A Renúncia de Jânio : um depoimento
Castello Branco, Carlos

Após 30 anos guardado na gaveta, sai em livro o texto deixado por Carlos Castello Branco sobre a renúncia de Jânio. O “príncipe” sempre louvado do jornalismo político registrou por escrito, logo em seguida, suas observações sobre os fatos críticos de agosto de 1961, mas quis deixar que a poeira do tempo assentasse sobre eles. Depois da morte de quase todos os personagens, e do próprio Castellinho, sua viúva, a Juíza Dra. Elvira Castello Branco, decidiu que era hora de entregar ao país esse documento de sua história. Com fotos.

O autor conviveu com os bastidores do poder e conheceu os meandros políticos da presidência de Jânio Quadros. Jornalista consagrado, considerado o maior comentarista político em sua época por seu bom senso e análise crítica desapaixonada, Carlos Castello Branco escreveu, por décadas, no mais prestigioso meio de comunicação nos anos da ditadura: o Jornal do Brasil. Durante anos silenciou sobre a causa da renúncia mais polêmica da história do País. Neste livro, o grande jornalista, independente e de fino estilo, oferece ao leitor seu testemunho de quem viveu no palácio do Planalto um dos momentos mais decisivos do século XX. No prefácio a esta edição, Luiz Gutemberg assinala: “Salvo o próprio Jânio, por motivos óbvios, ninguém entre os que viveram aqueles fatos, além dele, tinha condições de testemunhá-los com isenção e de forma tão abrangente”.

A renúncia de Jânio Quadros renovou a preocupação dos militares com João Goulart no poder, tendo ele sido rejeitado pelos mesmos, ainda no governo Vargas, de quem fora ministro do Trabalho. E fez emergir o movimento da esquerda brasileira pela legalidade da sua posse dada a resistência a seu nome imposta pelas Forças Armadas. A partir da renúncia de Jânio ocorre uma série de desdobramentos políticos nas hostes do poder civil e militar do país. 

Castellinho é autor dos três volumes de “Os militares no poder”.

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Publicador : Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial
Data de publicação : 2000
Descrição física : 163 p. : il. —
Série : (Coleção biblioteca básica brasileira)
Assuntos : Quadros, Jânio, 1917-1922 | Crise política, Brasil (1961) | Política e governo, história, Brasil | Quarta República (1945-1964), Brasil
Responsabilidade : Carlos Castello Branco
Endereço para citar este documento : http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1036
Notas:
Edição especial, por autorização da Ed. Revan
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A técnica do testemunho em Carlos Castello Branco
Por Luiz Gutemberg

No dia 19 de fevereiro de 1992, Carlos Castello Branco revelou, na sua “Coluna do Castelo”, no Jornal do Brasil, que havia recebido, há algum tempo, pequeno bilhete de Jânio
Quadros, em envelope subscritado pelo próprio. “Tinha lido declaração minha em algum jornal de que eu não sabia a causa da renúncia. O ex-presidente dizia-me não admitir
que seu antigo secretário não soubesse porque renunciara. Na verdade ele nunca me disse porque renunciou. Como saber?”
Como o catimbozeiro do poema, Carlos Castello Branco, “aprendeu sem se ensinar”. Podia dispensar a revelação de Jânio Quadros. Já havia escrito há 30 anos sua versão da renúncia – decifrando-a com fatos e sem adjetivos – e a mantinha guardada em cofre.

Seu depoimento “A renúncia de Jânio”, quando um dia fosse publicado, também demonstraria a técnica com que conseguiu que sua obra, por natureza efêmera, pela perecibilidade fatal do jornal diário, não apenas lhe sobrevivesse e até crescesse em prestígio.
A razão estava na forma como redigiu seu depoimento e que era a mesma com que cotidianamente ocupava seu precioso espaço de jornal. Ele apostava mais nos fatos do que na sua própria visão deles, ou na fantasia que o delirante Jânio Quadros pretendia haver criado e feito prevalecer. E teria se mantido incontestada, ou pelo menos viva, por falta de um documento que a desmoralizasse de forma incontestável, se não fosse a coragem moral e a competência de um repórter, acidentalmente servindo-lhe como Secretário de Imprensa.
Para livrar-se, tanto da fabulação cavilosa de Jânio quanto do risco de deformar a realidade, Carlos Castello Branco aprendera a driblar o diabólico eleito do testemunho humano: o “componente alucinatório da percepção”.
