COLEÇÃO CRÍTICA MARXISTA – Em defesa da História: O marxismo e a agenda pós-moderna
Tradução: João Roberto Martins Filho
Durante a Primeira Guerra Mundial, Oswald Spengler escreveu seu famoso e detestável livro O declínio do Ocidente, anunciando O fim da civilização ocidental e de seus valores dominantes. Os vínculos e tradições que uniram a sociedade estavam se decompondo, enquanto os laços cotidianos de solidariedade se desagregavam, juntamente com a unidade de pensamento e cultura. Como qualquer outra civilização que tivesse vivido seu ciclo natural, o Ocidente passara inevitavelmente de seu outono (já destrutivo) de “iluminismo” ou “esclarecimento” para um inverno de individualismo e niilismo cultural.
Quatro décadas mais tarde, C. Wright Mills anunciava: “Estamos no final do que se denomina a Idade Moderna”. Essa época “está sendo substituída por um período pós-moderno”, no qual todas as expectativas históricas que caracterizaram a “cultura ocidental” deixaram de ser relevantes. A fé do Iluminismo no progresso unificado de razão e liberdade, ao lado das duas principais ideologias fundadas nessa fé – o liberalismo e o socialismo “virtualmente faliram como explicações adequadas do mundo e de nós mesmos”. J. S. Mill e Karl Marx estavam ultrapassados (1).
Entre esses dois anúncios do declínio de uma época, um de 1918 e o outro de 1959, há certamente grandes diferenças ideológicas – os sentimentos antidemocráticos de Spengler em contraposição ao radicalismo de Mills, a hostilidade (ou no mínimo a ambivalência) de Spengler diante do Iluminismo em contraposição ao apego persistente, embora um pouco sem esperanças, de Mills aos valores do Iluminismo. Mas há no intervalo a catastrófica história de depressão, guerra e genocídio, seguida pela promessa de prosperidade material, uma excedendo os piores temores da humanidade até então e outra suas mais visionárias esperanças. Quando Spengler escreveu O declínio do Ocidente, a Europa estava sem dúvida tumultuada, num tempo de guerra e revolução, para não mencionar a ameaça aparente às classes dominantes, até mesmo em situações não revolucionárias advindas da difusão da democracia de massas.
A perspectiva de Mills era bastante diferente. Desde 1918, o mundo passara por horrores muito maiores do que os imaginados por Spengler e, no entanto, ele escrevia na calma dos anos 50, na maré montante da prosperidade capitalista (a “sociedade afluente”) e num clima de apatia política. E ensinava uma geração de estudantes universitários que, embora vivendo à sombra da Guerra Fria e da ameaça nuclear, podia esperar um futuro material particularmente brilhante. Essa “Era de Ouro” do capitalismo [como a chamou Eric Hobsbawm (2)] apenas começava a convencer outros acadêmicos da geração de Mills (a maioria deles aparentemente cega ao que Michael Harrington chamou “a outra América”, para não falar do imperialismo dos EUA) de que os problemas da sociedade ocidental tinham sido mais ou menos solucionados, as condições de harmonia social de certa forma preponderavam e a realização do progresso do Iluminismo estava próxima ou concluída. Nada melhor era possível, necessário ou mesmo desejável. Foi isso o que o colega de Mills, Daniel Bell (que, numa edição posterior de seu famoso livro, atacaria Mills com maldade como traidor no caso de Cuba), chamou de o “fim da ideologia”.
Desse modo, para Mills, a morte do otimismo iluminista não foi o resultado de alguma catástrofe inevitável. Ao contrário, seu pessimismo nasceu tanto do sucesso como do fracasso. Como ele sugeriu, muitos dos principais objetivos do Iluminismo tinham sido efetivamente alcançados: a “racionalização” da organização social e política; o progresso científico e tecnológico inconcebível ao mais otimista sonhador iluminista; a difusão do ensino universal nas sociedades ocidentais avançadas e assim por diante. Contudo, tais avanços pouco fizeram para aumentar a “racional idade substantiva” dos seres humanos; e, de qualquer modo, a “racionalização”, a burocracia e a tecnologia moderna restringiram mais que aumentaram a liberdade humana. Foram mesmo a fonte de muitos males inesperados. A conseqüência assustadora dessa falta de relação entre “racional idade” e liberdade foi o advento de seres humanos alienados ou “robôs felizes”, que se adaptaram a condições organizações gigantes e forças avassaladoras- sobre as quais sentiam que não tinham controle e efetivamente não tinham. Pessoas às quais não mais se podia atribuir anseios de liberdade ou desejos de razão.
