Reflexões sobre a Revolução Russa no ano do seu Centenário
I
O primeiro ponto a se considerar sobre a Revolução Russa, numa retrospectiva de 100 anos, é se ela foi a última revolução europeia contra o capitalismo, do século XIX, ou se ela pode ser caracterizada como a primeira na periferia do mundo capitalista.
É de se lembrar de que a Revolução Francesa iniciou um ciclo revolucionário, na Europa (e no resto do mundo), que se fecha com a derrota da Comuna de Paris (1781). Até a Comuna, é possível vislumbrar um conjunto de influências revolucionárias como: o anarquismo, o blanquismo, o socialismo pré-marxista etc. Ou seja, onde é patente a presença de ideias europeias e de militantes sociais europeus naquele movimento, sendo a influência das ideias de Marx muito pequena ou quase nula. (Vejam-se, a propósito, as críticas de Marx aos “comunards” franceses, nos manuscritos guardados no Museu de História Social de Amsterdã, e as de Lênin, no ensaio As duas táticas da socialdemocracia russa à Comuna de Paris). Já a Revolução Russa traz a participação decisiva dos bolcheviques e a orientação marxista na condução do movimento revolucionário, sem desprezar o papel de anarquistas, dos camponeses, soldados e marinheiros. Sobre isso, há um longo debate entre revolucionários russos (não marxistas) e o próprio Marx sobre os caminhos disponíveis para a Revolução na Rússia, incluindo as possibilidades de uma passagem da antiga economia agrário-camponesa russa diretamente para o socialismo, muito ao contrário da ortodoxia engelsiana da necessidade de uma “revolução democrático-burguesa”. (Vejam as cartas de Marx a Vera Zazulitch, em comparação aos fragmentos publicados por Eric Hobsbawm, em Formações econômicas pré-capitalistas). Se for possível tomar a formulação leninista sobre o Imperialismo, e adotar a tese de que a Revolução se daria no “elo mais fraco” da cadeia imperialista, então temos de admitir que a Revolução Russa teria sido a última grande revolução socialista europeia, já no século XX. É assim que se pode interpretar a análise de Gramsci sobre “a guerra de movimento”, em referência à revolução. E seu prognóstico de que as futuras revoluções no Ocidente seriam “guerras de posição” (Veja-se Nota sobre Maquiavel, a Política e o Estado Moderno).
Independentemente da controvérsia sobre a ortodoxia revolucionária dos bolcheviques e a natureza de sua revolução, é indiscutível que Lênin se baseará nas obras de Marx para defender a Revolução Russa. Como se sabe, nenhuma revolução se faz de acordo com um manual; ocorre sempre dentro de circunstâncias bem determinadas. E a despeito do estatuto teórico duvidoso de muitas das posições leninistas, podemos aceitar o caráter socialista da revolução, num contexto de guerra e cerco das potências imperialistas à Revolução de Outubro.
Nesse sentido, a Revolução Russa pode ser considerada a primeira Revolução Socialista (vitoriosa) da história contemporânea. E que teve um formidável efeito multiplicador das ideias revolucionárias no mundo inteiro: na Europa e fora dela.
II
Outro ponto importante tem a ver com a discussão sobre o nacionalismo (ou luta anti-imperialista), democracia liberal e socialismo. Os que apontam na direção do “comunismo de guerra” dos primeiros anos se dispõem a admitir que originalmente trata-se de uma revolução anti-imperialista, onde uma espécie de acumulação primitiva faz muitas concessões à propriedade agrária dos camponeses – sendo, portanto, impossível caracterizar esse momento da luta revolucionária como uma construção socialista. É a etapa da chamada “Nova Política Econômica”, em que de fato abre-se um espaço para a propriedade camponesa, a fimde que os camponeses apoiem a revolução, num momento crucial de sua existência. A defesa da Revolução é mais importante do que a socialização das terras, num contexto de uma pequena classe operária industrial e do oceano agrário que era a Rússia nesse então. Buscar uma base doutrinária em Marx, Engels, Kautsky ou Chayanov para justificar essas medidas é inútil e desnecessário. As medidas de Lênin se devem ao calor da hora e a urgência de garantir o apoio campesino à Revolução.
Poder-se-ia objetar que tais concessões levariam a um reforço à mentalidade de proprietário do pequeno camponês. E que, num momento seguinte, seria necessária a expropriação da pequena propriedade. Mas a questão foi adiada e coube a Stalin resolvê-la, pela força, desorganizando até hoje a agricultura russa.