Um risco descrito por Edgar Morin e por ele mesmo denunciado: “Precisamos desconfiar da única coisa digna de confiança de que dispomos para descrever nossa história
e escrever a História: o testemunho”.
Quem vê, mesmo a olho nu e a curta distância, nem sempre vê, ilude-se a si mesmo com o que desejaria ter visto; quem ouve, além de ver, nem sempre ouve precisamente; nem o olfato, por mais acurado, faz associações perfeitas.
No exemplo clássico de Morin, vivido por ele, a testemunha assiste a um acidente de trânsito num conhecido cruzamento em Paris:
Boulevard Raspail/Cherche-Midi/Assas. Vê – e com tal convicção que se oferece para testemunhar a ocorrência – um automóvel atropelar uma moto. Pouco depois, verificando as provas materiais do acidente, certifica-se do contrário. Foi a moto que bateu no carro. A sua torcida e a simpatia pelo mais fraco induziram-no a ver o contrário do que realmente se passou diante do seu olhar.

Existiriam mecanismos, como um jogo de lentes corrige causas mecânicas de deformações óticas, para precaver essas alucinações comprometedoras dos testemunhos?

Sim, responde a experiência de Carlos Castello Branco (1920-1993) no depoimento “A renúncia de Jânio”, bom pretexto para discutir o fenômeno do testemunho em episódios
políticos.
Experiente repórter estava acostumado a desconfiar, desmascarar e ironizar versões que deformam a realidade política, muitas vezes praticadas inconscientemente. Vê-se o que
se quer, e os políticos querem mais e por isso suas paranóias são superlativas. Agora, pela primeira vez, enfrentava o risco do testemunho. Não era o espectador, mas também um dos atores. Estava na cena, não na platéia, e experimentava o risco que enfrentam os testemunhos pessoais ao descrever fatos que viveram.
Desta vez não tinha a intermediação de “fontes” com que sempre alimentou seu trabalho profissional. E ele estava acostumado a boas fontes, como o ex-presidente Sarney, que confessou, em 1979:
“Há 20 anos somos colegas de trabalho. Ele escrevendo, eu descrevendo”. Mas podiam dizer o mesmo, e talvez dissessem, se tivessem sobrevivido, o vice-presidente Pedro Aleixo, Magalhães Pinto, Padre Godinho, Afonso Arinos, Gustavo Capanema, Leitão de Abreu, Milton Campos, Severo Gomes, Petrônio Portella. Apenas alguns deles, já falecidos.
A empreitada do depoimento sobre a renúncia de Jânio implicava em reconstituir, escrevendo na primeira pessoa, os bastidores desse episódio decisivo da História contemporânea brasileira.
As numerosas versões já publicadas podiam ser classificadas em dois grupos. As que aceitavam os documentos e declarações autorizadas, do próprio Jânio e do seu Ministro da Justiça, Oscar Pedroso d’Horta – a “história oficial”, encontrável nos arquivos –, e as que os contestavam, demonstrando que a renúncia foi uma tentativa de golpe, visando o estabelecimento de uma ditadura pessoal de Jânio.
Mantendo-se no centro da cena nos 25 anos seguintes – período de notoriedade balizado por suas candidaturas a Governador de São Paulo em 1962 (derrotado por Adhemar de Barros) e, em 1986, a Prefeito de São Paulo (vencedor, contra Fernando Henrique Cardoso) –, durante todo esse tempo o episódio da renúncia foi requentado pelas campanhas eleitorais e alimentou todo tipo de polêmicas e especulações.
Nunca, porém, a questão esteve perto de receber uma dessas sentenças irretocáveis que a História costuma estabelecer sobre momentos decisivos da humanidade. Quando universalmente se aceita que os fatos aconteceram assim e tornam-se suspeitos de paranóia os que persistem em insistir que “o sol é frio”. Mas, haveria um fato, ou conjunto de fatos, suficientemente incontestáveis, que abonassem uma versão definitiva da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República? Não. Nem o golpe frustrado, que parecia
óbvio; nem a crise de delírio mental de Jânio, alimentada pelas revelações sobre as noites de solidão, alcoolismo, insônia e sessões de filmes de far-west no Palácio da Alvorada; nem das conspirações nacionais e internacionais insinuadas pelos discursos do ministro Pedroso d’Horta; muito menos pelos ataques do governador Carlos Lacerda na TV. A questão sempre esteve em aberto.
