Astrojildo nasceu em 1890 no pequeno município de Rio Bonito (RJ). Ainda adolescente, mudou-se para Niterói e estudou no Colégio Anchieta, dirigido por rígidos jesuítas. Depois se transferiu para o Colégio Abílio. Aos quatorze anos pensou em se tornar frade e, aos quinze, já decepcionado com a igreja, começou a abraçar o ateísmo. Na onda contestatória juvenil, abandonou também o colégio onde estudava. Sem religião e sem escola, tornou-se um autodidata.
Podemos dizer que Astrojildo entrou para a história do Brasil pelas mãos do autor de Os Sertões, Euclides da Cunha. Este, num artigo tratando das últimas horas do grande romancista Machado de Assis, escreveu: “Ouviram-se tímidas pancadas na porta principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido, um adolescente de dezesseis ou dezoito anos no máximo (…). Ninguém o conhecia, não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam (…). E o anônimo jovem – vindo de noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial (…). Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu (…). Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca subirá tanto na vida. Naquele meio segundo (…) aquele menino foi o maior homem de sua terra”. Mais tarde seria revelado aquele adolescente anônimo: Astrojildo Pereira.
Seu primeiro envolvimento com a luta política se deu na “campanha civilista”, ocorrida em 1910, que tentava levar o advogado baiano Ruy Barbosa à presidência da República. A vitória do marechal Hermes da Fonseca o decepcionou profundamente. Naquele mesmo ano outro acontecimento contribuiu para dar novo rumo à sua vida: a repressão contra a Revolta da Chibata. O desencanto com a religião e a educação formal transbordaria para o desencanto com o regime liberal-oligárquico e com o próprio capitalismo. Assim, estava semeado o terreno no qual brotariam suas novas ideias libertárias.
Certo dia seu pai levou lhe jornais e folhetos anarquistas, aos quais passou a devorar com sua curiosidade juvenil. A linguagem antirreligiosa, antioligárquica e anticapitalista se encaixava como uma luva às novas preocupações daquele jovem. Num desses jornais achou o endereço de um centro anarquista e foi conhecê-lo. Assim, tiveram início seus primeiros contatos – ainda tímidos – com o movimento operário brasileiro.
Em 1911 seguiu para a França, onde pretendia trabalhar e estudar. Sem dinheiro e sem ter como sobreviver, acabou sendo ajudado por um grupo de brasileiros que vivia na Europa. A viagem somente não foi um desastre completo porque conseguiu trazer na bagagem um bom número de publicações libertárias. Iniciava-se uma nova fase de sua vida: a de líder anarquista. Dois anos depois, em 1913, estaria entre os organizadores do 2º Congresso Operário Brasileiro.
O ano de 1917 foi importante em sua vida e refletiria nas opções estratégicas que faria. Em julho ocorreu a greve geral operária em São Paulo. Na Rússia, em novembro, eclodiu a revolução socialista que teve um grande impacto em todo o mundo.
Astrojildo foi um dos militantes anarquistas mais entusiasmados com o feito dos operários russos, dirigidos pelos bolcheviques, e logo se transformou no principal propagandista daquele movimento no país. Escreveu inúmeros artigos desmentindo as calúnias divulgadas pela imprensa burguesa. Logo, a sua nova paixão o levaria a ter que ajustar contas com sua consciência anarquista.
O exemplo da revolução socialista vitoriosa povoava os sonhos de nossas lideranças operárias. A greve geral de 1917 lhes parecia apenas o ensaio-geral de um movimento mais amplo e radical. Dentro desse espírito, no ano seguinte, os anarquistas do Rio de Janeiro planejaram realizar um levante operário e popular. O complô foi descoberto e Astrojildo Pereira acabou sendo preso.
Muitos acreditavam que o bolchevismo era uma tendência libertária. A confusão política e ideológica era tão grande que lideranças anarquistas resolveram realizar um congresso para fundar o Partido Comunista do Brasil. Desta insólita reunião, realizada em 1919, participaram representantes de cinco estados brasileiros. Esta foi a demonstração mais pungente do impacto causado pela Revolução Russa nas fileiras proletárias. O engano logo foi descoberto e aquele primeiro partido comunista de viés anarquista se desfez.
A partir daí os anarquistas romperam com a frente-única em torno da defesa da Revolução Russa. Os artigos contra Lênin e os bolcheviques se multiplicavam na imprensa libertária. Isso desagradou profundamente a Astrojildo e a inúmeros líderes operários. Entre o anarquismo e a Revolução Russa, optariam pela segunda. Assim, uma cisão no movimento operário brasileiro era quase inevitável.