Alguns desses temas fizeram parte, por muito tempo, da teoria social ocidental- na sociologia de Max Weber ou Karl Mannheim, por exemplo, para não falar das teorias marxistas da alienação. E a ambivalência para com o Iluminismo, ao lado do pessimismo quanto ao progresso, foi um tópico comum da cultura do século XX, na esquerda e na direita, por razões boas e ruins. Mas, no tempo de Mills, havia uma outra dimensão que também tinha menos a ver com fracasso que com sucesso: o florescimento do capitalismo do “bem-estar” e do “consumidor”. Este se tomou um fator determinante fundamental no desenvolvimento da teoria social de esquerda. Muitos críticos sociais – Marcuse é um exemplo primordial- afirmaram que esse novo tipo de capitalismo marcara de forma indelével as “massas” e a classe operária em particular. Mills, que convocava a esquerda a abandonar a “metafísica do trabalho”, por certo não estava só quando pensou que a classe operária não estava mais disponível como força de oposição. Até mesmo pessoas que se viam como marxistas compartilharam de algum modo essa visão; e este seria um tema dominante nas “revoluções” dos anos 60, no radicalismo estudantil e em formas da teoria marxista que deram crescente relevo aos estudantes e intelectuais como principais agentes de resistência e “revolução cultural (3)”.
Hoje, novamente, enquanto alguns à direita proclamam o “fim da história” ou o triunfo final do capitalismo, certos intelectuais de esquerda nos dizem que uma época terminou, que vivemos numa era “pós-moderna”: o “projeto do Iluminismo” está morto, todas as antigas verdades e ideologias perderam sua relevância, os velhos princípios de racionalidade não valem mais, e assim por diante. Desta vez, pelo menos para muitos acadêmicos e estudantes universitários, parece que o verdadeiro divisor de águas ocorreu em algum ponto no final dos anos 60, ou mesmo em 1989, com o colapso do muro de Berlim. Contudo, embora muita história tenha passado entre os marcos iniciais dessa época e os eventos mais recentes, o que surpreende no diagnóstico presente da pós-modernidade é que tenha tanto em comum com atestados de óbito passados, nas suas versões progressistas ou reacionárias. Aparentemente, o que terminou não foi uma época diversa ou diferente, mas a mesma época, outra vez.
Outra coisa que vale registrar, porém, é que as análises mais recentes da pós-modernidade, que combinam tantos traços de velhos diagnósticos de declínio da época, mostram-se notavelmente inconscientes de sua própria história. Em sua convicção de que o que dizem representa uma ruptura radical com o passado, elas se esquecem sublimemente de tudo que outrora foi dito tantas vezes. Mesmo o ceticismo epistemológico, o assalto às verdades e aos valores universais, o questionamento da auto-identidade, parte tão importante das modas intelectuais correntes, têm uma história tão antiga quanto a filosofia. Mais particularmente, o senso pós-moderno de novidade de época depende de se ignorar ou negar uma realidade histórica avassaladora: que todas as rupturas do século XX se unificam num todo histórico particular pela lógica e pelas contradições do capitalismo, o sistema das mil mortes.
Isso nos conduz à característica mais específica dos novos pós-modernos: a despeito de sua insistência nas diferenças e especificidades de época, apesar de sua reivindicação de ter exposto a historicidade de todos os valores e “conhecimentos” (ou precisamente devido à sua insistência na “diferença” e na natureza fragmentada da realidade e do conhecimento humano), eles são notavelmente insensíveis à história. Tal insensibilidade revela-se sobretudo na surdez aos ecos reacionários de seus ataques contra os valores do “Iluminismo” e em seu fundamental irracionalismo. Aqui, então, se situa uma diferença crucial entre os anúncios atuais de mudança de época e todos os outros. As teorias anteriores se baseavam – por definição – em alguma concepção particular de história e pressupunham a importância da análise histórica. C. Wright Mills, por exemplo, insistiu que a crise da razão e da liberdade que marcaram o nascimento da era pós-moderna representavam
… problemas estruturais, e localizá-los requer que trabalhemos nos termos clássicos da biografia humana e da história de uma época. Somente nesses termos podem ser hoje traçadas as conexões de estrutura e ambiente que afetam esses valores e ser conduzida sua análise causal.
