Como parte das celebrações do Centenário da Revolução Russa, a Companhia Ensaio Aberto estreia em outubro deste ano 10 Dias Que Abalaram O Mundo. A busca por retratar dramaturgicamente 10 dias em que as esperanças e as utopias começaram a se tornar realidade. Uma crônica de cenas vivas do modo de sentir das massas e da cobertura das primeiras semanas da Revolução Russa de 1917. Com estreia em outubro, mês em que ocorreu a Revolução, a temporada prevê atingir um público médio de 30 a 35 mil espectadores.

A Companhia Ensaio Aberto e o Armazém da Utopia, em 2017, para celebrar os 100 anos da Revolução Russa e os 25 anos do grupo, contam os 10 Dias que Abalaram o Mundo, espetáculo com direção de Luiz Fernando Lobo, uma adaptação livre do livro de mesmo nome, um dos primeiros livros-reportagem da história, o clássico do jornalista norte-americano John Reed.

A Fundação Maurício Grabois mantém parceria com a equipe de produção, contribuindo de diversas formas, assim como recebeu para uma entrevista, Luis Fernando Lobo, o diretor e dramaturgo, Giovane Barone, ator, captador e produtor, Rogério da Silva, diretor do Instituto Ensaio Aberto e Renata Stilben, produtora executiva. O historiador Fernando Garcia, coordenador do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois, conta que iniciou-se uma conversa por conta de um espetáculo anterior sobre Brecht, quando, em 2016, apresentaram a proposta de parceria com 10 Dias que Abalaram o Mundo. “Nossa expetativa é de contribuir com os debates e seminários. Temos uma programação em construção aliada à seção fluminense da Grabois”, declarou Garcia.

Num momento de golpismo ultraliberal, não apenas no Brasil, o tema soa anacrônico. “É o espetáculo errado na hora errada e o espetáculo certo na hora certa”, divertiu-se Lobo. Ele acredita que vai ser muito difícil produzir este espetáculo, neste momento. “A gente provavelmente vai sofrer muito boicote, de toda natureza. Temos que ter precauções inclusive com a integridade física. Mas, por outro lado, é um espetáculo necessário, porque o que aconteceu no Brasil, na luta entre capital e trabalho foi uma ruptura. Mais uma vez, essa conciliação foi rompida, e não foi pelos trabalhadores, que precisam ser conscientizados que essa conciliação com o capital tem limites”, defendeu Lobo.

Um americano entre revolucionários

A opção pelo relato de John Reed se deu por alguns motivos muito importantes, segundo o dramaturgo. “Tem uma coisa muito nova na prosa dele, escrevendo como testemunha ocular, mas já no prefácio dizer que não era um relato isento, acabando com essa mentira burguesa da isenção.  Ninguém pode ser isento, sobretudo o ator social, o artista, que está sempre mergulhado no caos, como dizia Marshall Berman, e tem que fazer desse caos seu material de luta”.

Além disso, o americano John Reed, cobrindo a primeira guerra, teve acesso aos dois lados da informação. “O próprio Lenin dizia, e Trotsky também, que ele foi o cara que retratou a revolução melhor, porque tinha acesso aos dois lados. Então, isso produziu documentos importantes para que não se tivesse apenas um dos lados. Sem falar que a prosa dele é muito bacana”.

Embora seja a base da dramaturgia, o texto da peça avança sobre elementos externos ao livro. Conta como a revolução consegue chegar a outubro. “Ela não nasce de geração espontânea, vem de uma luta operária de anos. Vamos contar o nascimento dos sovietes”.

John Reed comenta no livro que é muito difícil, como ator social, num momento conturbado como esse, saber aonde está a verdade, selecionar o que ver e o que ouvir. “Então, o público vai assistir o espetáculo em pé, como parte da multidão revolucionária, um pouco perdido vendo os acontecimentos”, antecipa. Ele gosta do modo como o relato de Reed valoriza os anônimos construtores dos sovietes que fizeram a revolução, mesmo citando as principais lideranças.

A peça tem uma estética de teatro épico. Talvez a única cena mais íntima, menciona Lobo, seja o momento em que Lênin e Trotsky deitados no chão, exaustos, na noite da tomada do Palácio de Inverno, dizem que está tudo girando. Momentos reflexivos também estão presentes, como quando Lênin diz que mesmo que a revolução venha a ser vencida algum dia, essa experiência será inesquecível para os construtores das futuras revoluções.

Desta forma, os iniciados deverão perceber as influências de Le Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, Yuri Lyubimov do Taganka, Meyerhold, Brecht, Agitprop, Coro Proletário, entre outras; estéticas a que a Companhia Ensaio Aberto presta tributo, sem fugir de sua originalidade e objetivos políticos.
Financiamento

Os 10 Dias que Abalaram o Mundo deve ter em cena por volta de 60 pessoas. Se considerar toda a equipe, deve passar de cem envolvidos. Para Rogerio Silva, a ideia é encantar pela qualidade estética também, não apenas pelo conteúdo. “Tem uma tradição de esquerda como se o povo gostasse de coisa ruim. Pobre gosta de coisa bonita. Agora, qualidade custa!”, diz o diretor do Instituto. “Conseguimos um negócio sustentável, considerando o período que estamos passando”, avalia Silva.

Lobo, por sua vez, aponta uma ousadia neste espetáculo. Desta vez, a companhia está começando a trabalhar para um espetáculo que estreia em outubro. Normalmente não se tem essa antecedência no Brasil, portanto, tem-se mais dificuldade de criar um fato cultural. “A divulgação que estamos tendo hoje, já daria pra estrear o espetáculo amanhã. Imagina como vai estar em outubro! No nosso caso isso é muito importante, porque vai se criando uma rede de solidariedade na esquerda. Esse espetáculo precisa ser montado com uma rede de solidariedade, em todos os sentidos, não só no financiamento, mas na troca de ideias e materiais”.

