A União Europeia “institucionalizou o neoliberalismo”
José Gusmão – dirigente do Bloco de Esquerda – e João Galamba – deputado do Partido Socialista – debateram este sábado o futuro do projeto europeu. Se a “burocracia europeia” é vista por ambos como um “projeto neoliberal”, para José Gusmão a questão que se coloca é “se confrontados entre um conjunto de objetivos fundamentais para defender o país, ou a permanência na União Europeia, qual será a nossa escolha?”. Por seu lado, João Galamba rejeita o cenário de “rutura”, porque “não temos condições para a efetivarmos quando formos chamados a isso”.
A questão europeia “que permanece por resolver”
Para José Gusmão, “devemos começar por discutir o que é o projeto fundador da União Europeia (UE) e dissipar alguns mitos e fábulas desse momento”. Desde logo, no discurso de fundação da UE “havia uma componente económica que assentava na competitividade”, diz, e, “subjacente a esse discurso estava uma lógica neo-mercantilista, ou seja, uma lógica de política económica que vê o desempenho das economias a partir da sua capacidade para gerar excedentes comerciais”.
Esse discurso “mantém-se até hoje embora, nos anos mais recentes, com um reforço da componente neoliberal”, visível no discurso da “responsabilidade orçamental e das reformas estruturais”. “O que é mais importante perceber, é que a componente social, a pesar de estar presente no discurso fundador da UE, estave sempre ausente no desenho institucional das instituições europeias”.
Assim, a UE foi desde o início “o que vários autores chamam de integração negativa, ou seja, a UE teve muito mais a ver com a eliminação ou severa restrição de poderes à escala nacional, no plano da política orçamental e monetária, do que com a criação de poderes que os substituíssem à escola europeia, com a óbvia exceção da política monetária que foi transferida por completo”, explica José Gusmão.
“Este projeto tem uma marca política muito forte”, continuou por dizer, com base no “comércio livre, na livre circulação de capitais, na eliminação da politica monetária a nível nacional, o direito da concorrência… Todos os aspetos estruturantes da UE são elementos fortemente disciplinares do trabalho. Não é por acaso que o desenvolvimento da União Europeia coincidiu de forma particularmente aguda nas economias periféricas, com recúos na proteção do trabalho, com a privatização de empresas públicas” e, ainda, com a “introdução de lógicas privatizadoras do estado social”, continuou.
“Mas o que é interessante ver, em retrospetiva, é pensar como este projeto corresponde de uma forma extraordinária ao que era a proposta do principal pensador do liberalismo no século XX, Friedrisch Hayek, que escrevia em 1944: Os poderes a transferir por uma autoridade internacional não são os novos poderes assumidos pelos estados em tempos mais recentes, antes, um poder mínimo indispensável para preservar relações pacíficas, isto é, sobretudo os poderes do Estado ultra-libera do laissez-faire. Os poderes que tal autoridade necessitaria são sobretudo de tipo negativo. Deve mais do que tudo ser capaz de dizer não a todos os tipos de medidas restritivas”.
Para José Gusmão, “a União Europeia é um projeto que encaixa de forma extraordinária nesta proposta de Hayek. Mas não é, uma superação dos estados nacionais, nem pretende ser. Quando nós observamos a vida política na Europa, são muito poucos os temas que são dominados por debates europeus. Predominantemente, o que temos hoje na Europa não é uma comunidade europeia, mas sim um conjunto de instituições que condicionam as políticas nacionais dos vários estados-nação que continuam a existir com enorme predominância no plano político e económico”.
O problema das dívidas é um “exemplo evidente” onde o desenho da UE “provocou um caminho divergente entre as economias excedentárias e as economias deficitárias que se tem agravado”, e que “mostra bem que a UE não é uma unidade de Estados, ou uma unidade que ultrapassasse os Estados, mas um desenho institucional que faz com que haja estados-nação vencedores e estados-nação perdedores”.
Por isso, a questão “pode a UE mudar tem dois planos”, diz José Gusmão: “um plano político onde o grande consenso histórico entre a direita liberal e a socia-democracia europeia. Pensar uma mudança da mesma natureza na UE exigira um consenso da mesma magnitude mas de sentido inverso. E a verdade é que mesmo que tivéssemos todos os socialistas europeus disponíveis para a transformação profunda da UE que é necessária – e não temos – nunca teríamos o consenso da direita”.