A questão da renúncia não foi e não era uma cogitação diletante para a política brasileira. Nas duas décadas que se seguiram apresentou interesse concreto para a cobertura jornalística, estava na categoria dos “fatos correntes”, já que foi aceita por historiadores e cientistas políticos como marco zero do processo de degringolada institucional que precipitou o Brasil na ditadura militar de 1964. Além do mais, não apenas o protagonista, mas a maioria dos principais coadjuvantes ainda estava viva e atuante. Sem falar
da utilidade, pois a ele se aplicava, como alerta contra perigo próximo, a clássica observação do filosofo George Santayana, de que os povos que não cuidam da sua História estão irremediavelmente condenados a repetir seus erros.
Sem dúvida foi o desleixo com que se cultiva a História entre os brasileiros, especialmente os registros contemporâneos – habitualmente debitado à “falta de memória” coletiva –, que permitiu ao próprio Jânio Quadros, velho, doente, decadente, anacrônico e com os mesmos truques populistas, eleger-se Prefeito de São Paulo em 1986. Repetição maluca, absolutamente sem sentido, da eleição para o mesmo cargo em 1952, trinta e três anos antes, no início da sua carreira vertiginosa, quando era o “Tostão contra o Milhão”, o
eterno apelo ao episódio bíblico de Davi e Golias. Uma situação que, tantos anos depois, se repetia ao contrário – agora, Jânio é que era o vício contra a renovação –, mas que o jejum eleitoral imposto por duas décadas de ditadura permitiu-lhe reencenar com surpreendente êxito. Nada pior do que um vácuo – criado por episódios não passados em julgado na cronologia política – para alimentar mitos e fantasmas políticos. (A desastrada volta ao poder do ex-ditador Vargas, em 1950, enquadra-se nessa avaliação.)
Além de toda essa substancial carga fatual, Carlos Castelo Branco também era desafiado por um compromisso moral. Havia sido secretário de imprensa de Jânio Quadros durante seus sete meses de Governo . Suas observações tanto foram privilegiadas pela intimidade que desfrutou junto aos personagens – e ao próprio protagonista, Jânio Quadros – quanto lhe criavam uma espécie de dever de lealdade de não expô-los nus. Era óbvio que o fato histórico da renúncia de 1961 superava em magnitude tais escrúpulos de elegância e companheirismo que Carlos Castelo Branco, amigo exemplar, solidário e generoso, praticou como preceito religioso, durante toda vida. Mas ele sabia que, se não o fizesse esse depoimento, ninguém faria. Salvo o próprio Jânio, que não o escreveria por motivos óbvios, ninguém entre os que viveram aqueles fatos, além dele, tinha
condições de testemunhá-los com isenção e de forma tão abrangente.
Criou, então, um álibi perfeito para desobrigar-se de tais impedimentos pessoais e deixar registrado seu testemunho insubstituível sobre a renúncia. Decidiu que o escreveria e o manteria secreto.
Um dia, toda a fantasia sobre o episódio seria removida e substituída por seu depoimento sem peias. Foi o que aconteceu.
Carlos Castello Branco era conhecido por sua memória prodigiosa. Costumava causar espanto ao publicar longas e importantes entrevistas, contendo datas e números, sem haver tomado uma única nota. Mesmo quando ouvia interlocutores numa roda de uísque e boa conversa, de que tanto gostava, e até quando já parecia alto ao ouvir declarações, nunca falhava na precisão dos registros.
Nada espantoso, portanto, que só em agosto de 1963, dois anos depois da renúncia, tenha começado a registrar suas observações pessoais sobre o acontecimento. Mas interrompeu o projeto no meio, abandonou o manuscrito por quase dois anos, só o retomando para concluí-lo em março de 1965. Confessou que temia que o passar do tempo comprometesse a perspectiva com que havia concebido seu depoimento. Depois de pronto, mostrou-o a apenas dois amigos, Evandro Carlos de Andrade e José Aparecido, de quem anotou observações que tornou parte integrante do texto. (Evandro achou-o “veraz e excitante” e Aparecido “considerou precisa a narrativa dos fatos”.)
Finalmente, com a publicação do depoimento, após a sua morte, em 1996, desfez-se qualquer nebulosidade sobre a renúncia de Jânio Quadros.
