Foro de São Paulo: Vivo, forte e atuante
Tradicionalmente o FSP reúne partidos, movimentos, organizações e intelectuais que se posicionam no espectro da centro-esquerda da política latino-americana e atrai suas contrapartes europeias, asiáticas e africanas para trocas e intercâmbios durante os dias de encontro.
Antes bastante apagado da mídia comercial, o FSP passou a ganhar relevo em matérias e comentários da imprensa principalmente nos países hoje governados por setores que se dizem “inimigos” do Foro de São Paulo e seus partidos membros. Esse é o caso do Brasil em que o governo Bolsonaro, desde a campanha eleitoral e mesmo antes, divulga o encontro e o designa como uma organização criminosa de uma tal “esquerda totalitarista e golpista”. A ponto do filho, o Deputado Eduardo Bolsonaro, propor no parlamento brasileiro a criação de uma CPI do FSP com o intuito de criminalizar os partidos membros ou mesmo instar os tribunais a cassar os registros de partidos que participam dos encontros. É interessante recordar que o FSP não é uma organização em si, mas antes uma plataforma que mantém reuniões anuais, além de seminários, encontros solidários específicos, oficinas temáticas e um grupo de trabalho ao longo do ano. Sua secretaria executiva, desde a fundação, é feita pelo PT e tem como função convocar os encontros e coordenar os debates. O PCdoB tem se dedicado no apoio ao funcionamento da secretaria ao longo do tempo.
Surgido em 1990, a partir de um Seminário Internacional realizado em São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores, o FSP já atravessou três décadas. Ao longo deste período, pode se observar, como a um espelho, a evolução, os avanços e os recuos da esquerda latino-americana que nele se reúne. Se os anos 90 foram de resistência aos governos neoliberais, com acumulação de força, e também de início das conquistas de governos pelas forças progressistas, com Chávez na Venezuela (1998), os anos 2000 foram de ampliação dessas conquistas. Hora de colher frutos da acumulação. Houve nesta década a eleição de Lula no Brasil, em 2002, Nestor Kirchner na Argentina, em 2003, Tabaré Vásquez no Uruguai, em 2004, Evo Morales na Bolívia, em 2005, Rafael Correa no Equador, em 2006, Daniel Ortega na Nicarágua, em 2006, Fernando Lugo no Paraguai em 2008 e Mauricio Funes, em El Salvador, em 2009.
Atravessada a década de ouro, os anos posteriores, entre os quais nos encontramos, têm sido de enfrentamento a uma onda reacionária que chegou para barrar não só a conquista dessas administrações, posicionadas no campo popular e progressista, mas também as conquistas regionais, alcançadas a partir de uma política integracionista levada a cabo por esses governos. O ataque começou ainda em 2009 com o golpe sobre Manuel Zelaya em Honduras, que sequer era considerado um governo de esquerda pelo campo progressista latino-americano. Na sequência veio o golpe parlamentar sobre Lugo no Paraguai, em 2012, a derrota de Cristina Kirchner na Argentina, em 2015, o golpe contra Dilma em 2016 no Brasil, a traição à Rafael Correa no Equador pelo eleito presidente pelo partido Alianza País, Lenin Moreno, em 2017, a derrota eleitoral da centro-esquerda no Chile, também em 2017. Hoje, soma-se o ferrenho cerco à Venezuela e o criminoso bloqueio econômico a Cuba elevado a nova escala, com a implementação da parte III da Lei Helms-Burton. Alcançou-se, no entanto, grande conquista que reverbera a revolução mexicana, com a vitória eleitoral de López Obrador, no México, em 2018, sob a síntese “pelo bem de todos, em primeiro lugar os mais pobres”.
