Eis a única fotografia da família Ulianov em que eles estão todos juntos… Ao centro vemos o pai, Ilia Nikolaevitch, e a mãe, Maria Aleksandrovna. Ao colo da mãe está a filha mais nova, de nome Maria; apoiada ao ombro da mãe, a Olga. À direita e à esquerda do pai estão os mais velhos – Anna e Aleksandre -, aos seus pés instalou-se Dmitri; à direita, Vladimir…

Vladimir Ilitch Lênin saía ao pai: as mesmas maças do rosto dilatadas, a mesma testa levantada. Herdou ainda do pia a vivacidade, a alacridade e a sociabilidade. Até no sorrido empático pai e filho eram idênticos. No seu modo de vida, ambos eram despretensioso. De resto, este traço de caráter era comum a todos os Ulianov. Viviam numa casa muito simples em Simbirsk*. A ilustrar as parcas condições em que viviam temos o quarto de Valdimir, mobiliado com uma cama de ferro, uma mesa de madeira, duas cadeiras e uma estante de fabrico caseiro pregada à parede. Mesmo posteriormente, Vladimir Ilitch limitou0-se sempre ao mais necessário. Não obstante, em casa dos Ulianov nunca faltou o conforto. Havia muitas flores, que eram regadas assiduamente por Maria Aleksandrovna. Ela cuidava da casa da maneira mais exemplar.

Lênin herdara de sua mãe o esmero e a pontualidade. Aliás, o talento de organizador, em certa medida, veio também dela. Maria Aleksandrovna sabia organizar brilhantemente a vida da sua grande família. Além de tratar da lida doméstica, educar seis crianças, ensinar-lhes música e línguas, sendo também uma boa autodidata, ela passava muito tempo com as alunas do liceu feminino, onde era curadora.

O legado Ulianov

Cada pessoa recebe muito dos seus pais. Atualmente, pronunciamos com facilidade os termos “genética” e “ código genético”, mas naquela altura dizia-se “é de família”. Ora, muitos traços familiares têm as suas raízes não nas leis genéticas, mas sim no modo de vida familiar, no sistema de valores e relações interpessoais que se vão formando no seio da família.

Em todos os Ulianov havia um encanto bem peculiar que advinha do interesse sincero em relação ao próximo, do respeito apara com este, da sapiência rara de ouvir e escutar o outro. A esposa de Valdimir Ilitch, Nadejda Konstantinovna Krupskaia, recorda o seguinte episódio: um dia, depois de Lênin ter adoecido, veio visita-lo uma delegação de operários; posteriormente, todos os participantes do encontro disseram que tinha sido excelente e comovente a forma como Vladimir Ilitch lhes falara; ora, na realidade, Lênin não lhes disse uma única palavra, limitou-se a ouvi-los.

Na família Ulianov, as “lições” de atenciosidade começavam logo na primeira infância. Ilia Nikolaievitch e Maria Aleksandrovna souberam criar uma atmosfera de benevolência e bem-estar. As pessoas que vinham lá a casa sentiam-se à vontade e em conforto, não é por acaso que os Ulianov eram muito visitados.

No cumprimento das suas funções de inspetor e, posteriormente, de diretor das escolas de cursos gerais, Ilia Nikolaevitch ia assistir as aulas. Entrava na sala e sentava-se numa carteira ao lado dos alunos que, mal ele aparecia, se apressavam a convidá-lo a sentar-se junto deles. À hora do recreio ele via-se cercado por um círculo denso de crianças.

Os pequenos Ulianov viram a sua mãe entre camponeses em Kokuchkino, numa pequena propriedade do avô, o doutor Blank. Maria Aleksandrovna, ao passar pela aldeia, parava a cada instante para falar com as pessoas com quem se cruzava, compartilhando com elas os problemas da vida. E ao fim da tarde as mulheres da aldeia vinham ter com ela para se aconselharem ou para lhe mostrarem o filho que adoecera, na expectativa de ouvirem boas palavras da filha do doutor. Ela ajudava no que podia. Já depois da Revolução, os camponeses de Kokuchkino pediram ao Governo dos operários e camponeses que fundasse uma escola na aldeia e lhe desse o nome da mãe de Lênin.

Maria Aleksandrovna mostrava-se solicita à mais pequena coisa. Quando se preparava para ir a algum lado, metia sempre numa sacola botões, fios, agulhas e outras coisas, a contar também com as necessidades de eventuais acompanhantes. Ao preparar cada encomenda que enviava para a prisão – suportou vinte e duas detenções de filhos seus – fazia a maior quantidade possível de bolos e sandes [sanduíches] para que os companheiros de prisão tivessem pelo menos uns dois dias reconfortantes…

A tendência de acudir em ajuda aos outros, agindo imperceptivelmente e evitando qualquer importunidade, estava bem arraigada na mentalidade dos pequenos Ulianov. Olga e Vladimir iam mais cedo para o liceu para ajudar os colegas a fazer traduções difíceis do latim e a resolver problemas de matemática. Nos últimos anos do liceu, Vladimir passou a ter um aluno, chamava-se Nikifor Okhotnikov. Embora tivesse rasgo para a matemática – aprendera por si próprio a matéria que se exigia nos liceus – para ingressar na universidade teria que fazer os exames liceais às outras disciplinas. Vladimir incumbiu-se de o preparar para os exames “ad hoc”, recusando o dinheiro das explicações, apesar de a sua família estar em aperto monetário após a morte do pai.