Lido atentamente, o texto dissolve qualquer penumbra sobre as circunstâncias em que se deu a renúncia e deixa pouco espaço para impressões subjetivas. Na verdade, Carlos Castelo Branco não escreveu um depoimento, mas uma sentença. Definitiva e inapelável.
O que não é surpreendente para seus leitores, como anotou Evandro Carlos de Andrade: “É coisa da personalidade, Castello nasceu para juiz – com um defeito. Porque é incorruptível e capaz de distanciar-se do conflito para avaliá-lo melhor, não resiste à tentação de resumir qualquer sentença numa frase brilhante, o que lhe dá à intimidade um leve tom maniqueista.”
Seu método – como que se precavendo de alegações de imprecisão e de desvios alucinatórios que comprometem os testemunhos – caracteriza-se pelos registros de dia e hora, encadeamento dos fatos, remissões a situações próximas e remotas e uso oportuno de elementos biográficos dos personagens para explicar-lhes atitudes e gestos.
Antecipando-se a algum crítico que achasse que podia desautorizá-lo denunciando seu part-pris (não apenas por sua condição de Secretário de Imprensa da Presidência, mas por suas ligações pessoais com José Aparecido, que representava uma das alas palacianas em choque), ele o escracha, reconhecendo-a, explicitando-a detalhada e minuciosamente. No movimento seguinte, também expõe com absoluta clareza todo tipo de viés, ideológicos, pessoais, idiossincrásicos que informam o comportamento do mesmo José Aparecido, seu amigo fraterno pela vida inteira. Dir-se-ia que tal honestidade em declarar as amizades e afetos o descompromete e liberta para a veracidade. Amigo, amicíssimo, de protagonistas decisivos da cena política, não as esconde. Pelo contrário, parece ter o prazer de expo-las para forçar o exame da sua isenção. Seus registros sobre o General Médici – do qual diria que “sob seu governo a liberdade de imprensa eclipsou-se, o que não impedia que, mediante mensagens cifradas, se enviassem algumas informações
aos leitores” – não dispensaram o lembrete, na Couna do Castello de 10 de outubro de 1998: “Seu filho, Roberto Médici, que se tornaria meu amigo, disse-me um dia: ‘Você
é uma ferida que tenho que coçar todas as manhãs.”
Essa preocupação de Castello de identificar publicamente seus amigos – como um contraponto para honrar o sigilo das suas fontes de informação, estas preservadas com rigor profissional além da sua vida – sugere um ato de soberba. Ele parece oferecer tais informações sobre suas condições de observação e distanciamento para desafiar o leitor a testar suas isenção. Ou mostrar que caminha sobre um fio de navalha e o distinto público deve fazer silêncio e prestar atenção.
No caso da renúncia de Jânio, a posição em que se encontrava é um teste para sua credibilidade. Não era apenas interlocutor, mas cúmplice, pois redigiu notas e documentos que constituem a “história oficial” do episódio. Habilmente, porém, ele demonstra que essa documentação constitui um monte de peças isoladas do puzzle que não se completa sem que a elas se juntem algumas inconfidências essenciais.
Edgar Morin, que discutiu os desvios do “componente alucinatório da percepção” do testemunho em importantes versões de episódios da Revolução Comunista, da Primeira e Segunda Guerra Mundiais e da Guerra Fria, procura saídas para enfrentar a fatalidade de que “devemos desconfiar dos nossos olhos, embora somente neles possamos confiar”. Se sofremos a perturbação dos mecanismos cerebrais-psíquicos, propõe a adoção de processos idênticos para anulá-los, examinando, refletindo, autocriticando nossas visões. São preocupações nítidas no depoimento de Carlos Castello Branco.
Apesar de permitir uma leitura de roteiro de cinema (quadro a quadro, flash-backs, indicações de planos e cenários, excitando a imaginação), o texto adquire a densidade de uma sentença. Não deixa margens a alegações de que “não foi propriamente assim”.