Por óbvio, a recém-terminada XXV edição do FSP dedicou boa parte de seus debates às três batalhas principais e concomitantes do campo progressista na América Latina no atual semestre. As eleições presidenciais em véspera de ocorrerem na Bolívia, no Uruguai e na Argentina constituem um teste de magnitude para os partidos da esquerda latino-americana e sua capacidade de sobreviver à reação neoliberal que avança sobre a região com o receituário dos golpes brandos e guerras híbridas de 4ª geração, como vimos, já testado e implementado em vários países da região. São componentes do sistemático assédio imperialista: a guerra econômica, a manipulação midiática, a inundação das redes com fake news, a cooptação e instrumentalização do judiciário. Um amplo e profundo debate sobre o impacto dos ataques aos governos progressistas, inclusive com auto avaliação de cada experiência, foi realizado durante o FSP de Caracas em mais uma edição do Seminário de Balanço dos Governos Progressistas, um dos pontos altos de cada edição do FSP.
De modo geral, a força do FSP foi mais uma vez demonstrada em Caracas, por sua capacidade de enfrentar esta verdadeira avalanche de ataques à esquerda da América Latina. Mesmo neste cenário, o encontro mantém sua capacidade de convocatória e mobilização – centrados na defesa da democracia, soberania nacional e direitos sociais – e continua sendo um atrativo para partidos europeus, asiáticos e africanos que concorrem ao Foro para se inspirar, conhecer a situação e trocar impressões sobre a conjuntura e ações conjuntas. Mantém uma capacidade de formulação analítica, embora já tenha sido mais frequentado por intelectuais, sobre o atual cenário, o pregresso e as tendências de futuro. Sintetiza os consensos possíveis, dadas as diferenças locais, principalmente, em uma declaração final que unifica a leitura política e o plano de ações entre uma edição e outra do encontro. Foi grande o desafio desta última edição do FSP ao emitir uma declaração que abarcou a múltipla realidade do continente e as batalhas nacionais em curso no presente momento. A solidariedade com países assediados e atacados, tais como Venezuela, Cuba e Nicarágua, sobressai, assim como a preocupação e o apoio às forças empenhadas nas batalhas eleitorais da Argentina, Uruguai e Bolívia.
Como é do curso da política, outras iniciativas semelhantes estão em funcionamento e mesmo o campo adversário se inspira no “modelo FSP” para realizar seus debates e resoluções. Assim foi com o seminário sobre a Venezuela realizado recentemente pelo Grupo de Lima, no Peru, e que até plasticamente pareceu um FSP, apenas com a temática às avessas. Na época em que Correa ainda era presidente do Equador, tivemos também a experiência do ELAP (Encontro Latino Americano Progressista) com três exitosas edições entre 2014 e 2016. A marca do ELAP foi a denúncia da “restauração conservadora” em curso no continente. Mais tarde, Correa seria traído por integrantes do mesmo Alianza País que promoveu a ELAP. Mais recentemente, no mesmo julho em que se realizou o FSP, lideranças e intelectuais progressistas da América Latina se reuniram em Puebla, no México, com a participação do atual candidato da Frente Ampla do Uruguai à Presidência do país, Daniel Martínez, do ex-candidato brasileiro à presidência do Brasil, pelo PT, Fernando Haddad e outras lideranças social-democratas latino americanas. Outra iniciativa, que surgiu inclusive antes do FSP, e que foi retomada no período recente é a da Coordenação Socialista Latino-Americana, inspirada principalmente no legado de Allende, do Chile, e que conta com a participação do PSB e também do PT, pelo Brasil.
A multiplicidade de iniciativas é também um demonstrativo da ampla demanda por compreensão do atual momento e de coordenação das ações frente a um profundo ataque ao capital político acumulado pelas forças populares e progressistas na região no último período. A existência delas anima o ambiente político latino-americano e estimula o debate democrático continental, não ofuscando o FSP. A atual fase nos lança ao debate sobre a identidade do Foro em si, que já sendo antiimperialista e antineoliberal, se vê em uma situação de exigência de dar passos mais concretos no sentido de assegurar a afirmação dos governos conquistados e reconquistar terreno nos países em que a direita voltou ao poder. Não se pode também fugir ao ponto de que as novas tecnologias de informação e comunicação, que se transformaram nas novas armas de manipulação da opinião pública, também impactam no funcionamento de nossos partidos e organizações e na forma como constituímos nossas plataformas regionais de ação. O FSP precisa responder a essa realidade e a outros pontos, tais como as insuficientes alternativas econômicas criadas pelos governos populares e progressistas no estágio de maior acumulação de forças, o enfrentamento de temas candentes e que mobilizam como meio ambiente, cambio climático, direitos humanos, combate ao racismo, gênero e diversidade de orientação sexual.