Por outro lado, continua, “uma proposta de transformação da União Europeia – e há muitas propostas interessantes – mas todas elas têm um pressuposto: porque existem economias deficitárias e excedentárias, um acordo só seria possível a partir de transferências regulares das economias excedentárias e das deficitárias. E é muito evidente hoje que não há qualquer espaço de manobra para que uma proposta desta natureza seja sequer formulada”.
Marco Marques moderou o debate entre João Galamba e José Gusmão. (Foto: Paulete Matos )
O equívoco do estado-nação
“O segundo caminho possível seria um voltar ao estado-nação. A primeira coisa que deveria dizer é que esta é uma questão equívoca: não se pode voltar a um local de onde nunca se saiu. Portugal continua no mesmo sítio e a única coisa que aconteceu foi uma adesão a um conjunto de instituições que retiraram da decisão democrática nacional um conjunto de poderes, nos quais aliás assentava em grande medida o Estado Social português”, continuou.
“Não faz sentido falar de regresso ao estado nação porque a política do estado-nação prosseguiu durante todo o processo de construção da união europeia. Aliás, a própria UE pode ser vista como um instrumento do nacionalismo económico alemão, instrumento particularmente bem sucedido”.
“Nós não temos uma comunidade política à escala europeia por uma razão muito simples: a UE nunca tratou de se construir como um espaço de direitos, que é o que cria comunidades políticas. Ou seja, os portugueses relacionam-se com o Estado português através do exercício de um conjunto de direitos políticos, económicos e sociais. E a UE não só nunca tratou de constituir esses direitos à escala europeia, como recusou explicitamente – no âmbito do debate da Carta dos Direitos Europeus – que essa Carta fizesse parte do Direito Comunitário. Ou seja, que não constrangia de forma alguma nem as instituições europeias nem as nacionais. Ou seja, os direitos efetivamente existentes continuam a ser à escala nacional”.
O que trás a experiência portuguesa de novo a este debate? “Em primeiro lugar, devemos assinalar que em Portugal ouve um Partido Socialista disponível para um entendimento à esquerda”. No entanto, diz, “todos sabemos que a questão europeia permanece por resolver no espaço político que viabiliza a atual solução de poder. E julgo que não poderá ser evitada por muito tempo. Porque, esta maioria parlamentar tem conseguido ganhos importantes no plano social, mas tudo o que ganhar até ao final do mandato fica muito aquém de tudo aquilo que o país perdeu no processo de integração europeia. Ou seja, esta solução política não fala de nacionalizar as muitas empresas absolutamente estratégicas que foram privatizadas ao longo destas décadas. Também não estamos a recuar tudo o que era preciso recuar na desregulação laboral que era necessário recuar. Ao ritmo que a geringonça tem trabalhado seriam necessárias décadas e décadas para recuperar os direitos perdidos”.
E no contexto da dívida, Portugal é hoje uma “soberania controlada. No momento em que tenhamos um conflito a sério com as instituições europeias a dívida portuguesa não é sustentável. E isto tem várias implicações. O caso da Grécia mas também o Português em 2011, demonstram que as escolhas do governo nacional estão limitadas”.
“O que é que nos define enquanto esquerda? Há muita coisa comum entre a tradição socialista e a tradição histórica da social-democracia. Mas a questão que se coloca é esta: se confrontados entre um conjunto de objetivos fundamentais para defender o país, ou a permanência na União Europeia, qual será a nossa escolha? Perante um ultimato como o da Grécia, quais serão as escolhas de uma esquerda independentemente da sua posição face ao projeto europeu?”, questionou.
Os dois desencantos com os quais “temos de viver”
“Concordo com quase tudo o que o José disse mas retiro conclusões distintas”, começou por dizer João Galamba, deputado e porta-voz do Partido Socialista. “Na última década, sobretudo para quem como eu depositava alguma esperança e expetativas de natureza utópica em relação à União Europeia, os últimos anos foram de profunda desilusão e desencanto, onde me fui apercebendo da natureza da UE. Hoje, não tenho qualquer expectativa em relação à UE ou esperança de transformação”, mas, avança, face a esta constatação também é necessário “aceitar a impossibilidade da sua rejeição”.