Os defensores daquele processo revolucionário empreenderam um esforço gigantesco para organizar um verdadeiro Partido Comunista no Brasil. Em 7 de novembro de 1921, Astrojildo fundou o Grupo Comunista no Rio de Janeiro, integrado inicialmente por 12 pessoas. Este pequeno agrupamento conseguiu a façanha de lançar dois meses depois uma revista, intitulada Movimento Comunista.
O próximo passo foi tentar reunir os representantes dos diversos agrupamentos comunistas que existiam espalhados pelo país e constituir um partido unificado, vinculado à Internacional Comunista. O esforço foi vitorioso. No dia 25 de março de 1922 teve início o congresso de fundação do PC do Brasil. Dele participaram nove delegados representando apenas 73 comunistas. Um começo modesto, mas bastante promissor.
Embora fosse o principal expoente da nova organização, Astrojildo defendeu que a secretaria-geral fosse ocupada por Abílio de Nequete, representante do primeiro núcleo comunista brasileiro – a União Maximalista de Porto Alegre –, e que mantinha relação com os membros da Internacional Comunista no Uruguai. Além disso, Nequete era um dos poucos não oriundos das fileiras anarquistas. Naquele momento tal condição pesava-lhe favoravelmente.
O Partido Comunista gozou de poucos meses de vida legal. Em julho, após o levante do Forte de Copacabana, foi decretado Estado de Sítio e ele acabou sendo colocado na ilegalidade. Nequete foi preso, espancado e se afastou da secretaria-geral. Astrojildo assumiu o cargo no qual permaneceu até final de 1930. Caberia a ele comandar o Partido Comunista durante os heroicos anos de sua formação. Esteve à frente dos quatro primeiros congressos, que se realizaram num prazo de menos de 10 anos – uma verdadeira façanha da democracia partidária. Segundo vários depoimentos, Astrojildo foi um dirigente democrático e que respeitava seus camaradas.
Em 1924 o PCB enviou-o para Moscou com o objetivo de participar do V Congresso da Internacional Comunista e garantir o reconhecimento do partido brasileiro como membro efetivo daquela organização. A missão foi cumprida com êxito, o que permitiu que o Partido Comunista pudesse ostentar o honroso título de “seção brasileira da Internacional Comunista”. Voltando ao país, ao lado de Octávio Brandão, dedicou-se à criação do jornal A Classe Operária, lançado em maio de 1925.
Antes de partir para Moscou ele havia articulado uma aliança dos comunistas com a Confederação-Cooperativista Brasileira – de caráter reformista – o que permitiu ao PCB ocupar um espaço permanente num jornal de grande circulação: O Paiz. Através da seção intitulada “No meio operário”, Astrojildo publicou suas Cartas da Rússia, correspondências enviadas quando estava em Moscou. O acordo, bastante criticado pelos anarquistas, foi amplamente favorável ao Partido Comunista naqueles primeiros anos, ajudando a colocá-lo fora do gueto político e social.
Astrojildo também foi um dos responsáveis pelo acordo com o líder socialista-positivista Leônidas de Rezende, que deu aos comunistas a direção do jornal A Nação, em janeiro de 1927. Pela primeira vez os comunistas tinham sob sua influência um diário, e de expressiva circulação. Nele, por exemplo, foi lançado o apelo à formação do Bloco Operário (depois Intitulado Bloco Operário e Camponês, BOC) –, tentativa pioneira de organização de uma frente-única operária e socialista para concorrer às eleições no país.
No final daquele mesmo ano esteve com Luiz Carlos Prestes no seu exílio boliviano e entregou-lhe documentos do PCB e alguns livros marxistas. Tornou-se, ao lado de Octávio Brandão, defensor ardoroso de uma aliança estratégica com a pequena-burguesia revolucionária.
Os dois advogaram a tese pouco ortodoxa de que a revolução brasileira seria democrático-pequeno-burguesa devido à destacada participação política das classes médias urbanas. Acreditavam ainda que ocorreria uma terceira revolta tenentista – as duas primeiras foram as de 1922 e 1924. Brandão escreveu: “Se os revoltosos pequeno-burgueses souberem explorar a rivalidade imperialista anglo-americana e a luta entre os agrários e os industriais, se procurarem uma base de classe para a sua ação, se o proletariado entrar na batalha e se essas contradições coincidirem com a luta presidencial e as complicações financeiras, será possível o esmagamento dos agrários”.