III
Mais complicada é, sem dúvida, a questão da democracia liberal. Num momento em que a Assembleia Constituinte estava funcionando e mantinha a pluralidade partidária, tanto quanto os Conselhos de Operários e Soldados, os bolcheviques decidiram a ele fechar órgão de representação política e os Conselhos, sob a alegação de conspiração ou oposição contrarrevolucionária à nova ordem instituída. O que teria levado Rosa Luxemburgo a dizer que a democracia e a liberdade de expressão só se colocam para quem diverge de nós, não para quem pensa igual a nós. Na verdade, a questão da democracia no âmbito da cultura marxista-leninista sempre foi encarada como um expediente tático. Nunca como estratégia revolucionária. Seria necessário aguardar o pensamento de Antônio Gramsci e seus intérpretes, para que fosse possível repensar “a hegemonia como contrato”, ou “rousseunizar” Gramsci, como diz o ensaísta brasileiro Carlos Nelson Coutinho (Marxismo e Teoria Política). O núcleo duro da teoria política marxista vê o Estado como um instrumento político a serviço da classe dominante. Dessa forma, a democracia só pode ser vista como um expediente tático, para acumulação de forças, em direção à revolução socialista. Daí o caráter das alianças políticas da classe operária e seu partido.
IV
Outra questão relevante é a dialética entre o nacional e o internacional, que depois estaria nocentro do movimento comunista internacional, envolvendo Stalin e Trotsky. A revolução socialista é mundial ou pode fazer, inicialmente, concessões a minorias nacionais? Como se sabe, desde o Manifesto do Partido Comunista, Marx admite que a emancipação do proletariado moderno não pode se dar, isoladamente, neste ou naquele país. Tem de ser um movimento internacional, sob pena de a contrarrevolução triunfar. Como o próprio capitalismo ajuda a escrever uma história mundial, a revolução socialista tem que ser, também, em escala mundial. Mas as circunstâncias históricas onde ocorreu a Revolução Russa (tanto internas, quanto externas) foram determinantes no recuo estratégico e na defesa da União Soviética, durante o “comunismo de guerra”. Antes mesmo de Stalin ter proclamado a doutrina do “socialismo em um só país”, o próprio Lênin já reconhecia que era preciso consolidar a revolução, e para isso seria necessário fazer certas concessões ora aos camponeses ora às nacionalidades, ora à burocracia residual do velho regime. Rosa Luxemburgo foi a primeira a chamar a atenção do líder bolchevique para o fato de que tais concessões poderiam representar, no futuro, uma ameaça ou um entrave para a constituição de uma verdadeira República Soviética. Mas naturalmente prevaleceu a opinião de Lênin, depois reforçada por Stalin no debate com Zinoviev e Trotsky. Difícil seria, como em outros casos, achar uma segura base doutrinária para essa tese, já que se tratava de um arranjo tático numa conjuntura política crucial para a sobrevivência da Revolução (a propósito, leia-se Um passo adiante e dois para trás e Esquerdismo: doença infantil do comunismo, ambos de Lênin).
Na verdade, quando se compara a possibilidade de uma revolução socialista na Europa com aquela que se deu na Ásia, e depois na América Latina e na África, se percebe o peso da questão nacional em relação ao internacionalismo proletário. A despeito de a Internacional Comunista ter sido pensada como “o Estado-Maior da revolução mundial”, ela foi usada por Stalin em função das conveniências políticas (nacionais) da União Soviética. Veja-se, por exemplo, o que ocorreu com os comunistas na guerra civil espanhola.