Mills também tomava como certo, na forma clássica iluminista, que o objetivo central dessa análise histórica era destacar o espaço de liberdade e agência humanas, formular nossas opções e “alargar o escopo das decisões humanas na feitura da história”. E apesar de todo seu pessimismo ele assumia que os limites da possibilidade histórica em sua época eram, “na verdade, bastante amplos (4)”.
Essa afirmação é em quase tudo antitética às teorias correntes da pós-modernidade, que negam efetivamente a própria existência de estrutura ou de conexões estruturais e a própria possibilidade de “análise causal”. Estruturas e causas foram substituídas por fragmentos e contingências. Não existe uma coisa chamada sistema social (por exemplo, o sistema capitalista) com sua própria unidade sistêmica e suas “leis de movimento”. Há somente muitos tipos diferentes de poder, opressão, identidade e “discurso”. Não apenas temos que rejeitar as antigas “grandes narrativas”, como os conceitos iluministas de progresso, mas devemos renunciar a qualquer idéia de processo e causalidade histórica inteligível e, com isso, evidentemente, a toda idéia de “fazer história”. Só existem diferenças anárquicas, desconectadas e inexplicáveis. Pela primeira vez, estamos diante de uma contradição em termos: uma teoria de mudança de época histórica, baseada na negação da história.
Há uma outra coisa especialmente curiosa sobre a nova idéia de pós-modernidade, um paradoxo particularmente notável. Por um lado, a negação da história na qual ela se baseia é associada a uma espécie de pessimismo político. Uma vez que não há sistemas ou história suscetíveis de análise causal, não podemos chegar às raízes dos muitos poderes que nos oprimem; e certamente não podemos aspirar a algum tipo de oposição unificada, de emancipação humana geral, ou mesmo de contestação geral do capitalismo, do tipo em que os socialistas costumavam acreditar. O máximo que podemos esperar é um conjunto de resistências particulares e separadas. Por outro lado, esse pessimismo político parece ter suas origens numa visão bastante otimista da prosperidade e das possibilidades capitalistas. Os pós-modernos de hoje (sobreviventes típicos da “geração dos 60” e de seus alunos) parecem ter uma visão do mundo ainda calcada na “Era de Ouro” do capitalismo, cujo traço dominante é o “consumismo”, a multiplicidade de padrões de consumo e a proliferação de “estilos de vida”. Aqui também eles revelam seu a-historicismo fundamental, uma vez que as crises estruturais do capitalismo desde aquele momento “dourado” parecem ter passado à sua margem, ou, pelo menos, parecem não ter deixado neles nenhuma impressão teórica significativa.
Para alguns, isso quer dizer que as oportunidades de oposição ao capitalismo estão severamente limitadas. Outros parecem dizer que, se não podemos realmente transformar ou sequer entender o sistema (ou mesmo pensar nele enquanto sistema) e se não dispomos ou somos incapazes de dispor de uma perspectiva por meio da qual criticar o sistema, que dirá fazer oposição a ele, é melhor relaxar e aproveitar. Os expoentes dessas tendências intelectuais certamente sabem que nem tudo está bem; mas pouco existe nesses modismos que ajude, por exemplo, a entender a pobreza e a falta de moradia hoje crescentes, a classe de trabalhadores pobres cada vez maior, as novas formas de trabalho inseguro e de tempo parcial, e assim por diante. As duas faces da ambígua história do século XX – tanto seus horrores como suas maravilhas – desempenharam indubitavelmente uma parte na formação da consciência pós-moderna; mas os horrores que minaram a antiga idéia de progresso são menos importantes para definir a natureza peculiar do pós-modernismo atual que as maravilhas da tecnologia moderna e as riquezas do capitalismo de consumo. O pós-modernismo se assemelha por vezes às ambigüidades do capitalismo tal como vistas da perspectiva daqueles que aproveitam seus benefícios e não sofrem seus custos.
Se, para Mills, o problema central de sua época era a impossibilidade de esperar que robôs felizes ansiassem por liberdade ou razão, os novos pós-modernos encaram tais valores ameaçados do iluminismo como o problema e os rejeitam abertamente como intrinsecamente opressivos. Talvez em sua submissão derrotista a forças aparentemente incontroláveis, combinada com uma rendição ao consumismo e, às vezes, mesmo uma exaltação dele, a corrente pós-moderna atualmente represente uma manifestação intelectual daqueles robôs. Enquanto Mills parece ter sustentado a visão bastante elitista de que os trabalhadores estavam mais sujeitos a virar robôs, deixando aos estudantes e aos intelectuais o papel de se levantarem acima de tal condição, hoje são esses próprios intelectuais que se tomaram, por assim dizer, a consciência teórica do robô feliz.