Cabe ao leitor distribuir condenações e absolvições, em função das culpas e atenuantes, ações e omissões, todas explícitas no texto, mas sem alimentar dúvidas de que a renúncia foi resultado de uma soma de conspirações. A conspiração decisiva se desenvolveu na cabeça do próprio Jânio – que conforme sua megalomania dispensava consultas,
confidências ou parcerias. Múltiplo, ele levava sua autosuficiência ao paradoxo de dialogar consigo mesmo, já que se desdobrava numa porção de personalidades diferentes. Dando vida a todas, fazia-as dialogar e conflitar entre si através de terceiros, gente com personalidade e projetos pessoais ambiciosos, como Pedroso d’Horta, Ministro da Justiça, e José Aparecido, Secretário Particular, para só citar dois pólos da intimidade do Governo em que Carlos Castello Branco concentra suas observações.
O resultado dessa demonstração do comportamento de cada um – e do que, de forma evidente e explícita, Jânio Quadros esperava que sua renúncia gerasse, e de como o clamor público a reverteria em seu benefício – sugere uma reflexão sobre as virtudes desse método. Se o aplicássemos, por exemplo, à distribuição de Justiça, a solenidade dos julgamentos estaria dispensada. Os ritos e processos seriam simplificados, mediante a pura e simples apresentação dos fatos, que se autotipificariam, enquanto culpas e absolvições brotariam explícitas como efeito das narrativa. O problema é que seria preciso que os testemunhos tivessem as virtudes do depoimento de Carlos Castello Branco. Que contivessem a mesma serena obsessão pela veracidade e aplicassem a mesma técnica de associar fatos, como ele faz como se atendesse à providencia burocrática de acrescentar o nome de pai e mãe, data de nascimento e nº do CPF para evitar confusões com homônimos que deseja identificar. Seu texto é a prova de ambigüidades e descaminhos semânticos.
Para evitar os detalhamentos pitorescos a que recorrem as testemunhas e que terminam distraindo e diluindo as provas, tornando-as inutilmente prolixas, ele recorre com malícia a um segredo que os repórteres aprendem no cotidiano. Consiste em esperar o momento em que os camuflados tiram a máscara para respirar, e se revelam.
Esse momento, que se diria mágico se não fosse justamente a hora da verdade, é o registro da confissão do próprio Jânio Quadros, exposta no dia 26 de agosto, vinte e quatro horas depois na renúncia, na Base Aérea de Cumbica, em São Paulo. Jânio, assim como recusou todos os apelos dos seus ministros e auxiliares – os poucos com que se avistou antes de consumar a renúncia – também os desautorizava a estimular atos de mobilização popular em seu apoio. Suas palavras, segundo o depoimento de Carlos Castello Branco: “Nada farei por voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo. O Brasil no momento precisa de três coisas: autoridade, capacidade de trabalho e coragem e rapidez nas decisões. Atrás de mim não fica ninguém , mas ninguém, que reúna esses três requisitos.”
Ou seja, Jânio renunciou na certeza de que voltaria. Uma vez que, sob a Constituição, não poderia reassumir a Presidência, a não ser através de novas eleições, que esperava? Obviamente, um golpe, que lhe oferecesse de volta o poder e que lhe permitiria impor condições, como o fechamento do Congresso, de cuja inutilidade e vícios fazia aberta apologia nos dias que antecederam à renúncia. O que também está registrado no depoimento.
Nestas colheitas da reportagem se concentram o princípio e o fim da notícia. Ao registrá-las, no dia-a-dia do jornal, o papel do repórter se cumpre e se esgota. ( Não importa que alguns repórteres, com vocação moralista, se atribuam responsabilidades de testemunho ideológico, achem pouco o exercício da reportagem e assumam funções privativas de Estado e que devem ser exercidas pela polícia, fisco, promotoria, juízes e tribunais. Não era o caso de Carlos Castelo Branco.)
O que importa observar é essa singular capacidade dos repórteres de registrar isolada e sinteticamente diálogos e declarações essenciais fisgadas com senso de oportunidade. Trata-se de uma imposição da contingência: o espaço no jornal é finito, medido em número de linhas, e a luta contra o relógio resulta das pressões industriais.
Pressupostos subvertidos em situações surpreendentes como a renúncia de Jânio, quando há mais espaço que informações e as edições se transformam em estuário de todo tipo de matérias, principalmente especulações, porque a confusão é geral. Publicaram-se muitos milhares de textos, examinando todas as hipóteses de explicação para a renúncia. Nenhuma conciliava racionalmente fatores psicológicos (já que o episódio envolve personalidades complexas) e aspectos políticos e econômicos, principalmente econômicos. Os marxistas, fabulistas por excelência, dominam amplamente a análise política no Brasil. Uma confusão que levou, ainda nos anos 60, Odylo Costa, filho, então diretor da revista Realidade, a publicar seu libelo “Recuso!”, paródia de Emile Zola, com exclamação e tudo, considerando inaceitáveis as numerosas versões disponíveis sobre a renúncia.
