“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Poucas frases ficaram tão marcadas no imaginário latino-americano como esta, com a qual Gabriel García Márquez começou sua obra maestra, Cem anos de solidão. Publicada pela primeira vez em Buenos Aires (Editorial Sudamericana), a obra chegou às livrarias em maio de 1967 e, em menos de duas semanas, suas oito mil cópias estavam esgotadas. No Brasil, a primeira publicação foi em 1968, pela Editora Sabiá, então comandada pelos escritores Fernando Sabino e Rubem Braga. Hoje já são mais de 50 milhões de leitores, em 37 idiomas.

Como mais um registro do cinquentenário de Cem anos de solidão, o Jornal da Unicamp conversou com Alejandra Jaramillo Morales, professora do Departamento de Literatura da Universidade Nacional da Colômbia. Morales é especialista em leitura crítica de histórias latino-americanas e autora do livro Dissidências: treze ensaios para uma arqueologia do pensamento na literatura latino-americana do século XX. “O grande problema do realismo mágico, do meu ponto de vista, é ser um rótulo que deturpa a construção de mundo que há na obra de Gabriel García Márquez”, opina ela, na entrevista que segue.

Jornal da Unicamp – “Os leitores de ‘Cem anos de solidão’ são hoje uma comunidade que, se reunida em uma mesma terra, seria um dos 20 países mais povoados do mundo”, disse Gabriel García Márquez, em 2007. A que se deve o imenso sucesso da obra? O que a mantém atual há 50 anos?

Alejandra Jaramillo Morales – Há muitas interpretações para o êxito de Cem anos de solidão. Eu acredito que o elemento principal que gerou uma leitura massiva em centenas de países e comunidades tão diversas reside em que a novela instaura o mito, o pensamento mágico e formas não racionais de conhecer o centro das necessidades humanas. Dito de outra maneira, em uma época marcada pelo positivismo científico e pela racionalidade, Cem anos de solidão nos devolve a esperança em um ser humano complexo que, desde suas múltiplas facetas lógicas e ilógicas, pode se reconstruir. Isto também é o que faz com que a novela siga sendo atual, porque seguimos em uma era em que a razão e a lógica querem se sobrepor a outros tipos de conhecimento. Cem anos de solidão é uma saída inteligente e fascinante a essa imposição.

JU – Em 1979, García Márquez escreve: “Na América Latina e no Caribe os artistas tiveram que inventar muito pouco e, talvez, seu problema tenha sido o contrário: fazer verossímil sua realidade”. Em “Cem anos de solidão”, a sobreposição de diversas formas de pensamento (racional, irracional, mágico, histórico) questiona a racionalidade que rege a sociedade ocidental. Essa narrativa contribui para a compreensão da realidade e história latino-americanas ou obscurece reforçando estereótipos?

Alejandra Jaramillo Morales – O grande problema do realismo mágico, do meu ponto de vista, é o de ser um rótulo que deturpa a construção de mundo que há na obra de Gabriel García Márquez. Quando em Cem anos de solidão, García Márquez apresenta elementos insólitos como o encontro de Aureliano Buendía com o gelo, a ascensão de Remédios, a Bela, a morte em vida de Úrsula Iguarán, não está reforçando a ideia de que a América Latina é mágica. Pelo contrário. Está invertendo o sistema de valores, ao passar o insólito como normal e vice-versa, como uma maneira de tornar crível uma realidade quase ininteligível para as lógicas estrangeiras. Sim, Gabriel García Márquez, como muitos autores e autoras latino-americanos, enfrentou o problema de representar uma realidade que, ante outros olhos, não é fácil de entender e, muitas vezes, contribuiu para esclarecer as coordenadas históricas da América Latina.

JU – Como o livro se insere no boom latino-americano? Quem são seus precursores? Pode se considerar que houve uma ruptura com a literatura produzida anteriormente? Quais as principais inovações estéticas propostas pelo livro?