Os Ulianov eram capazes de repartir com qualquer necessitado a última côdea de pão. Aleksandre tinha duas medalhas de ouro: uma recebeu-a ao terminar o liceu e a outra foi-lhe atribuída pela tese científica na universidade. Empenhou uma para ajudar um camarada necessitado e a outra, para comprar ácido nítrico para o fabrico de bombas, para defender a causa comum.

As pegadas de Ilia

Contudo, o amor ao trabalho foi a  coisa mais importante que Ilia Nikolaevitch e Maria Aleksandrovna souberam incutir nos seus filhos. Todos eles estudavam com bastante entusiasmo e eram os melhores alunos da escola. Em casa nunca ficavam de braços cruzados: as raparigas bordavam e os rapazes cortavam lenha e tratavam do quintal; todos juntos redigiam a revista familiar. Os filhos seguiram as pegadas do pai: eram muito laboriosos e entregavam-se de corpo e alma ao cumprimento do seu dever. Esta qualidade de Lênin até era elogiada pelos seus adversários. Nesse contexto, são famosas as palavras do menchevique Fiodor Dan que se referiu a Lênin do seguinte modo: “…É o único homem que consegue estar 24 horas por dia ocupado com a revolução, que não tem outros pensamentos a não ser os pensamentos sobre a revolução e que nos seus sonhos só vê a revolução…”

Diferencinhas

Muito possivelmente só uma família tão forte e coesa poderá produzir idênticos traços de caráter e idêntico perfil moral em vários irmãos. Por outro lado, eles eram muito diferentes. Os mais velhos, Anna e Aleksandre, eram calmos e obedientes, ao passo que Vladimir e Olga… Onde aparecia Vladimir  aparecia também a algazarra e o barulho. Ele e Olga corriam entro de casa, no quinta, trepavam às árvores. Não, não eram anjinhos os pequenos que cresciam na família Ulianov, Vladimir tinha energias inesgotáveis. Os seus atos chegavam a intrigar Maria Aleksandrovna, pois os mais velhos tinham sido muito mais pacatos… Um dia, Aleksandre expôs no chão do quarto a sua coleção de cartazes de teatro. Dedicava-se a este passatempo havia vários anos e maravilhava-se a observá-los Vladimir lançou-se como um milhafre [ave de rapina] sobre o tesouro do irmão, amachucando e rasgando algumas folhas… Mas quando o diabrete vier a ser um rapaz crescido, o seu irmão será para ele o padrão a seguir. Vladimir gostava de Aleksandre, imitava-o, tentando fazer tudo como ele.

Afeição incontida

Podemos avaliar das relações entre os membros da família Ulianov com base na correspondência familiar.

Eis a carta de Vladimir a sua mãe:

“Querida mãezinha! Agora vivemos em Zurique, viemos para aqui para estudar nas bibliotecas…

Espero que por aí o frio já não seja muito intenso e que não te sintas enregelada no apartamento frio. Faço votos para que o inverno termine brevemente, para tu poderes descansar…”

Maria Aleksandrovna aguardava as cartas do filho que fora obrigado a viver longos anos no exílio. Aguardava o seu regresso, mas faleceu alguns meses antes. Em abril de 1917, Lênin regressou à Pátria. Na estação foi recebido por uma multidão de revolucionários operários, soldados e marinheiros. Discursou de cima de um carro blindado.

… Só na manhã seguinte Lênin e Nadejda Konstantinovna puderam ir visitar os seus germanos – a sua irmã Anna e o seu marido. Começava o primeiro dia de estadia na Pátria, um sem-número de questões inadiáveis aguardavam o líder. Mas antes de se lançar no contra-relógio impetuoso, Vladimir Ilitch foi visitar a campa de sua mãe ao cemitério Volkovo. Era imprescindível para ele vir ajoelhar-se perante a memória de sua mãe…

Os Ulianov mantiveram sempre o contato mútuo e punham logo de lado os assuntos pessoais para acorrerem a qualquer apelo. O tom lúcido e até atarefado das cartas parecia não deixar margem para a expressão de sentimentos. No entanto, estas linhas que Anna endereçou a Aleksandre são de uma ternura singela: “Não há neste mundo ninguém mais magnânimo e melhor que tu. Não sou só eu, a tua irmã, quem o diz, afirmá-lo-ão todos  os que te conhecem, meus solzinho!” Ele recebeu esta carta quando se encontrava detido na fortaleza de S. Pedro e S. Paulo.