Carlos Castello Branco, porém, calado estava, secreto manteve seu depoimento guardado num cofre. Sem dúvida, sabia que ele desmascararia os pequenos truques com que os políticos imaginam (“nada nessa mão, nada nessa outra”) driblar a História com números de prestidigitação. Como repórter político havia feito isso por toda a sua vida em relação a episódios sobre os quais não tinha a responsabilidade dos testemunhos, pois apenas os registrava.
A diferença estava no detalhe. Antes – e depois, nos 32 anos seguintes, até a sua morte – Carlos Castello Branco agiu sempre como jornalista. No caso da renúncia, porém, era diferente. Participante do governo Jânio Quadros – numa posição que o organograma da administração federal considera “gabinete pessoal do Presidente”, havia sido em alguns momentos coadjuvante, pois tinha acesso a Jânio e intermediara contatos com terceiros (foi, por exemplo, o canal mais fluente de Brizola com o Planalto) e era comensal e confidente do mais íntimo grupo de colaboradores presidenciais. Precisava, portanto, honrar compromissos da cumplicidade de que só estão livres os repórteres enquanto repórteres. Felizmente, tinha, na mesma proporção, consciência dos seus deveres para com a História, como demonstram os cinco volumes (Agonia do Poder Civil, A Queda
de João Goular e Os Militares no Poder – I, II e III), reproduzindo a Coluna do Castelo, do Jornal do Brasil, entre 1963 e 1970. Esses livros (que permitem fácil acesso aos textos
publicados e que só poderiam ser recuperados através de consulta às coleções de jornais) são fonte, em muitos casos exclusivas, para reconstituição dos principais acontecimentos políticos do período. Também demonstram que sempre praticou esse método. Eis um exemplo.
Em 1954, no dia 10 de março, as edições dos jornais refletiram o impacto do primeiro Ato Institucional, mãe de toda degradação jurídica que se desenvolveria nos vinte anos seguintes de ditadura militar. Baixado de surpresa, na véspera, pelo Comando Supremo da Revolução, título a que se atribuíram os três Ministros Militares, general Costa e Silva, brigadeiro Melo e almirante Radmacker, era acompanhado pela primeira lista de cassações, sumárias, sem processo e muito menos defesa, de mandatos e direitos políticos.
Os editores dos jornais se perderam, desorientados, naquele mar de informações, agitado pelo furacão de uma nova categoria de lei que o Brasil não conhecia desde 1946. Ninguém, por exemplo, se lembrou que a designação Ato Institucional repetia jargão do Estado Novo de 1937. As eleições de 1945, por exemplo, haviam sido convocadas por Ato Adicional… Era perturbador, porém, que o Alto Comando informasse, com firmeza e desprezo, seu desdém pela representação popular do Congresso Nacional, avisando, entre outras coisas: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte” (…) “Fica assim, bem claro, que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso.
Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.”
Nunca se havia visto desmoralização tão escrachada da Constituição de 46, que até então os golpes militares procuravam, acanhadamente, reduzir a meros e momentâneos arranhões, logo sanados com a cumplicidade do Congresso. Assim havia sido em 54 (deposição de Vargas); em 55 (deposição de Carloz Luz e Café Filho) e em 61 (imposição do parlamentarismo para posse de Jango).
Nesses trechos do preâmbulo do Ato Institucional estava implícito que havia algo – alguma “mão invisível” – acima e superior às limitações intelectuais dos ministros militares do autoproclamado Comando Supremo da Revolução. Continha um nexo que não se via nas intrigas à esquerda e à direita que antecederam o golpe de 31 de março, deflagrado pelo levante de Juiz de Fora. Que haveria e, principalmente, “quem” estaria por trás daquilo?
A resposta estava na Coluna do Castelo, onde segundo Wilson Figueredo a classe média refazia “o raciocínio de cada dia”. Eis o que informava secamente Carlos Castello Branco no dia 10 de março de 1964: “ O jurista que deu a segurança final aos militares da legitimidade do Ato Institucional, como emanação do poder revolucionário juridicamente
válida, foi o Sr. Francisco Campos”.