Robôs felizes ou críticos sociais?
Depois de dizer tudo isso, seria fácil desconsiderar as modas vigentes. Mas, apesar de todas as suas contradições, falta de sensibilidade histórica, aparente repetição inconsciente de velhos temas e derrotismo, elas também respondem a algo real, a condições reais no mundo contemporâneo, nas condições correntes do capitalismo, com as quais a esquerda socialista precisa acertar suas contas.
Primeiro, apresento uma lista dos mais importantes temas da esquerda pós-moderna (uso esse termo genérico para abranger uma variedade de tendências intelectuais e políticas que emergiram nos anos recentes, incluindo o “pós-marxismo” e o “pós-estruturalismo”): ênfase na linguagem, na cultura e no “discurso” (com o argumento de que a linguagem é tudo o que podemos conhecer sobre o mundo e de que não temos acesso a nenhuma outra realidade), em detrimento das preocupações “economicistas” tradicionais da esquerda e das velhas preocupações da economia política; rejeição do conhecimento “totalizante” e dos valores “universalistas” (incluindo as concepções ocidentais de “racionalidade”, as idéias gerais de igualdade, liberais ou socialistas, e a concepção marxista da emancipação humana geral), em benefício da ênfase na “diferença”, em identidades particulares diversas como gênero, raça, etnicidade, sexualidade e em várias opressões e lutas particulares e separadas; insistência na natureza fluida e fragmentada do eu humano (o “sujeito descentrado”), que toma nossas identidades de tal modo variáveis, incertas e frágeis, que é difícil ver como podemos desenvolver o tipo de consciência capaz de formar a base para a solidariedade e a ação coletivas fundadas numa “identidade” social comum (como a classe), numa experiência e em interesses comuns – uma exaltação do “marginal” -; e repúdio das “grandes narrativas”, tais como as idéias ocidentais de progresso, incluindo as teorias marxistas da história.
Todos esses temas tendem a ser agrupados na desconsideração do “essencialismo”, em particular do marxismo, que supostamente reduz a variada complexidade da experiência humana a uma visão monolítica do mundo, “privilegiando” o modo de produção como um determinante histórico, bem como a classe, em contraposição a outras “identidades”, e os determinantes “econômicos” e “materiais”, em contraposição à “construção discursiva” da realidade. Essa denúncia do “essencialismo” tende a recobrir não apenas as explicações do mundo efetivamente monolíticas (como as variantes stalinistas do marxismo) mas toda espécie de análise causal.
O significado desse jargão pós-moderno deve ficar mais claro no curso dos artigos; para o momento, deve parecer óbvio que a principal tendência que perpassa todos esses princípios pós-modernos é a ênfase na natureza fragmentada do mundo e do conhecimento humano, e a impossibilidade de qualquer política emancipatória baseada em algum tipo de visão “totalizante”. Mesmo uma política anticapitalista é demasiado “totalizante” ou “universalizante”, uma vez que dificilmente se pode dizer que exista o capitalismo como sistema totalizante, num discurso pós-moderno, de tal modo que mesmo uma crítica do capitalismo está excluída. Com efeito, a “política”, em qualquer sentido tradicional do termo, em referência aos poderes abrangentes de classes ou Estados ou à oposição a estes, está efetivamente eliminada, dando lugar às lutas fraturadas da “política de identidade” ou do “pessoal enquanto político” embora haja alguns projetos mais universais que mantenham algumas atrações para a esquerda pós-moderna, como a política ambientalista. Em resumo, forte ceticismo epistemológico e profundo derrotismo político.