Foi dentro desse esquema teórico que Astrojildo Pereira elaborou o Relatório sobre a situação brasileira, que foi enviado ao Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista em 1928. Vejamos o que diziam os comunistas brasileiros: “a situação econômica e política do país, objetivamente examinada, faz prever uma conjuntura francamente revolucionária, que resultará da coincidência dos seguintes fatores: 1) Crise econômica resultante de uma catástrofe na política cafeeira (…); 2) crise política vinculada ao problema da sucessão presidencial no Brasil (1930); 3) possibilidade de uma repetição de um novo 5 de julho”. Estas apreciações sobre o quadro político que se abria eram quase como premonição do que ocorreria em 1930.
No início de 1929, eleito para a direção da Internacional Comunista, partiu para Moscou e ali trabalhou no Secretariado para a América Latina. Chegou na “Meca do socialismo” num momento em que o movimento comunista pendia perigosamente para a esquerda. Ao lado do esquerdismo, começavam a predominar práticas autoritárias e sectárias – a política leninista de proletarização se transformava em desvio obreirista, pelo qual a origem social proletária se sobrepunha absolutamente sobre os elementos ideológicos na composição das direções partidárias.
Nesse ambiente, marcado pela intolerância, é que foram analisadas a tática e a estratégia dos comunistas brasileiros desenvolvidas nos primeiros anos. Suas teses foram duramente criticadas e consideradas mencheviques. Astrojildo teve de voltar ao Brasil com a missão de corrigir os rumos do Partido e adequá-los às novas diretivas da Internacional Comunista. O primeiro passo foi afastar do secretariado do Comitê Central vários dirigentes importantes, como Paulo de Lacerda, Octávio Brandão e Leôncio Basbaum –, sob a argumentação de que eram intelectuais e de estarem obstruindo o processo de proletarização.
Na Conferência de Partidos Comunistas da América do Sul, realizada entre abril e maio de 1930, os brasileiros foram acusados de tentar subordinar o proletariado à pequena-burguesia e de procurar dissolver o Partido Comunista no Bloco Operário e Camponês, considerado uma espécie de Kuomintang brasileiro. Uma gravíssima acusação, após os trágicos acontecimentos ocorridos na China em 1927. Naquele ano a direção do Kuomintang – frente hegemonizada pela burguesia e na qual atuava o PC chinês – traiu todos os acordos e massacrou milhares de operários e comunistas na cidade de Xangai, iniciando uma nova guerra civil.
A partir daí abandonou-se a proposta de aliança preferencial com a pequena-burguesia urbana, através do movimento tenentista, e fechou-se o Bloco Operário e Camponês. As reflexões originais sobre a formação econômica e social brasileira foram abandonadas e substituídas por esquemas e modelos mais rígidos produzidos no interior da Internacional Comunista. As posições recém-adotadas pelo PCB o levaram a ficar à margem do grande movimento cívico-militar que culminou na Revolução de 1930. Ela foi considerada um simples choque entre oligarquias rivais apoiadas pelo imperialismo britânico ou estadunidense.
Ao final, Astrojildo Pereira acabou sendo destituído da secretaria-geral e enviado para São Paulo, onde deveria se reabilitar através do trabalho nas bases partidárias. Nos meses que se seguiram ao afastamento, uma avalanche de acusações recaiu sobre ele. Antes que fosse formalmente expulso, bastante deprimido, solicitou seu afastamento do Partido que ajudara a fundar. O PCB mergulhou numa profunda crise de direção. Nos quatro anos após a sua destituição, o Partido teve seis secretários-gerais.
Entre 1931 e 1945, afastado do PCB, tornou-se comerciante de frutas no Rio de Janeiro e escreveu artigos de críticas literárias para o Diário de Notícias. Esta atividade o mantinha em contato com a nata da cultura brasileira daquele tempo. Relações que, no futuro, seriam muito úteis ao partido comunista.
Mesmo longe do Partido, continuou sendo um ardoroso defensor da União Soviética e do PCB. Num texto de 1934 escreveu: “Na situação brasileira atual (…) só há um caminho de salvação para as massas operárias e camponesas. É o caminho indicado pelo Partido Comunista”. No seu exílio interno ainda publicou várias coletâneas de artigos, como URSS, Itália, Brasil (1935) e Interpretações (1944). Neste último livro seria publicado o importante artigo “Posições e tarefas da inteligência”.