E ele, nesses dias, pensava na sua irmã, sua amiga do peito: “…Perante os teus olhos sinto-me infinitamente culpado, minha querida Aninha. Quero pedir-te que me perdoes. Não vou enumerar tudo quanto de mal alguma vez te fiz, e, através de ti, à mamã: tudo isto é muito evidente para vocês, as duas. Perdoa-me, se puderes.” Esta carta foi redigida quando Aleksandre Ulianov, acusado de atentado ao czar, fora já condenado à pena de morte…

Olga vivia longe da sua casa materna, em Petersburgo. Estava bastante ocupada com os seus estudos no curso superior de formação feminina, além disso decorria a época de exames, mesmo assim lá arranjou tempo para se informar sobre os prazos dos exames na universidade: Vladimir fora autorizado a fazer exames por externo na faculdade de direito. Quando o irmão veio também para a capital, Olga passou a escrever carta atrás de carta, informando a mãe sobre todos os pormenores da vida dele: em que quarto se hospedara, em que condições estudava (não estaria a aproximar-se de um esgotamento), etc. Ela compreendia que sua mãe estava a viver um período dificílimo. Depois de perder um filho, deixar ir mais dois para os labirintos da capital, qual não seria o seu desassossego! As cartas em que falava do modo de vida do irmão foram as últimas… Olga morreu com o tifo aos dezenove anos.

Cumplicidade marxista

Com o correr dos anos a intimidade entre os Ulianov foi aumentando. Anna, Dmitri e Maria tornaram-se correligionários fiéis de Lênin. “ Nutri por Vladimir Ilitch um sentimento muito especial desde tenra infância – recordaria Maria Ulianova -, um misto de amor profundo e veneração, era algo muito peculiar, de ordem suprema. Quando me deixava ir ao sabor de caprichos e desobediências, bastava a menor suspeita de que Vladimir Ilitch pudesse vir a surpreender-me, para mudar radicalmente a minha atitude…

Eu acho que ele conquistou tanta autoridade graças à sua elevada atitude moral. As crianças são muito sensíveis às incoerências dos adultos, que muitas vezes utilizam duas morais: uma em relação às crianças e outra para consumo próprio…”

Lênin era, para eles, irmão e mentor. Na pequena cozinha que ele utilizava como gabinete de trabalho, Vladimir, aos dezoito anos, expôs à sua irmã Anna a teoria de Marx, os novos horizontes que esta permitia descortinar. Alguns anos depois ele cativou Maria e Dmitri com o marxismo e os ideais sociais-democratas. Vladimir Ilitch sentiu sempre o apoio deles. Tratavam sempre de lhe encontrar os livros e artigos necessários. Quando ele estava no desterro ou na prisão, trabalhavam nas bibliotecas sob a sua incumbência, tirando os apontamentos necessários, elaboravam os manuscritos dele para serem publicados.

Eis, pois, uma família em que todos eram bons amigos e se ajudavam mutuamente.

 Fragmentos do livro “Casa Materna”

*Simbirsk: cidade russa antiga das margens do Volga; Atualmente Ulianovsk. (N.do E.)

PAI

ILIA NIKOLAEVITCH ULIANOV (1831-1886): filho de um camponês servo; pedagogo democrata, diretor das escolas de cursos gerais na província de Simbirsk. Foi um dos partidários da instrução geral e igualitária de todas as nacionalidades da Rússia.

 

 

MÃE

MARIA ALEKSANDROVNA ULIANOVA (1835-1916): filha de um médico, formada pelo magistério primário.

IRMÃS

ANNA ILINITCHNA ULIANOVA (1864-1935): ativista do movimento revolucionário na Rússia; trabalhou em publicações bolcheviques, inclusive no Pravda. Após a Revolução, em 1917, passou a dedicar-se às questões da alfabetização e à atividade científica. É autora de um livro de recordações de V. I. Lênin.

OLGA ILINITCHNA ULIANOVA (1871-1891): entrou diretamente para o 4a. ano e terminou o liceu com medalha de ouro. Dominava doutamente quatro línguas estrangeiras. Estudou no curso  superior de formação feminina em Petersburgo, manifestando um interesse particular pelas ciências sociais e humanísticas.

MARIA ILINITCHNA ULIANOVA (1878-1937): participou nas revoluções de 1905 e 1917. Após a implantação do Poder Soviético foi secretária executiva do jornal Pravda e membro dos órgãos centrais do Partido Comunista. 

IRMÃOS

ALEKSANDRE ILITCH ULIANOV (1866-1887): estudante da faculdade de Física e Matemática da Universidade de Petersburgo; organizador de manifestações de jovens democratas, membro da organização revolucionária “Vontade Popular” que se pronunciava contra o czarismo e lutava pelas liberdades democráticas. Participou na preparação do atentado ao czar Alexandre III. Foi enforcado na fortaleza de Schlisselburg.

DMITRI ILITCH ULIANOV (1874-1943): formado em Medicina. Participou nos acontecimentos revolucionários de 1905 e 1917. Após a Revolução passou a ocupar-se das questões do Serviço de Saúde e dedicou-se à história do Partido. Contribuiu para a fundação do museu V.I. Lênin em Ulianovsk.

 

 

 Publicado em revista Sputnik, abril de 1987.