Alejandra Jaramillo Morales – García Márquez como escritor representa o relojoeiro. Um ser que pode passar anos construindo a engrenagem da obra mais importante em língua espanhola do século XX. Nessa minúcia de um leitor altamente inteirado da técnica narrativa, como foi García Márquez desde que publicou seus primeiros livros de contos e novelas, até chegar à escrita de suas maiores obras (Cem anos de solidão e Outono do patriarca), teve a habilidade de discernir entre a literatura com a qual claramente queria distinguir-se e as novas literaturas que podiam revolucionar a forma de escrever no mundo latino-americano. Assim, escreveu ensaios críticos, muito críticos, sobre as literaturas do realismo social latino-americano e colombiano, com as quais marca suas principais diferenças e o torna herdeiro consciente da novela europeia e norte-americana dos anos 20 até o seu presente. Dessa forma, se separa dos olhares sociológicos, antropológicos, nos quais a literatura se apropriava da realidade para criar um campo criativo em que a literatura, mais preocupada com o narrativo, reinventava a realidade.

Evidentemente, García Márquez faz parte da geração de escritores e escritoras que, na década de 60, sacudiram a novela latino-americana, renovando as formas de escrever e voltando a fundar, de uma maneira nova e mais crítica, as nações latino-americanas. Este encontro de escritores e escritoras, nestes anos, não apenas acontece através de sua criação literária, mas também no espaço físico. Europa, México, Argentina e Cuba promoveram múltiplos encontros de uns com os outros. Falo de autores como Clarice Lispector, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar, Ernesto Sábato, Albalucía Ángel, Elena Garro, Carlos Fuentes, José Donoso e muitos outros. Se cruzaram em trens, cafés, bares e teceram as conversas sobre a técnica da escrita de onde emergem as novelas da década.

JU – O que mudou na literatura latino-americana depois de Cem anos de solidão? A obra exerce influência sobre escritores contemporâneos?

Alejandra Jaramillo Morales – A sombra deixada pela obra de García Márquez na literatura latino-americana abre e fecha caminhos. Várias gerações de escritores e escritoras tiveram que chegar ao extremo de nem sequer lê-lo, para construir obras que não tenham o eco do grande êxito de García Márquez. Outros aprenderam a conviver com o imaginário construído pela obra de García Márquez e se nutriram dele, mesmo que busquem escrever a partir da diferença. Outros ainda, como os escritores dos anos 90, precisaram de irreverência e humor negro para se posicionar frente à tradição literária, separando-se do mundo de García Márquez. Pois, para a literatura latino-americana, seria uma catástrofe se o resto do mundo seguisse pensando que as novelas do boom já haviam contado o que havia para ser contado sobre a América Latina, se os escritores e escritoras posteriores não tivessem tomado essas distancias. Mas, sem dúvida, segue sendo uma referência latino-americana.

JU – Parte do sucesso da obra é atribuída à identificação instantânea e coletiva dos leitores com a história, sendo classificada muitas vezes como “espelho da alma latino-americana”. A obra oferece chaves interpretativas da identidade e história da América Latina?

Alejandra Jaramillo Morales – Sim. Cem anos de solidão é uma novela que pode ser interpretada como uma novela de identidade latino-americana. Mostra contradições muito particulares das comunidades do caribe colombiano, que podem, ao mesmo tempo, ser semelhantes a muitas comunidades latino-americanas. Mas não devemos ter ilusões, Cem anos de solidão é tão espelho da cultura latino-americana como O Jogo da Amarelinha (Julio Cortázar), Ficções (Jorge Luis Borges), Os Detetives Selvagens (Roberto Bolaño), A paixão segundo G.H. (Clarice Lispector). Porque, se existe um espelho da alma latino-americana, ele deve ser múltiplo, caótico, pleno de variações históricas, espaciais. Nem mesmo uma obra tão importante como a de Gabriel García Márquez poderia abarcá-lo.