Logo no início do primeiro governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, o então secretário-geral da Presidência da República, ministro Luiz Soares Dulci, disse que as pessoas de esquerda que combatiam as propostas do Executivo (basicamente o conservadorismo da equipe econômica comanda pelo ministro da Fazenda Antônio Palocci) não evoluíram com a história. Segundo ele não era possível dar respostas do século XIX a problemas do século XXI. “A esquerda também evolui. Aliás, uma das suas grandes capacidades é evoluir com a história, ainda que haja setores (…) que se recusam a aprender a lição dos grandes fundadores dos partidos de esquerda, que é, antes de mais nada, realizar a realidade, compreender o que está acontecendo, extrair as propostas de uma análise da realidade, e não apenas das doutrinas, sobretudo de doutrinas que foram elaboradas para responder a problemas de 100, 150 ou 200 anos antes”, afirmou.

Dulci até citou Karl Marx em suas críticas. “Marx, se fosse vivo (…), provavelmente diria: deem respostas à realidade de vocês no início do século XXI e não à nossa realidade de Manchester no século XIX”, disse o ministro, assinalando que Marx “buscou analisar, antes de mais nada, o processo daquela correlação de forças”. Tudo isso para dizer que o governo Lula queria que aquela política econômica neoliberal se desdobrasse “em um programa de crescimento”. “É fácil de falar e difícil de fazer, mas não é impossível”, disse. “Nós queremos justamente fugir desse falso dilema que paralisou um pouco a vida econômica e, em grande medida, a vida política brasileira nos últimos dez anos: ou estabilidade ou crescimento”, afirmou.

O ministro citou duas vezes as disputas entre desenvolvimentistas e monetaristas no ciclo Fernando Henrique Cardoso (FHC) para dizer que o governo não faria da estabilidade “um fim em si mesma”. “Até porque o governo Lula só terá sentido pleno fazendo as mudanças estruturais”, disse ele. Segundo Dulci, o governo sempre soube que a sua “base social” e “político-eleitoral” reivindicaria mudanças imediatas, mas que a “responsabilidade de quem chega ao governo não é apenas de expressar os anseios das maiorias sociais, mas também de informar a sociedade sobre o que se passa”. “Não quero ser rotundo, mas a responsabilidade de quem está dirigindo uma entidade (…) não é fazer tudo aquilo que a base pede”, afirmou. Para o ministro, a avaliação do governo era de que as pré-condições para que o país voltasse a crescer estavam “quase todas asseguradas”.

Ele tinha razão, a começar pelas considerações sobre Marx. Foi precisamente esse grande pensador quem decifrou o código da economia de crise. E isso não está em nenhum livro em particular. Está no conjunto de sua obra, da qual a parte mais importante é, certamente, O Capital. Ignorar essa premissa básica do marxismo equivale a sair à cata de mitos na tentativa de fugir da realidade. E quem lembra isso, evidentemente em tom crítico, é ninguém menos do que Paul Krugman, o prestigiado economista do MIT (Massachusetss Institute of Tecnhology), assumidamente keynesiano, que, ao comentar as comemorações dos 150 anos do Manifesto do Partido Comunista, em 1998, escreveu: “Artigos proclamam que a turbulenta economia mundial de hoje é exatamente o que o grande homem previu. Um colunista do New Yorker chegou a proclamar Marx como o pensador do futuro.”

Karl Marx não é, portanto, apenas mais um nome no balaio de gatos dos gurus da economia. Ele é, antes de qualquer outra coisa, um cientista que se destaca na história do pensamento social. Sua teoria difere substancialmente das ideias voláteis que são propagadas por gente que ganha a vida montando frases de efeito e expelindo perdigotos em palestras sobre mercado e redução do Estado mundo afora. A interpretação científica dos seus princípios radiografa casos de sucesso e fracasso em uma sociedade, gera novas interpretações da realidade, cria novos paradigmas e equações para entender e explicar o que ocorre no mundo. Ao contrário da maioria das pessoas que escrevem ou escreveram sobre economia, Marx tinha farinha no saco — e, por isso, é uma das raras fontes seguras nesse terreno. Por tudo, Marx precisa ser estudado. Por sua originalidade, pela seriedade e consistência de sua obra, porque escrevia bem.

