para uma sala acústica. Havia uma cadeira de madeira e no lugar para se sentar tinha uma chapa de zinco ligada a alguns fios elétricos – era a temida cadeira do Dragão. Encheram-na de sal grosso, amarraram meus punhos e pernas, enfiaram um fio em todas as partes íntimas do meu corpo, prenderam esses fios desencapados também nos dedos e nos ouvidos e começavam as torturas (…). Ali fiquei dois meses e logo transferido para o DOI-CODI em Brasília, onde fiquei três meses. Fui então submetido a torturas psicológicas, que me fizeram perder a noção do tempo, espaço e temperatura (…). Depois acabei sendo, finalmente, transferido totalmente debilitado e desequilibrado para a Casa de Detenção CEPAIGO, em Aparecida de Goiânia, totalizando dois anos de prisão”.
O assalto ao Tiro de Guerra de Anápolis, pela polêmica que gerou no seio do próprio Partido, não foi incorporado à sua história ou mesmo à história de resistência à ditadura militar. Muitos ainda o acusaram de ter contribuído para o desfecho negativo da crise em Goiás, acarretando a derrubada do governador. Contudo, essa afirmação não se sustenta. A cassação viria com ou sem o assalto. Por sinal, ela já estava em curso antes dele. Nem mesmo uma decisão do Supremo Tribunal Federal a favor de Mauro Borges conseguiu salvá-lo. Caiu sem a resistência que havia prometido.
A ação comandada por um jovem comunista de 22 anos seria apenas o prelúdio de outras tantas que seriam realizadas pela esquerda brasileira nos anos seguintes. Certas ou erradas eram a demonstração evidente da existência, entre o nosso povo, de setores que não aceitavam passivamente o arbítrio e se propunham lutar até o fim – com o risco da própria vida – contra ele. Podemos mesmo dizer que foi o conjunto dessas derrotas momentâneas – como a do assalto ao Tiro de Guerra de Anápolis – que cimentou o caminho para a superação da ditadura e a conquista da democracia em nosso país.

* Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos pela Editora Anita Garibaldi.

Fontes

– Entrevista de Neso Natal, concedida ao autor por e-mail em 27-10-2009.
– Entrevista com Dynéas Aguiar, concedida ao autor em 03-11-2006.
– Entrevista com Michéas Gomes de Almeida, concedida ao autor em 29-03-2007.
– Depoimentos de militantes do PCdoB e da Ala Vermelha presos em Goiás (1967-1970) – Processo BNM_003 – Projeto Brasil Nunca Mais.

Jornais: Última Hora, novembro de 1963.


Bibliografia

DELA CORTE, Marcantônio. 47 anos do assalto ao Tiro de Guerra de Anápolis. In: Sítio Vermelho 14-12-2011.
SALLES, Antonio Pinheiro. A ditadura Militar em Goiás: depoimentos para a história. Goiânia: Poligráfica Off-set e Digital, 2008.