A presença – a que título fosse – de Francisco Campos junto aos ministros militares significava que havia sido plantada a semente fascista que marcaria indelevelmente o regime militar até sua extinção em 15 de março de 1985.
Ou seja, o Supremo Comando da Revolução – oficiais generais meramente truculentos, desprovidos de informação política e cultura filosófica, apesar dos seus cursos profissionais – estava sob a influência de um cérebro perverso.
Francisco Campos, Chico Campos, Chico Ciência, era o mesmo autor da Constituição do Estado Novo, de 1937, Ministro da Justiça de Vargas, homem de extraordinário saber e firmes convicções totalitárias. A título de dar-lhes uma consulta técnica sobre a eficácia jurídica de um ato discricionário, Chico Campos doutrinou-os eficazmente sobre o poder sem limites que passariam a dispor se desmoralizassem pela força a utopia democrática.
Tudo o que fatos e depoimentos futuros revelariam estava implícito na curta citação da Coluna do Castelo de 10 de março de 1964. Se Chico Campos escreveu, ou soprou o Ato Institucional (depois se saberia com precisão de que ele o redigiu do próprio punho), o espírito fascista tornara-se dominante.
Assim, enquanto praticamente todos os jornais daquela data envelheceram, caducaram, no dia seguinte já não passavam de “jornal de ontem” (“já li, já reli, não quero mais; agora quero outro…” como na letra na canção popular) e hoje são meras relíquias, o registro da Coluna do Castelo tornou-se uma referência do tipo que ainda hoje os cristãos encontram nas profecias de Isaías: sinais que se devem observar e que nem sempre trazem tranqüilidade, mas explicam o que está acontecendo. Com a diferença de que, em vez da linguagem bíblica, que requer exegese, Carlos Castello Branco publicou o nome do diabo.
A obstinação com que escreveu seu depoimento “A renúncia do Jânio” – e guardou o manuscrito–ea perspicácia com que anunciou a fascistização do golpe militar, identificando o dedo perverso de Chico Campos no documento dos ministros militares no dia 10 de março de 1964, são apenas uma amostra do tipo de jornalismo, de reportagem que ele praticava. Não só atento e bem-informado, mas seletivo e alerta. Ele sabia o que era relevante e irrelevante.
Observe-se, porém que a adjetivação e a escandalização dos dois exemplos aqui tomados não são dele, que se limitou a narrar essas cenas e reproduzir falas importantes como se não o fossem, sem grifos ou outros sinais gráficos de ansiedade. Ele não praticava as exclamações de Nelson Rodrigues, o panfletário cômico, embora, muitas vezes fosse capaz de registros de irresistível comicidade.
Era assim com os corifeus, mas também com coadjuvantes que, transgredindo a lógica narrativa do espetáculo político, roubam a cena em alguns momentos. Como um certo Amaral Neto.
Vejam esta pequena nota da Coluna do Castello do dia 18 de abril de 1963: “Quando o sr. Amaral Neto descia da tribuna recebeu caloroso abraço do sr. Aliomar Baleeiro. “Grau
dez”, disse o sr. Aliomar Baleeiro. E acrescentou: “Você é o analfabeto mais inteligente que eu conheço.”
Amaral Neto era um antigo jornalista, tão profissionalmente opaco quanto audacioso em matéria de iniciativas. Direitista, conspirava com os militares, criou o Clube Lanterna (para explorar o lacerdismo nos anos 50) e do Maquis, que começou sob a forma de um panfleto, mimeografado e clandestino nos dias seguintes ao golpe de 11 de novembro, tornando-se depois uma revista em off-set com boa tiragem. Mais tarde se tornaria fenômeno eleitoral no Rio, elegendo-se deputado estadual e deputado federal sete vezes, até a morte, tendo como bandeira, no final, a defesa da Pena de Morte no Brasil. Fez sucesso na TV com o programa Amaral Neto Repórter, de grande audiência popular e onde ganhou muito dinheiro explorando “temas otimistas”, tão reclamados pela propaganda do Brasil, Grande Potência do regime militar. Também foi envolvido em acusações pelo assassinato de sua ex-mulher, bem mais moça que ele, em São Paulo. Pela rápida ficha, vê-se que foi um personagem venturoso.