Nunca é demais lembrar que o FSP atua em uma região que historicamente é considerada de dominação hegemônica natural por parte dos EUA. Desde os idos do início do século XIX, com a Doutrina Monroe, em que fomos declarados zona de “influência exclusiva” deixamos aos poucos de ser o parque colonial das potências europeias para sermos o pátio traseiro dos norte-americanos. Agora, por exemplo, para evitar a entrada de centro-americanos em seu território, os norte-americanos resolveram criar verdadeiras prisões, além da famigerada Base de Guantánamo, em países como a Guatemala, Honduras e El Salvador, desta vez para impedir a movida migratória. Também, e talvez principalmente, por isso os incomoda tanto o suporte e a presença de Rússia, China e Irã no apoio à Venezuela. Mais do que nunca, o FSP deve acentuar sua identidade anti-imperialista e como um espaço concertador de lutas pela paz mundial, a liberdade, os direitos do povo latino-americano ao desenvolvimento e à soberania nacional em cada país. A solidariedade à Venezuela, contra as agressões guerreiras e ingerências econômicas externas desponta na primeira fila de responsabilidades dos que lutam pela região. Assim como a defesa de Cuba contra o criminoso bloqueio e as novas formas de ataque como com a reativação do título 3 da Lei Helms-Burton.
O FSP continua sendo esta plataforma única no mundo, que consegue contemplar tão ampla e diversa participação, desde o ponto de vista geográfico ao da amplitude do espectro político latino-americano. O grande incômodo em torno dele se dá justamente por seu histórico, por ter conseguido desde seu surgimento, coordenar uma ampla formulação política, traduzida por sua vez em ações políticas, que mudaram a correlação de forças no continente, tornando possível a ascensão de governos populares e progressistas ao centro dos poderes nacionais. Hoje, pretende-se matar sua viabilidade, dada sua capacidade de autorreflexão e produção de análises conjuntas que podem promover melhores condições de resistência à atual fase de desacumulação de forças e relançar um movimento capaz de produzir um novo ciclo de acumulação. Nessa América Latina, desde a ocupação europeia, tão sistematicamente saqueada e subordinada – em tantas fases do desenvolvimento do capitalismo moderno e contemporâneo – nos cabe seguir perfilando o ideário dos libertadores que lutaram por um continente livre da dominação colonial, imperialista e neoliberal.
O PCdoB, que ao longo dessas últimas décadas sempre se posicionou ao lado dos que acreditam no potencial crítico e mobilizador da esquerda latino-americana através do FSP e tem contribuído de forma diligente e militante dos esforços do Grupo de Trabalho e da Secretaria Executiva do FSP, saúda este grande encontro ocorrido em Caracas e caminha comprometido com suas bandeiras. Que as limitações estratégicas, insuficiências e mesmo erros das experiências progressistas, que possam ter levado ao atual cenário, sejam para o FSP uma fonte de interpretação crítica e autocrítica da atual cena geopolítica em nossa região e no mundo. Que se permita a esse espaço de encontro uma cada vez maior produção de análises, ainda mais profundas, sobre as tendências da crise capitalista que se arrasta desde 2008 e das atuais experiências socialistas vigentes no mundo. Que a plataforma de lutas deliberada no Foro seja transformada em instrumento eficaz, política e institucionalmente, ao passo em que é ampliado o ingresso para novas forças e consolidada a construção da unidade na diversidade latino-americana.
*Walter Sorrentino é Vice-Presidente Nacional e Secretário de Política e Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil
**Ana Prestes é membro da Direção Nacional do PCdoB e integra a Comissão de Política e Relações Internacionais do partido