Haviam se passado apenas quatro meses da saída do último presidente-general, João Figueiredo, quando um livro escancarava e detalhava as torturas praticadas durante a ditadura formalmente encerrada. Era julho de 1985, quando, sem alarde, Brasil: Nunca Mais chegou às livrarias. A obra se tornou possível pela ousadia de advogados, religiosos e uma rede de contatos que garantiu, clandestinamente, a preservação de processos e documentos anexos – mais de 700. Esse conteúdo hoje é acessível a todo interessado (http://bnmdigital.mpf.mp.br). Na época, foi um risco. Ainda maior quando os organizadores decidiram resumir as informações em um livro.

Dom Paulo Evaristo Arns e o reverendo presbiteriano Jaime Wrigt estiveram à frente do projeto, que envolveu, entre outros, o ex-ministro e ex-preso político Paulo Vannuchi, o jornalista Ricardo Kotscho e o escritor Frei Betto. Atualmente na 40ª edição, o livro, que se tornou uma referência para os movimentos de direitos humanos, é tema do documentário Coratio, dirigido por Ana Castro e Gabriel Mitani e que será exibido neste sábado (4), às 14h15, no Memorial da Resistência de São Paulo (Largo General Osório, 66, Luz). Depois da exibição, haverá debate com Paulo Vannuchi (membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos), o também ex-preso político Anivaldo Padilha e o cientista político Bruno Paes Manso.

Além de lembrar os 30 anos da publicação do livro, o documentário propõe também refletir sobre a persistência da expressão “nunca mais”. Os diretores do filme lembram que a tortura continua sendo uma prática recorrente no país e lamentam certo esquecimento de fatos passados no período autoritário. “A preservação da memória, o aprendizado a partir das experiências anteriores são hábitos pouco cultivados no país. O livro foi um sucesso, vendeu muito, marcou uma época. E mesmo assim caiu no esquecimento”, constata Ana Castro, para quem há um “déficit” entre a realidade e o que ensinam a escola e a mídia.

Com 15 anos de profissão e passagens pela revista Época, pela TV Globo e pela Pública, agência de reportagem e jornalismo investigativo, Ana pediu demissão da Globo, onde há 12 anos trabalhava como produtora e editora. Ela conta que resolveu fazer o que sonhava. O nascimento de sua primeira filha, Tarsila, foi decisivo na guinada. “A maternidade me deu forças para ir atrás de outros sonhos e de realizar projetos significativos para mim, mas também que pudessem contribuir de alguma maneira para a sociedade.” Há pouco menos de dois meses, Tarsila ganhou a companhia de Ernesto.

Sem punições para os violadores de direitos humanos, para agentes do Estado que praticaram abusos, a vida continuou como se tudo aquilo fosse natural e até necessário. “Vivemos uma espécie de limbo da história”, diz Ana.

Leia a íntegra da entrevista.

O Brasil: Nunca Mais surgiu da audácia de algumas pessoas, que conseguiram montar uma operação que envolveu cópias de processos e uma grande rede de apoio. Você diz que se impressionou com o que chamou de esquecimento dessa história. Por que acha que isso aconteceu?

Acredito que o Brasil já se esqueceu de muita história. A preservação da memória, o aprendizado a partir das experiências anteriores são hábitos pouco cultivados no país. O livro foi um sucesso, vendeu muito, marcou uma época. E mesmo assim caiu no esquecimento. O assunto: tortura, violação de direitos humanos não é algo fácil. É mais fácil varrer para debaixo do tapete do que colocar em cima da mesa e escancarar o problema. Dói ler aqueles relatos, então as vezes é mais fácil fingir que eles não existem.

Será que o país esqueceu rápido demais de sua história recente ou é, em alguma medida, desconhecimento? Em algumas manifestações de rua recentes e nas redes sociais, há quem peça a volta da ditadura.

Acredito que há uma geração que nasceu depois dos anos 80 que teve o privilégio de não ter vivido a ditadura. Essa geração cresceu sem muita informação de qualidade a respeito da época. Há um déficit muito grande entre a realidade e aquilo que é ensinado nas escolas, divulgado na grande mídia.