Pois bem, com tudo isso, qualquer biografia de Amaral Neto não o revelará sem a síntese da pequena nota de três linhas da Coluna do Castelo de 1963.
Entre 1962 e a sua morte, em 1993, enquanto esteve de pé sua Coluna do Castello, usou e abusou, mesmo sob censura, e apesar dela, da sua astúcia de repórter. Seu horror ao charlatanismo levava-o a fugir da tentação de previsões, que assistiu tornar-se uma das atividades mais rendosas de Brasília. Reconhecia ser mal de prognósticos e não cometia previsões, pelo contrário, evitava-os. No entanto, com a cumplicidade de uma rede de informantes, registrou os acontecimentos do dia tal precisão, riqueza de detalhes e avalia-
ção dos efeitos que são publicados, hoje, sem retoques. Quase sempre nem houve o que acrescentar-lhes. Quando não era possível registrá-los – a censura direta nem sempre era o principal impedimento e Carlos Castello Branco foi um craque em avaliar riscos e driblá-los – lançava preciosas sementes, às vezes chispas, como esta admirável
e oportuna frase no fecho da Coluna do Castelo em que fez o necrológio de Juscelino Kubitschek.
No registro – Juscelino morreu num confuso desastre automobilístico na Via Dutra – a Coluna do Castelo de 24 de agosto de 1976 lançou a dúvida, que ainda persiste e se amplia à medida que se conhecem mais sobre as conspirações terroristas dos serviços secretos da ditadura militar que agiam autonomamente. Já estávamos no Governo Geisel, empenhado em por fim aos crimes da repressão, que continuavam a ser cometidos à revelia do Presidente.
Na última linha de caloroso e comovente testemunho pessoal sobre JK – de quem havia acompanhado a trajetoria desde prefeito de Belo Horizonte, onde vivia na época – arranja jeito de lembrar que sua “morte foi estranhamente antecipada por uma boataria que correu o país 15 dias antes dela ocorrer”.
Naquele momento, seria impossível denúncia mais clara.
As mortes anunciadas são sempre suspeitas, principalmente quando ocorrem como foi o acidente da Via Dutra.
A trajetória profissional de Carlos Castello Branco, marcada pelo trabalho, honestidade e astúcia, mas ornada com um toque de elegância, repete sua vida pessoal e se revela curiosa desde as indicações do seu roman a clef “Arco do Triunfo” e dos seus contos, alguns de forte realismo erótico; da sua pouco conhecida rota de emigrante nordestino, pois, embora gostasse de repetir o Luiz da Silva (personagem alagoano de “Angustia” de Graciliano Ramos) de que era “um pobre nordestino perseguido pela adversidade”,
sua rota do Piauí para o sul, no caso o Rio de Janeiro, não repetiu os alagoanos, que vinham pelo litoral, pelos navios Ita, de cabotagem (como os maranhenses, cearenses, pernambucanos, alagoanos), enquanto ele veio pelo sertão, via Belo Horizonte, onde se formou em Direito e se iniciou no jornalismo; sua condição de procurador do DNER, que exerceu no seu período de maior sucesso como repórter político.
Sua carreira, aprendizagem e ascensão ao posto de nº 1 do jornalismo brasileiro, que ocupou por longo tempo, cumpriu estágios penosos, esquecidos nas referências biográficas, que privilegiam seu período de celebridade. Foi a seqüência de redações, patrões e companheiros, de um lado, e de protagonistas e fontes da crônica política, do outro, que lhe permitiram firmar uma das mais lúcidas e honestas visões da condição profissional do jornalista. Nenhum regime, nem a censura, cujos limites chegava a explorar temerariamente, com astúcia e inteligência, nem os insultos (como o de Carlos Lacerda, acusando-o de liderar um “sindicato da mentira” e depois se penitenciando e editando seus livros); nem a violência, da prisão às ameaças da família Figueiredo (de que se livrou graças à intermediação oportuna do general Octávio Costa); nem a dor pela morte do
Rodrigo e as infelicidades de Pedro, filhos tão amados – nada conseguiu perturbá-lo, corrompê-lo ou impedir, como aconteceu durante a ditadura de 1964-1985, que combatesse pela causa com que confundiu sua vida: a liberdade de informação. Ou, se preferirem, a verdade histórica, de que “A renúncia de Jânio” é, mais que um depoimento, singelo exercício prático.