V
Outro ponto muito discutido na experiência revolucionária russa (e fora da Rússia) é o do papel dos camponeses. É preciso dizer que Marx, diferentemente de Engels, Lênin ou Chayanov, nunca morreu de amores pelos camponeses e/ou pela pequena propriedade rural. É conhecida a sua famosa expressão “um saco de batatas”, referindo-se ao campesinato francês, que sempre votava a favor dos Bonaparte (Ver O Dezoito de Brumário de Luiz Bonaparte). Seu companheiro Engels, e depois Lênin, é quem manifestaram uma acuidade política maior em relação à questão camponesa, na Europa e fora dela. O primeiro escreveu o conhecido artigo O problema camponês na França e na Alemanha. E o segundo sempre teve o maior cuidado de contemplar as reivindicações do pequeno campesinato no processo revolucionário, sobretudo na fase democrático-burguesa da revolução. A tendência do desenvolvimento do capitalismo no campo era a proletarização objetiva dos camponeses e sua transformação em operários. Mas, subjetivamente, as coisas não eram assim. Muitosalimentavam a ilusão da posse da terra, mesmo em condições de profundo endividamento. Não eram ideologicamente a favor da coletivização da terra. Se na Europa ainda havia resquícios de uma mentalidade feudal ou camponesa entre os trabalhadores do campo, imagine na Rússia! Na verdade, a decisão de coletivizar (à força) a agricultura soviética foi de Stalin, numa espécie de acumulação primitiva do “socialismo em um só país”. E essa decisão custou-lhe muito caro: desorganizou a agricultura soviética por muitas décadas.
Agora, como transformar isso numa teoria revolucionária, contemplando a situação particular dos camponeses, é o problema teórico. Máxime para os países de desenvolvimento capitalista tardio. A não ser que os pequenos camponeses fossem encarados como “aliados táticos”, numa certa fase da revolução. Depois, seriam descartados se não aderissem ao socialismo. Pessoalmente, considero a questão agrária ou camponesa como uma espécie de “ponto dollens” da teoria revolucionária do socialismo, sobretudo quando levado para a periferia do capitalismo.
VI
Já a questão da relação entre Democracia e Socialismo divide os marxistas há muito tempo. Marx, que não morria de amores pela “democracia burguesa”, parece não ter dado muita importância a essa questão. Apesar de a tese dos marxistas contemporâneos, apoiados em Gramsci, apontar para um processo de ampliação do Estado nas sociedades ocidentais, em razão da constituição de uma sociedade civil robusta e complexa, acho difícil encontrar no pensamento de Marx abrigo para uma estratégia democrática radical para o advento do socialismo. Existe, é verdade, o testamento de Engels falando do avanço eleitoral da socialdemocracia alemã, no final do século XIX, e da possibilidade de uma vitória eleitoral do proletariado naquele país. Entretanto, esse testamentotornou-se mais um problema – na história das disputas internas no pensamento socialista – do que uma solução. Foi preciso esperar os debates do pós-guerra, para ver a elaboração daquilo que veio a ser conhecido como “eurocomunismo” e de uma estratégia democrática (processual) para o advento do socialismo.
Nada disso havia no período anterior às duas grandes guerras. O debate entre “guerra de movimento” e “guerra de posição” ainda não tinha se colocado com tanta força para os partidos socialistas do Ocidente, como depois do refluxo da onda revolucionária. A questão parecia simples: Revolução Permanente, com a transmutação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista, sob a liderança da classe operária, ou as revoluções por etapa, respeitando-se o ritmo, o caráter específico e a direção dos processos revolucionários. Como ficou conhecido, a primeira tese foi defendida por Trotsky, em sua famosa obra A revolução permanente, apoiando-se no voluntarismo de Marx no contexto da revolução de 1848-1851 na França. A segunda, por Stalin e seus seguidores, em vários escritos de ocasião.
Concordando-se ou não com o ponto de vista de Trotsky, é necessário convir que sua tese estivesse mais próxima da de Marx do que da de Stalin ou mesmo das concessões táticas do gênio de Lênin. De toda maneira, a sorte da questão democrática no interior da dialética revolucionária russa é semelhante à da questão camponesa. Nunca se achou um fundamento estratégico sólido ora para o etapismo ora para a revolução permanente. O que há são escritos políticos de ocasião, com exceção naturalmente do livro de Trotsky. Mas isso dividiu o movimento revolucionário entre aqueles que acham ser a revolução um processo mundial, sem etapas rumo ao socialismo, e outros que defendem uma sequência necessária entre uma etapa democrático-burguesa e a revolução socialista propriamente dita. Infelizmente, como as outras questões, esse debate produziu consequências políticas sérias para a revolução nos países onde os Partidos Comunistas tinham que atuar, incluindo o caso do Brasil, da China, do México etc.Mas essa é outra história que não cabe ser tratada aqui.