Barone enfatiza que, do ponto de vista do financiamento, é uma “guerrilha cubana”, porque os recursos são escassos. Não há subvenção de governos. “A gente trabalha com a Lei Rouanet, mas, nesse momento, é difícil captar, porque tínhamos financiamento de empresas estatais que estão sofrendo um verdadeiro massacre e sucateamento”, salientou o produtor.

Lobo diz ter uma “crítica dialética” a grupos de esquerda que se contentam em falar a guetos muito pequenos, “pessoas que já conhecem aquelas ideias”. “O sentido de fazer espetáculos como esse é, não só falar com a esquerda, a primeira a ir, mas também falar a pessoas que não são de esquerda e que precisam ter a consciência transformada”.

Público interativo

A recepção do público às peças da companhia é muito curiosa. Lobo acredita que, como em qualquer país burguês, existe um preconceito enorme de que as massas populares não têm condições de uma fruição estética elevada. “Nossos espetáculos mostram que isso é um absurdo, porque as questões mais subjetivas e mais sutis quem percebe é o público popular, não o burguês. Você sente isso no próprio tipo de audiência que acompanha o espetáculo. É muito diferente o silêncio burro de quando a plateia está efervescente. Quanto mais heterogênea e popular a plateia, mais efervescente.”

Lobo conta que tem depoimentos de professores, que dizem que os alunos “são uns capetas e não ficam quietos de jeito nenhum”. “- Aqui não foi preciso mandar calar a boca”, diz o dramaturgo. Segundo ele, os alunos de escolas públicas querem ser fotografados com a equipe da peça. “A gente tem uma tradição de que não vamos embora, enquanto tiver público no teatro. Às vezes, o espetáculo dura umas duas horas, mas o público fica pelo menos uma hora com a gente pedindo referências, todos os dias. Percebem que há estudo e pesquisa, e, assim, notamos que é mentira que as pessoas não gostam de estudar”.

Barone diz que, quando terminava Sacco e Vanzetti, alguns alunos faziam roda e começavam um bate-papo sobre o espetáculo. “No Instituto Federal da UFF montou-se um grupo de teatro baseado no nosso método de trabalho influenciado pela montagem de Sacco e Vanzetti. A gente não quer apenas um público passivo, mas um público que recria experiências e faça teatro, passe a discutir política e ser militante também”, diz o ator.

Obra monumental

A companhia Armazem da Utopia completa 25 anos sempre trabalhando com temas claramente políticos. Desde o começo se assume como uma companhia marxista/comunista, já na montagem de A mãe, do Gorki e Brecht, em 1996.

“Mas, todos nossos temas são ligados à luta social, luta por transformação e não só os temas, mas o nosso público preferencial, que são os operários, as pessoas de baixa renda, a periferia, formadores de opinião, claramente um público de esquerda”, diz Lobo.

Entre as 27 obras já encenadas, Lobo escolhe Cemitério dos Vivos, que contava a internação do escritor Lima Barreto no primeiro hospital psiquiátrico da América Latina. “Considerado louco, embora fosse alcoólatra, esta peça foi quando começamos a falar sobre a república dos excluídos”.

“Companheiros foi um espetáculo marco na nossa história, tanto em termos de criação artística, como também foi o primeiro espetáculo a atingir uma massa de espectadores, grandes multidões de até cinco mil pessoas”, lembra o autor. A peça conta a história da esquerda na América Latina.

Missa dos Quilombos (de Milton Nascimento, João Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra) foi o espetáculo que durou mais tempo, doze anos em cartaz, com viagens pelo Brasil inteiro e exibições internacionais.

Olga Benário, um Breve Futuro foi um marco em 2006. Embora fizesse parte da tradição do teatro-documentário, que parte apenas de documentos e não ficções, este espetáculo foi o primeiro em que o grupo fez pesquisa em material primário, o que também é inédito em termos de teatro brasileiro. “Fomos à Alemanha e pegamos arquivos soviéticos nas duas alemanhas. Foi uma pesquisa muito rica em que a própria Anita, filha da Olga, não conhecia uma série de matérias que trouxemos. Sempre nessa ideia de contar a história dos vencidos para que a historia avance”, explicou o dramaturgo.

Merece destaque, ainda, o trabalho mais recente, Sacco e Vanzetti (de Maurício Kartun), mostra o primeiro julgamento midiático de dois anarquistas condenados injustamente a pena de morte.

Revitalização cultural

O espaço Armazém da Utopia é resultado de uma ocupação que levou oito anos de luta “para conseguir legalizar o que era legítimo desde o primeiro dia”. Era um espaço abandonado de mau uso, no cais do porto do Rio de Janeiro, pertencente ao Governo Federal, que não conseguia dar uso. “A gente propôs desde o primeiro momento um uso público da terra, ou seja, o espaço continua sendo público, mas a gente conseguiu uma gestão de 40 anos para o Armazém”, explicou Lobo.

Estão entrando no sexto ano de ocupação, desde outubro de 2010, o que pode criar novos paradigmas para o Brasil, como já ocorre em outros países, revitalizando estes espaços com ocupações culturais. “No Brasil você tem equipamentos como estes abandonados em qualquer capital brasileira, armazéns do porto, ferroviários, antigas estações de bonde, de trens, antigas fábricas, que estão fechados e, ou são demolidos, o que é um absurdo, porque são um patrimônio inestimável dos trabalhadores. Assim, o Armazém pode se tornar um paradigma para outras localidades”, defende ele.