Claro que isso não justifica o desconhecimento. Mas alimenta uma visão limitada.

Outro ponto é que essa história, o fim da ditadura, ainda não está bem resolvida no país. Vivemos uma espécie de limbo da história. Acabou a ditadura, sem punição para quem violou direitos humanos, sem que houvesse um grito definitivo contra a tortura, contra os abusos de agentes do Estado. A vida seguiu sem que isso tenha sido resolvido. Perpetuou-se a violência, mas também um sentimento de que a ditadura não foi tão ruim, já que com o fim dela ninguém foi punido.

Há também a questão de alguns mitos sobre o período, como por exemplo: a economia era uma maravilha, havia controle social, não existia corrupção, só quem era bandido e estava fazendo “coisa” errada é que foi torturado. Esses mitos ficam no inconsciente coletivo e alimentam uma imagem equivocada do período. Quem não se aprofunda e não vai atrás de informação de qualidade, acaba reproduzindo essas besteiras. Não é de se estranhar que essas pessoas peçam a volta da ditadura, por achar que de fato ela era melhor.

Faltou ousadia, faltou enfrentar a chamada ideologia da segurança pública? Os governos que se sucederam desde a redemocratização não quiseram mexer nessa questão? O Estado policial prevaleceu?

É difícil dar uma resposta única para isso. A impunidade dos torturadores da ditadura, a falta de uma reforma institucional nas policias, a invisibilidade que alguns grupos específicos sofrem na sociedade: negros, pobres, periféricos, presidiários. São muitos os fatores que contribuíram para a perpetuação desse estado de violência.

O senso comum, hoje, aponta para uma perpetuação desse ambiente?

Acredito que há uma tolerância muito grande com a violência cometida contra certos grupos. A tortura ainda é vendida como algo necessário para se arrancar uma confissão, para punir algum criminoso. Nem as instituições, nem a sociedade ainda deram um grito de que a tortura e as violações dos direitos humanos são inaceitáveis em quaisquer situações. Ainda é muito comum ouvir, mesmo em alguns programas de rádio e televisão, que “bandido bom é bandido morto”, que se apanhou é porque fez coisa errada, que se foi torturado na cadeia é porque mereceu. Esses discursos não chocam as pessoas. Naturalizamos tanto as violações que hoje elas parecem ser normais.

Por que em alguns casos as violações parecem “aceitáveis” e em outros não?

O mesmo que respondi na pergunta anterior. Quando a violência atinge setores da sociedade que já são marginalizados ela é naturalizada, como se fosse o normal um menino morrer ou ser espancado pelo simples fato de morar na periferia, por ser negro, ser pobre. A situação piora ainda mais quando a violência praticada por agentes do Estado atinge a população prisional. Nós, como sociedade, não reagimos quando um bandido tem seu direito violado. Há um sentimento de vingança, de uma falsa justiça. Isso alimenta um sentimento de impunidade que ronda quem viola os direitos humanos, especialmente os agentes do Estado ou os justiceiros. Se alguém bater no bandido, espancar um estuprador, a sociedade se sente vingada. Isso nos aproxima da barbárie. Agora se a violência atinge setores de classe média, brancos, as pessoas que são “visíveis”, daí sim há um sentimento de revolta da sociedade.

O STF também deixou de ousar ao manter a interpretação da Lei da Anistia? Você acredita que, com a nova composição do tribunal, essa visão poderá mudar?

Eu acho que o STF não muda mais essa matéria. Mas acredito que há espaço jurídico para se processar os violadores de direitos humanos da ditadura sem se apelar para a Lei da Anistia. Já há alguns casos em andamento, como por exemplo da família Teles contra o Ustra (o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, identificado como torturador por ex-presos políticos). Há outros caminhos possíveis.

Ainda que haja esse esquecimento, Brasil: Nunca Mais foi também um marco no movimento dos direitos humanos e contra a violência do Estado. Trinta anos depois, qual a importância do livro para a história e para a memória coletiva?