A tese veiculada no 6ºCongresso da internacional Comunista fala, por exemplo, de uma revolução democrático-burguesa anti-imperialista que devia realizar tarefas expropriatórias e políticas preparatórias para a revolução socialista. Essa tese hegemônica, inspirada na Revolução Chinesa, se chocava com as elaborações nacionais de outros PCs que acentuavam a necessidade de uma revolução democrática pequeno-burguesa, bem mais limitada do que aquela. Mas prevaleceu a tese da IC e os partidos comunistas se alhearam dos processos revolucionários reais, dirigidos pela chamada “pequena burguesia”. E os responsáveis pelas elaborações nacionais foram punidos e afastados dos PCs.
VII
Finalmente, chegamos à questão crucial: pode a revolução russa servir de modelo para a revolução socialista no mundo inteiro ou para aqueles países chamados de “coloniais”, ou “neocoloniais” ou “dependentes”, como diziam as teses do 6º Congresso da IC?
Faço minhas as palavras da grande revolucionária Rosa Luxemburgo, em seu opúsculo A Revolução Russa: não se pode transformar a necessidade em virtude, ou seja, é impossível a universalização de um tipo de revolução, que se deu em circunstâncias históricas e políticas muito particulares, a despeito da formulação leniniana do “elo mais fraco da corrente” numa época de dominação imperialista. Eram louváveis e necessários os esforços da socialdemocracia alemã e russa de analisar a especificidade do “capital monopolista” ou do “capital financeiro”, no final do século 19. E houve várias tentativas: O Imperialismo – Etapa superior do capitalismo, O capital financeiro, Acumulação de Capital e outros. Mas nada disso explicaria ou anteciparia as condições dramáticas em que ocorreu a revolução.Deve-se à enorme frente de militantes (anarquistas, social-revolucionários,bolcheviques) e ao gênio político de Vladimir Lênin todas as concessões táticas e estratégicas necessárias para o triunfo da onda vermelha, da defesa da Revolução e a própria constituição da URSS. Mas aleitura atenta de toda a obra de Lênin, acrescida da de Trotsky e Stalin, não nos autoriza a construir um modelo universal de Revolução Socialista calcado nas vicissitudes da experiência soviética. Tanto os problemas que se apresentaram na construção socialista russa, como os advindos da mera transposição de táticas e estratégias do movimento comunista internacional para os movimentos socialistas ou de libertação nacional nospaíses da periferia do capitalismo, foram resultantes de uma racionalização política equivocada e que trouxe mais prejuízos à causa da revolução mundial do que benefícios. De certo modo, a “queda do muro de Berlim” – tomada como uma expressão metafórica para falar da crise do socialismo realmente existente – é produto dessas contradições, ambiguidades e de problemas mal resolvidos, que foram simplesmente transformados em solução.
Cabe aos revolucionários do século 21 colher as preciosas lições da grande (e única) revolução socialista para repensarem a sua prática revolucionária. Arica experiência da Revolução de Outubro oferece um catálogo completo dos desafios e das possibilidades de se construir um mundo mais justo, mais humano e digno para toda a humanidade.
* Michel Zaidan Filho é professor titular do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Autor, entre outros, dos livros O PCB e a Internacional Comunista (1922-1929), PCB: na busca das origens de um marxismo nacional e Comunistas em céu aberto(1922-1930) e Anarquistas e comunistas no Brasil.
Bibliografia
ATAS do 6º Congresso da Internacional Comunista. Cadernos PyP, Buenos Ayres, 1972.
CHAYANOV, Alexander. A questão camponesa. Cadernos PyP, Buenos Aires, 1978.
ENGELS, F. O problema camponês na França e na Alemanha. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
GRAMSCI, A. Nota sobre Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1974.
LÊNIN, V. As duas táticas da socialdemocracia na revolução democrático-burguesa. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
______. Imperialismo: etapa superior do capitalismo. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
LUXEMBURGO, R. A Revolução Russa. Porto: Centelha, 1972.
______. Acumulação de Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
MARX, K. Guerra civil em França (com o posfácio de Engels). In: Obras Escolhidas. Marx-Engels. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
______. O Dezoito de Brumário de Luiz Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
______. Manifesto do Partido Comunista. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
TROTSKY, L. A revolução permanente. Madrid:Granica, 1972.
ZAIDAN, M. A formação do primeiro grupo dirigente do PCB. Saabrucke, Deutschland (Alemanha): Novas Edições Acadêmicas, 2017.
______. O PCB e a Internacional Comunista. São Paulo: Vértice, 1989.