Dito isso, é preciso situar aqui sua teoria na realidade brasileira em pelo menos um aspecto: o consumo, uma premissa fundamental das “mudanças estruturais” lembradas por Dulci. Segundo Marx, o consumo final depende, no capitalismo, basicamente dos que vivem de salário e de lucro. Em síntese: o que ele desvendou, nesse caso, foi a contradição produção-consumo. A necessidade de concorrer para gerar lucro e acumular capital leva os capitalistas a buscar novas tecnologias e, consequentemente, a substituir o homem pela máquina. A produção pode crescer, mesmo que o consumo final não o acompanhe, porque o “consumo intermediário” — ou seja, o consumo de máquinas, equipamentos e matérias-primas — pode substituí-lo. Mas o faz num ritmo inferior à produção — fenômeno que Marx chamou de subconsumo. Esse processo gera estoques e demite trabalhadores. A economia para. É a chamada crise cíclica.

No Brasil, esse fenômeno tem raízes fundas. Nossa crise se insere na parte mais penalizada de um panorama global marcado por problemas econômicos estruturais e se destaca pelo grau de dependência externa herdada sobretudo da “era neoliberal”. Quando Lula assumiu, o número recorde de desempregados era, talvez, nossa pior chaga. Numa situação como essa, cabia ao Estado uma ação efetiva. Era impossível pensar o funcionamento do programa econômico eleito em 2002 sem a gerência do Estado. As agruras de quem vivia à margem da sociedade, sem cidadania e sem poder aquisitivo — decorrências principalmente do desemprego —, precisavam ser enfrentadas com fortes políticas sociais. Naquele cenário brasileiro que nasceu com Lula presidente, uma nova agenda trabalhista e social começou ser desenvolvida. E isso significava enfrentar grandes obstáculos.

Pelo pensamento do capitalismo, o trabalho deve servir ao capital docilmente. E esse fenômeno se manifesta também na relação produção-consumo. É como se o capital no país, ao vender a produção, fizesse um favor à massa da população. Essa visão, decorrente da nossa acirrada desigualdade social, está refletida já em nosso léxico. O verbo “consumir”, segundo o Aurélio, significa “1. Gastar ou corroer até a destruição; devorar, destruir, extinguir (…) 2. Gastar, aniquilar, anular (…) 3. Enfraquecer, abater (…) 4. Desgostar, afligir, mortificar (…) 5. Fazer esquecer, apagar (…) 6. Gastar, esgotar (…)”. Os sentidos são negativos; as conotações, pejorativas.

Essa cultura se explica pelo fato de que consumir no Brasil sempre foi privilégio de poucos. Outra vez a estrutura social fendida em dois extremos, arquitetada ao longo da nossa história, se apresentava como desafio a ser superado. Com um detalhe: o aparecimento de hábitos de consumo luxuosos na porção mais abastada da sociedade acarretou um alargamento do abismo social e um aumento das tensões em relação à porção destituída. O Brasil colocou um pé no superconsumo e excluiu o resto do corpo. O desafio era enfrentar esse essa tremenda injustiça com políticas de dimensões macro e micro, para começar a equalizar o nosso crônico desnivelamento social. Nesse sentido, era preciso olhar para o Estado com a intenção de fortalecê-lo.

O acesso ao consumo mínimo é um direito individual sine qua non em uma sociedade democrática. A tentativa de instaurar aqui um Primeiro Mundo para poucos, como uma espécie de clube privado, talvez seja a mais perversa face da crise herdada da “era FHC”. Lula sabia que o governo não podia operar aquela ciclo que se iniciava sem levar em conta a necessidade de estender a cidadania a todos os brasileiros. Para ele, um Estado indutor da economia, que partisse da aplicação de fortes políticas sociais, funcionaria como alavanca para a solução de muitas de nossas mazelas.