Contudo, nenhum de nós negaria a importância de alguns desses temas. Por exemplo, a história do século XX dificilmente poderia inspirar confiança nas noções tradicionais de progresso, e aqueles de nós que professam acreditarem algum tipo de política “progressista” devem enfrentar tudo aquilo que conseguiu solapar o otimismo iluminista. E quem negaria a importância de “identidades” diversas da classe, das lutas contra a opressão sexual e racial ou das complexidades da experiência humana num mundo tão móvel e mutável, com solidariedades tão frágeis e mutantes? Ao mesmo tempo, quem pode ignorar o ressurgimento de “identidades” como o nacionalismo, forças históricas tão poderosas e com freqüência destrutivas? Não temos que acertar contas com a reestruturação do capitalismo, hoje mais global e segmentado que nunca? Nesse sentido, quem não percebe as mudanças estruturais que transformaram a natureza da própria classe operária? E que socialista sério alguma vez desprezou as divisões raciais e sexuais no seio da classe operária? Quem subscreveria o tipo de imperialismo ideológico e cultural que suprime a multiplicidade de valores e culturas humanas? E como podemos negar a política da linguagem e da cultura num mundo tão dominado por símbolos, imagens e “comunicação de massas”, para não falar da “superestrada da informação”?
Quem negaria essas coisas num mundo de capitalismo global tão dependente da manipulação de símbolos e imagens numa cultura de propaganda, onde os “meios de comunicação” medeiam nossas próprias experiências mais pessoais, às vezes ao ponto em que aquilo que vimos na televisão parece mais real que nossas próprias vidas e em que os termos do debate político são colocados – e estreitamente constrangidos – pelos ditames do capital em sua forma mais direta, na medida em que o conhecimento e a comunicação estão crescentemente nas mãos das corporações gigantes?
Não é preciso aceitar os pressupostos pós-modernos para enxergar todas essas coisas. Ao contrário, esses processos reclamam uma explicação materialista. Nesse sentido, há poucos fenômenos culturais na história humana cujas fundações materiais sejam mais vivamente óbvias que o próprio pós-modernismo. Não há, com efeito, melhor confirmação do materialismo histórico que o vínculo entre cultura pós-moderna e um capitalismo global segmentado, consumista e móvel. Nem tampouco uma abordagem materialista significa que temos que desvalorizar ou denegrir as dimensões culturais da experiência humana. Uma compreensão materialista constitui, ao contrário, passo essencial para liberar a cultura dos grilhões da mercantilização.
Se o pós-modernismo nos diz alguma coisa, de uma maneira distorcida, sobre as condições do capitalismo contemporâneo, a idéia está em descobrir quais são exatamente essas condições, por que o são e qual o caminho a seguir a partir daí. A idéia, em outras palavras, é sugerir explicações históricas para tais condições, ao invés de apenas submeter-se a elas, consentindo em adaptações ideológicas. É identificar os problemas reais para os quais as modas intelectuais vigentes oferecem soluções falsas – ou não – e, ao fazê-lo, desafiar os limites que eles impõem à ação e à resistência. É, portanto, responder às condições do mundo atual não como robôs felizes (ou infelizes), mas como críticos.
Esta edição especial de Monthly Review pretende sugerir algumas das formas pelas quais o materialismo histórico pode lançar luz sobre esses temas, embora evidentemente, num espaço tão limitado, possamos apenas arranhar a superfície. Ao organizar esta edição, John Foster e eu enviamos uma carta aos colaboradores em potencial, explicando o que tínhamos em mente. Assim deixem-me concluir esta introdução com alguns extratos desta carta. Ela começa com uma citação de meu artigo, no número do verão de 1994, que tratava da obra de E. P. Thompson:5
A crítica do capitalismo está fora de moda – e há aqui uma curiosa convergência, uma espécie de sagrada aliança entre triunfalismo capitalista e pessimismo socialista. A vitória da direita se reflete na esquerda numa aguda contração das aspirações socialistas. Os intelectuais de esquerda, se não abraçam efetivamente o capitalismo como o melhor dos mundos possíveis, têm pouca esperança em algo mais que um pequeno espaço nos interstícios do capitalismo; e antevêem, na melhor das hipóteses, apenas resistências locais e particulares. E há outro efeito curioso de tudo isso. O capitalismo está se tornando tão universal, tão garantido, que passa a ser invisível. Hoje há certamente muitos motivos para sermos pessimistas. Fatos recentes e atuais fornecem-nos fundamento suficiente. Mas existe algo de curioso na forma como muitos de nós reagem a tudo isso. Se o capitalismo efetivamente triunfou, devíamos pensar que, mais do que nunca, precisamos de uma crítica do capitalismo. Por que seria a hora de acolher modos de pensamento que parecem negar a própria possibilidade não apenas de suplantar o capitalismo mas até mesmo de compreendê-lo criticamente? […]
Penso que estamos atualmente numa situação sem precedentes, algo que não presenciamos em toda a história do capitalismo. Vivemos agora não apenas uma carência de ação, ou a ausência dos instrumentais e da organização para a luta (embora estes sejam frágeis, sem dúvida). Não se trata somente de saber como agir contra o capitalismo, mas de esquecer até mesmo como pensar contra ele.