“Hoje tenho uma dupla frustração: reconheço que não são possíveis a nível nacional e são igualmente impossíveis a nível europeu. Mas a minha diferença em relação ao Bloco é que acho que temos de viver com este desencanto. Esta é a realidade intransponível na qual temos de desenvolver a nossa atividade política. Porque acho que se temos de retirar conclusões deste desencanto com a União Europeia também devemos retirar conclusões sobre outro desencanto, nomeadamente as ilusões nas quais o Bloco ainda labora. A posição do Bloco não será completamente honesta enquanto não retirar as duas conclusões: por um lado sobre um conjunto de realidades existentes em relação à União Europeia; mas também o contrário, a impossibilidade de dizer não a esta UE. Acho que temos de reconhecer as duas realidades: as limitações da UE e a impossibilidade de lhe dizer não”.
Mas isto não significa “derrotismo ou paralisia”, esclarece. “Temos de retirar consequências sobre o Brexit e o falhanço de Tsipras. A Esquerda presta um mau serviço a si próprio quando não se revê no falhanço de Tsipras”, alguém que “representa uma experiência política da qual nós todos – Bloco, PS – de quem pensava que era possível uma resistência à UE com forte apoio popular, devemos retirar lições”.
Devemos ter “alguma empatia com a situação dramática que o povo grego viveu e as condições em que Tsipras se encontrou. Não podemos colocar Tsipras numa caixinha dos traidores. A experiência de colapso e capitulação grega é determinante e tem de ser analisado em todo o seu alcance, e o Brexit também. Temos uma das economias mais poderosas do mundo, com moeda própria – o que lhe dá uma capacidade de resistência face a instituições e políticas europeias que Portugal não tem – e, no entanto, está a passar dificuldades” que poderão impossibilitar o processo de saída da UE.
“Temos na minha opinião de aceitar estas duas balizas, estes dois traumas, e viver com eles. E isso é o que o governo português tem feito. Há muita gente no partido socialista que ainda mantém um certo euro-tontismo, mas acreditem que há muita gente no PS que não tem ilusão sobre a natureza da União Europeia e, ainda assim, retira conclusões diferentes das do Bloco”, disse.
Ou seja, isto obriga a concluir que “nós estamos condenados a viver com isto, por isso é que acho que a experiência do governo português é relevante, porque mostra que a pressão existente entre os objetivos políticos do atual governo – a recuperação dos rendimentos, a defesa dos serviços públicos, melhores condições do mercado de trabalho, dignidade para os trabalhadores e o salário não apenas como custo mas sim como fonte de rendimento – nunca teremos uma UE amiga deste discurso, no entanto, poderemos continuar a defender a política atual”. Como? Procurando uma “política de tensão e resistência permanente, tentando nos espaços que ainda existem afirmar uma política alternativa que será sempre combatida, que não terá acolhimento das enormes burocracias que mandam na UE – o que a União Europeia conseguiu fazer foi institucionalizar o neoliberalismo – fortemente sedimentado em burocracias imunes a qualquer controlo democrático”.
Mas, “acho que ainda assim conseguimos, dentro destas fortes limitações, construir espaços de resistência e alternativa. se quisermos, mais próximo da tradição reformista do Partido Socialista, mas se deixarmos de pensar de forma absoluta sobre uma outra política – seja na União Europeia ou saindo dela – se nós formos menos maximalistas e nos habituarmos a valorizar conquistas que podem ser pequenas, mas que não devemos desvalorizar as conquistas que este governo já conseguiu”, destacando a recuperação de salários, a não privatização da TAP e Caixa Geral de Depósitos.
Para João Galamba, “se formos realistas e valorizarmos uma política de pequenos passos, tendo sempre presente que a impossibilidade de estes pequenos poderem em determinada circunstância enfrentarem uma parede, se soubermos ler o que é possível e impossível em cada momento”. E se a parede da UE surgir, “se de repente percebermos que a política de alcances limitados, se percebermos que os pequenos passos também não são possíveis , a única coisa que posso dizer sendo fiel ao meu pragmatismo é que logo se vê quanod lá chegarmos. Porque a política é isso: o que é que fazemos perante situações concretas. Mas há uma coisa que eu sei que é uma ilusão: que é prepararmo-nos para uma rutura. Não acredito na rutura, porque acho que não temos condições para a efetivarmos quando formos chamados a isso”.
A 11ª edição do Fórum Socialismo – Debates para a Alternativa foi realizado pelo Bloco de Esquerda nos dias 25, 26 e 27 de agosto, em Lisboa, na Escola Secundária de Camões. O Socialismo 2017 é um Fórum de Ideias aberto e plural sobre Política, Ciência, Cultura, Sociedade, Economia, Artes, Ambiente, Internacional, etc.