Eu acho o livro importantíssimo. Foi a primeira obra que denunciou a tortura, usando documentos oficiais. A ditadura nunca conseguiu desqualificar o livro. Ele é um marco mesmo. Uma das nossas entrevistadas, a advogada Eny Moreira, disse que pela primeira vez a história não era contada apenas pelos vencedores. O livro está na 40° edição, ainda é muito vendido, mas infelizmente está restrito a alunos universitários, de algumas áreas. Ele deveria ser lido na escola, por todos os alunos, para inculcar em todos uma aversão à violência.

Como você e Gabriel reencontraram os personagens? Alguma passagem marcou mais?

Os entrevistados foram todos muito generosos. Conseguimos encontrar quase todos, mas não fizemos entrevista com todo mundo. Tentamos muito entrevistar o dom Paulo Evaristo Arns, mas não foi possível. Ele é o grande patrono do livro, a pessoa que tornou tudo isso possível, mas vive muito recluso nos últimos anos. O Frei Betto, um dos autores do livro, nos recebeu, tivemos uma conversa muito boa, mas ele não quis gravar. Tentamos muito falar com o Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, mas também não conseguimos acertar as agendas. O Charles Harper, do Conselho Mundial de Igrejas, está um pouco doente. Enfim, faltaram alguns personagens importantes nessa história, mas acredito que conseguimos contar o que foi produzir esse livro na clandestinidade, durante a ditadura. Mas certamente essa história daria um belo filme de ação.

Aconteceu também um reencontro com a sua história, com seu avô comunista?

Meu avô, seu Sebastião Francisco da Silva, morreu em 1985, ano do lançamento do livro. Apesar da pouca convivência que tivemos, ele me marcou profundamente. Ele era negro, ferroviário, pobre. E um homem autodidata, inteligentíssimo, comunista, idealista. Minha mãe conta que durante a ditadura ele sumiu por alguns dias, quando voltou, destruiu diversos livros e escondeu outros. Nunca tocou no assunto. Não sabemos se ele foi preso e torturado.

A Tarsila foi decisiva na sua mudança profissional?

Foi completamente. A maternidade me deu forças para ir atrás de outros sonhos e de realizar projetos significativos para mim, mas também que pudessem contribuir de alguma maneira para a sociedade. Quero que meus filhos cresçam num país menos violento e mais justo, preciso fazer algo por isso, nem que seja levantar essa discussão.

Por que o nome Coratio?

É uma junção de duas palavras de origem em latim. COR, de coração e RATIO, de razão. Debater sobre violência requer essas duas qualidades, a emoção, os sentimentos de empatia, de humanidade, mas também a razão, a análise da conjuntura, dos dados.

O documentário foi produzido com contribuições via Catarse. Como foi esse processo? Surpreendeu a adesão para o financiamento do projeto?

Eu e o Gabriel percebemos que a nossa ideia estava crescendo e que precisávamos de mais recursos para finalizar esse nosso projeto independente. Esse documentário surgiu de algumas inquietações nossas: por que a história do Brasil Nunca Mais é praticamente desconhecida nas novas gerações? Por que, mesmo com as denúncias do livro, a violência continuou? Por que o Nunca Mais ficou apenas como utopia e não como realidade?

Decidimos tentar o financiamento coletivo, inspirados pelo projeto Verdade 12.528, da Paula Sachetta e do Peu Robles. Nós acreditávamos muito no nosso documentário, agora era saber se mais pessoas se interessariam pelo assunto. E tivemos a grata surpresa de ultrapassar o valor pedido e de contar com o apoio de 199 pessoas que embarcaram com a gente nessa história. A cada centavo que era depositado no nosso projeto a gente ganhava mais confiança de que esse é um assunto relevante, que ainda há pessoas que querem discutir isso.

Foi uma adrenalina muito grande passar pelo financiamento, mas valeu muito a pena saber que não estávamos mais sozinhos na jornada. E uma das coisas mais legais foi ver gente totalmente desconhecida por nós dois doando e se interessando.