Não é novo o debate sobre o Partido de vanguarda, marxista-leninista e de massas. Não poucas vezes relacionou-se com respostas político-ideológicas oportunistas, que acabaram por descaracterizar o caráter do Partido, transformando-o em organizações amorfas e eleitoreiras. Mas também se pode relacioná-lo com respostas necessárias de caráter revolucionário.

Um desses debates ocorreu no âmbito da esquerda italiana, nos idos da década de 60. Vários de seus protagonistas, buscando atualizar tais respostas, deram contribuições importantes, mesmo que depois não as tenham sustentado. Transcrevo livremente*, para ajudar no debate, algumas passagens das formulações feitas então, adaptando-as para nossa realidade.

O objeto em questão é que, partindo de uma visão sobre a estratégia de nossa luta e o papel do PC, torna-se essencial valorizar a adequação do perfil organizativo do partido. Ou seja, um partido de vanguarda estruturado como partido de massas exige características específicas de estrutura e funcionamento. O partido segue sendo encarado como partido de militância política, de homens e mulheres que se emancipam, capazes de se solidarizar e comprometer com a luta dos explorados, que aprofunde as marcas centrais de um partido da classe, de vanguarda, de luta e que permanece com a exigência de uma estrutura centralizada, democrática e unitária para cumprir seu papel. Mas, ao mesmo tempo, estrutura-se como uma formação grande e articulada, que dialoga e interage com a sociedade em suas múltiplas vertentes.

É inescapável que um tal perfil organizativo exija desenvolvimento de dois pilares centrais: 1) que seja um partido de ampla militância política e mantenha organicidade e não apenas um partido de quadros; 2) que atenda a novas exigências na aplicação da democracia interna e centralismo. Vejamos um de cada vez.

A ideia do partido leninista em seu tempo e em suas condições foi a de um partido dotado de unidade de vontade e ação, a definição democrática dos objetivos, a ação sem reservas uma vez decidido o rumo, o critério de eficácia na ação. Uma disciplina livre e consciente, encarando a liberdade como consciência da necessidade. O ato de militância como compromisso de toda a personalidade, não como sacrifício ou suspensão da liberdade individual, mas assentada inerentemente numa justa teoria, numa justa linha política e ideológica e fidelidade sem reservas à causa proletária e à luta da massa popular. Partido de luta, voltado permanentemente para a crise revolucionária, caminho da conquista do poder. Era e continua a ser assim: sem comunistas assim não há movimento revolucionário consciente.

Mas essa formação exibe capacidade imperfeita para expressar de maneira articulada o conteúdo e as linhas de desenvolvimento da vida social. Porque, como se argumenta com frequência e corretamente, a sociedade não vai começar a mudar apenas a partir da conquista do poder político. O próprio papel do PC e sua organização são, por assim dizer, prefiguração da sociedade futura, e tem forte papel pedagógico para forjar a consciência de classe e a hegemonia das classes avançadas em toda a sociedade. No limite, aquela formação exigiu mediações moralistas ou impositivas. Sem decair nesse princípio e no compromisso global da pessoa, sobretudo para os quadros, no novo perfil organizativo é preciso não contrapor de modo absoluto a opção de militância política às esferas da vida social, profissional, familiar, acadêmica, etc. O ato de militância perde seu caráter abstrato: segue sendo opção radical e cotidiana de cada um, implica opções políticas e ideológicas, mas não exige a suspensão do privado, e sim sua qualificação. A figura de militante e do homem e mulher sociais coincidem mais (embora não plenamente antes da nova sociedade). Busca-se comprometer a capacidade, vocação e talento pessoal de cada qual, nas condições em que ele pode e quer atuar, segundo seu nível de assimilação ideológica. E, a nível massivo, a militância vai se apresentar com feições setorializadas, articuladas politicamente, como várias gradações de um continuum.

Isso exige o trabalho permanente por desenvolver sólidos valores ideológicos (não o indivíduo de têmpera especial, mas de consciência política revolucionária e compromisso com uma luta de fins objetivados), vai exigir clareza e positividade quanto ao projeto político, linhas de trabalho político em áreas diversas da vida social, e sua articulação com o projeto político global do Partido. E na estrutura organizativa, exigirá promover essa adesão à realidade social e às diversas formas da luta social, este emprego geral de capacidades e interesses. Portanto, uma tal compreensão aponta para o reforço da organicidade, em variadas formas, capaz de permitir a generalização e socialização das experiências e envolvimentos de cada um. Aponta também para a relativização dos critérios exclusivamente territoriais, bem como maior elaboração de políticas para alimentar esse trabalho pela base e intensificação da formação teórica e trabalho ideológico nas bases. Assim pode-se instaurar um nível superior de grau de atividade dos filiados e de participação individual na vida coletiva do partido.