A carta prosseguia, explicitando nossas intenções:
É este o contexto em que planejamos a edição especial. Partimos da idéia de que uma obra histórica como a de E. P. Thompson e a economia política, no que tem de melhor, são essenciais para o projeto crítico da esquerda. O ponto central, contudo, é o seguinte: “não podemos hoje tomar como certo que outros intelectuais de esquerda compartilhem nossa visão; e, falando como professores, temos ambos bastante consciência de que muitos, se não a maior parte, de nossos alunos – mesmo aqueles que se vêem como de esquerda – dificilmente concordam seja com nosso entendimento do capitalismo, seja com nossos pressupostos epistemológicos e históricos. E essas discordâncias se expressam numa agenda intelectual, para não dizer política, muito diferente […]”.
O que propomos, então, é uma coletânea de artigos que oferecerá algumas sugestões sobre como o materialismo histórico pode enfrentar essa outra agenda de maneira mais frutífera, vigorosa e liberadora que a das correntes intelectuais e políticas em voga.
Não estamos sugerindo que as pessoas como nós abandonem seu próprio terreno. Ao contrário, parte de nosso objetivo é demonstrar que nosso terreno está onde devia – por exemplo, que as velhas questões triviais da esquerda (como a ligação entre “política” no velho sentido, Estado e poder de classe) estão ainda no centro das coisas, e permanecem importantes para outros projetos emancipatórios, não apenas para as formas tradicionais de política de classe. Mas podemos prender a atenção de nossos alunos e de gente como eles se os confrontarmos em seu terreno favorito.
É isso, portanto, o que pretendemos fazer, de uma forma muito limitada.
Os temas desta edição, e com freqüência o estilo, podem ser diferentes do que os leitores de MR habituaram-se a ter, mas a motivação fundamental e o compromisso político continuam os mesmos. Nossa mensagem principal é que esta pode ser a hora certa de revitalizar a crítica marxista. O mundo está cada vez mais povoado não por robôs felizes, mas por seres humanos muito enraivecidos. Do jeito que estão as coisas, há muito poucos recursos intelectuais disponíveis para compreender esse sentimento, e (pelo menos na esquerda) os recursos políticos para organizá-las são muito raros. O pós-modernismo atual, apesar de todo seu aparente pessimismo derrotista, ainda está calcado no capitalismo da Era de Ouro. Já é tempo de deixar para trás esse legado, a fim de enfrentar as realidades dos anos 90 e do século XXI.
* Publicado originalmente como “What is the ‘postmodern’ agenda? An introduction” em Monthly Review, 47 (3), july-aug. 1995. A tradução respeitou a íntegra do artigo em inglês, mantendo inclusive as referências à edição especial de MR para a qual ele foi escrito. Ellen Meiksins Wood publicou recentemente Democracy against capitalism: renewing historical materialism, Cambridge, 1995.
** Ellen Meiksins Wood (1947-2016) era historiadora marxista estadunidense, professora de Ciência Política da Universidade de York no Canadá (1967-1996), editora da New Left Review (1984-1993) e da Monthly Review (1997-2000). No Brasil publicou Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico e O império do capital, ambos pela Boitempo. Organizou com John Bellamy Foster o livro Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo, publicado pela Zahar.
Notas
1. C. Wright Mills, The .Sociological imagination, Oxford e Nova York, 1959, pp.165-7.
2. Em Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991 de Hobsbawm, a “Era de Ouro” (aproximadamente 1947-73) está espremida entre a “época da catástrofe” e o “desmoronamento” (Ed. brasileira: São Paulo, Companhia das Letras, 1995, tradução de Marcos Santarrita).
3. Discuto alguns desses processos em “A chronology of the new left, or: who’s old-fashioned now?”, Socialist Register 1995, Nova York e Londres, 1995.
4. Mills, A imaginação sociológica, PP. 173-174.
5 Ver “From opportunity to imperative: the history of the market”, Monthly Review 46 (3),julyaug. 1994.
* Texto extraído da revista Crítica Marxista nº 3/ 1996
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