No entanto, o “astrojildismo” continuou sinônimo de revisionismo brasileiro. No relatório da direção do PCB ao 7º Congresso da Internacional, realizado em 1935, ainda se podia ler sobre “a enérgica luta (travada pelo Partido) contra a pobre linha menchevista de seu antigo secretário-geral, o renegado Astrojildo Pereira”. Este era o último suspiro de uma política sectária que aquele congresso internacional iria sepultar, pelo menos por alguns anos.
A vitória sobre o nazifascismo criou um novo ambiente político. Vários antigos militantes regressaram ao Partido, entre eles Astrojildo Pereira. Desde então se dedicou, fundamentalmente, a organizar o trabalho comunista entre os intelectuais. Foi diretor das revistas Literatura e Estudos Sociais e ajudou a organizar o Congresso que fundou a Associação Brasileira dos Escritores, da qual foi seu diretor.
Sendo o militante mais antigo, coube a ele fazer a Abertura do 4º Congresso do PCB em 1954. Dois anos depois quando chegaram as notícias sobre o 20º Congresso do PCUS – especialmente sobre o conteúdo do relatório “secreto” de Kruschev, no qual revelava as violações de  Stálin à legalidade socialista –, o movimento comunista no Brasil entrou numa profunda crise. Travou-se uma intensa luta política e ideológica em seu interior e inúmeros experientes dirigentes – como Amazonas, Grabois e Arruda – foram afastados de seus postos.
Astrojildo teve uma posição bastante digna nesse debate acalorado, não utilizando anátemas muito comuns naquela época. Também não fugiu de suas responsabilidades enquanto militante comunista. Escreveu: “incluo-me, cem por cento, entre aqueles que mais entusiasticamente participaram do culto à personalidade de Stálin”.
Durante o período de crise, continuou seu trabalho incansável de organização da intelectualidade progressista. Em 1959 já havia lançado o seu principal trabalho de crítica literária, Machado de Assis. Entre 1960 e 1961, manteve uma coluna sobre livros no semanário comunista Novos Rumos. Muitos desses artigos e notas seriam publicados em Crítica Impura (1963). Em 1961 sofreu um enfarte e foi se tratar na URSS.
No início de 1962, quando a crise interna teve seu desfecho com a cisão dos comunistas brasileiros, Astrojildo optou por ficar com o grupo liderado por Prestes. No mesmo ano lançou o livro Formação do PCB – coletânea de artigos sobre os primeiros anos de vida do Partido Comunista no Brasil. Por um longo tempo foi a principal referência bibliográfica sobre este período obscuro da história dos comunistas brasileiros.
Após o golpe militar de 1964, Astrojildo foi incluído em vários inquéritos policiais militares (IPMs). Sua casa foi invadida e parte de seu rico arquivo pessoal saqueada. Em 9 de outubro, aos 74 anos de idade, foi preso depois de se apresentar voluntariamente. Seu crime: ter ajudado a fundar havia mais de 40 anos o Partido Comunista do Brasil e ter tentado convencer Luiz Carlos Prestes a ingressar nele. Realmente, crimes muito sérios naqueles anos de obscurantismo.
Ficou cerca de três meses encarcerado, mas teve de ser libertado, pois seu estado de saúde agravou-se. Em maio de 1965 a Revista Civilização Brasileira publicou um dos seus últimos artigos – a primeira (e única) parte do que deveria ser sua biografia. A perseguição, os maus tratos, as notícias aterradoras de prisões de companheiros ajudaram a debilitar ainda mais seu frágil organismo e, no dia 21 de novembro, o coração do velho combatente deixou de bater.
Respondendo a um jogo de perguntas e respostas, nos tempos que ainda era secretário-geral, Astrojildo afirmou que a sua ideia de felicidade era “paixão amorosa e paixão política ao mesmo tempo. Um doce amor de mulher em meio a uma bravia luta política”. A sua grande paixão política foi o Partido que ajudou a fundar e a grande paixão amorosa Inez Dias, com quem se casou no início da década de 1930.
Quando seu caixão descia ao túmulo, uma voz feminina – firme e decidida – foi ouvida: Viva Astrojildo Pereira! Naquele momento mágico, as suas duas paixões se fundiram – e se confundiram – na bravia luta popular contra a opressão. Hoje, ao comemorarem os 90 anos de sua existência, os comunistas ainda ecoam o brado de Inez Dias e respondem: Viva o camarada Astrojildo! Viva o povo brasileiro!