Quanto à democracia interna e centralismo, a questão não é menos prenhe de consequências. Já tratamos em artigo anterior da ideologia revolucionária como bases fundantes do PC – essa a consequência essencial da contenda entre consciência e espontâneo em Que Fazer? e daí a compreensão da necessidade da ausência de pluralismo ideológico no interior do Partido – donde a ausência de tendências consolidadas em seu interior. O princípio do centralismo democrático trata do problema da unidade e disciplina no interior do Partido. Lênin entendia a promoção da unidade e disciplina como decorrentes da fidelidade à revolução (tenacidade, abnegação e heroísmo); a capacidade de fundir-se às mais amplas massas; decorrência de uma acertada orientação política da vanguarda, com a condição de ser comprovada pela experiência das próprias massas. Advertia que isso só se forma mediante esforços prolongados e dura experiência. E concluía: isso é facilitado por uma teoria revolucionária que não é dogma mas só se forma em estreita vinculação com a atividade prática de um movimento verdadeiramente de massas e verdadeiramente revolucionário. Uma dialética revolucionária genial, completamente livre de dogmatismo e voluntarismo! Portanto, insista-se, a unidade e disciplina era concebida primariamente não como questão de métodos, mas como problema essencialmente da linha política e de conteúdos ideológicos ajustados: interpretar adequadamente as exigências da situação, o nível de consciência, as possibilidades, e transformá-las em iniciativas e objetivos adequados, gerando o consenso. A não ser assim, o estímulo ao debate se transforma em cisões e paralisia, de instrumento se transforma em fim, leva à perda de objetivos unitários. O Centralismo Democrático dá conta disso, como princípio ativo: sem contraposição entre os dois termos mas em relação dialética. Centralismo só é possível com uma linha democraticamente adotada – senão degenera em culto à personalidade ou em linha imprecisa, de compromisso, deformada. Democracia sem esforço unitário constante e sem disciplina de todos, leva a grupos organizados e acaba por paralisar a própria polêmica e indagação. Podem predominar mais ou menos, segundo as circunstâncias e a maturidade da força revolucionária. Falamos então da necessidade de aplicação ampliada da concepção leninista do centralismo democrático para esse tipo de partido de vanguarda como organização de massa.

Mas há riscos imanentes a esse caminho do PC de massas. Também não é uma discussão nova. A extensão da formação organizativa não compromete inerentemente o caráter de vanguarda e a identidade revolucionária do partido; ao contrário, pode potenciá-los porque o liga mais com o movimento social e dá mais exequibilidade a seu projeto político. Mas uma formação grande pode criar maiores problemas quanto ao caráter de classe no tocante à composição de suas fileiras e também quanto ao conteúdo de sua ação: porque a ação do partido passa a se relacionar com diferentes segmentos sociais com base em plataformas comuns; porque há maior pressão por soluções político-organizativas oportunistas, por tendência à burocratização, a soluções de compromisso, a inserir-se nos costumes e hábitos da classe dirigente; cria-se tendência a projetar quadros para a atuação política em detrimento da dedicação às questões de partido e porque o caráter massivo pode tender a sobrepô-lo a outras organizações do movimento, comprometendo a autonomia destas e tornam maiores as pressões corporativistas.

Termino aqui a livre citação entremeada com reflexões próprias. Creio que tem sua validade para estimular o debate. Sem dúvida, apontam para soluções mais originais quanto ao perfil militante e perfil de nossas organizações de base. Podemos falar, quem sabe, de critérios mais amplos de militância, ou de diferenciação de direitos e deveres entre filiados e militantes, com formas de organização variadas, com reforço da organicidade pela base, tendo local de trabalho como prioridade. Saberemos extrair consequências – inclusive de adaptações normativas – das conclusões a que chegarmos num debate paciente e mais ou menos prolongado.

O importante é saber que as opções a serem feitas nesse esforço de atualização de nossa concepção e prática de Partido, mesmo quando corretas, implicam em riscos e custos, e estes exigem contrapesos efetivos para assegurar o caráter do PCdoB. (…) Uma coisa parece certa desde sempre: quanto mais ampla a base militante, maior formação, coesão e dedicação se exigem das direções. (…)
Nossa trajetória própria, em 81 anos, já o disse antes, foi marcada pela modelagem e por difícil clandestinidade. Foi própria de um partido de quadros, numericamente restrito. Deveríamos valorizar mais nossa experiência própria – como a da UJS, essencialmente original e inovadora -, nossa originalidade enquanto povo e enquanto processo político nestes alvores do século XXI. Por isso a afirmação do documento da 9a. Conferência: quanto mais madura se faz a indagação de um caminho próprio à transformação em nosso país, tanto mais deve maturar a resposta sobre as linhas de estruturação do Partido. São ainda tempos de defensiva estratégica, de defensiva ideológica, afetando a opção militante. Mas se raia novo ascenso da consciência crítica e transformadora, perseveremos em sustentar nossa coerência revolucionária, que será referência para a nova geração de militantes políticos que despertará. E saibamos abrir as portas do PCdoB para acolhê-los em nossas fileiras, dotá-los de consciência política e organização, emancipá-los com a vida militante num partido de rica vida interna e de atuação entre as massas.
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* Tenho anotações oriundas de um grupo de estudo dos idos de 72-73, manuscritas. O debate foi retratado pela New Left Review, e ocorreu “pela esquerda” do PCI, que resultou na formação do Il Manifesto, agrupando Lucio Magri, Rossana Rossanda, Aldo Natoli e outros, que acabaram sendo expulsos do PCI em 1969, apodados de “trotsquizantes”. Posteriormente Lucio Magri renegou as contribuições que dera ao debate. A pequena e combativa biblioteca do grupo de estudo de que participei se perdeu e, desde então, não tenho a publicação nem como referi-la. Sei entretanto que as transcrições são quase literais. De todo modo, a par do deslize acadêmico que isso representa, creio que mesmo assim podem contribuir para esclarecer aspectos importantes do debate proposto.

Publicado em 11/6/2003