Necropolítica à la française
Detrás da Tour Eiffel, dos espaços de opulência da burguesia que desfruta da bela Paris, dos cafés charmosos, dos queijos, dos vinhos, da arquitetura e dos museus que tanto encantam os setores médios, existe uma Paris que não costuma figurar nos roteiros de viagens, na indústria cultural e, como é de se esperar, também não se encontra presente no imaginário social dos que não conhecem a capital francesa e de muitos daqueles que conhecem.
É neste sentido que, diante do ideal liberal “Liberté, egalité et fraternité”, nos cabe proceder como o pensador italiano Domenico Losurdo fez n’A contra-história do liberalismo e questionar: igualdade, liberdade e fraternidade entre quem e para quem?
Já na introdução do referido livro, Domenico Losurdo informa ao leitor que seu objetivo não consiste em fornecer uma contra-história, mas sim a história do liberalismo no concreto das relações econômicas, políticas e sociais nas quais ele se desenvolveu. Com isso, ao desbaratar o abstratismo liberal, encontramos uma doutrina que, longe de prezar pela liberdade, igualdade e fraternidade do gênero humano, apenas advoga tais valores para determinados grupos sociais. Ora, em sua história, o liberalismo conviveu em perfeita harmonia com a escravização e exclusão de direitos civis e políticos dos povos não-ocidentais, negros e mulheres. Pois bem, é justamente detrás da Tour Eiffel, dos prestigiosos centros de pesquisa, dos cafés e de toda a pompa parisiense que se encontram aqueles que, aos olhos do liberalismo e da República francesa “nem gente são”.
Conforme já afirmei em outros escritos[1], o modo de produção capitalista é, em essência, um sistema necropolítico. Isso implica que, por se organizar entre proprietários e não-proprietários, toda sociedade capitalista produz sujeitos que, na sua estrutura interna de organização social, são lidos como seres de menor importância. Por se constituir como uma sociabilidade que visa o lucro e que se adequa a uma racionalidade mercantil, aqueles(as) cuja existência é indiferente para o circuito de produção-consumo de mercadorias, tornam-se dispensáveis para a ordem do capital e, portanto, supérfluos, elimináveis, matáveis.
À ordem do capital, portanto, não interessa a vida, mas sim a produção de mais-valor e lucro. No Brasil, há uma vasta produção acadêmica sobre quem são os sujeitos matáveis e qualquer brasileiro minimamente atento a realidade do seu país sabe que as balas perdidas sempre encontram os mesmos alvos: os moradores das periferias urbanas, pobres e em sua maioria negros e jovens, que têm os seus direitos suspensos todos os dias e se constituem como as principais vítimas de homicídio no país. Mas não apenas vítimas de homicídio: são também vítimas da violência endêmica que se expressa através da negação de direitos, da falta de oportunidades equânimes, da criminalização seletiva operada pelo sistema de justiça etc.
No Brasil, nossos jovens são mortos pelo projétil disparado, mas também pela indiferença. E tal cenário, que não é recente, possui agora, com o governo ultraliberal e racista de Jair Bolsonaro, todas as condições materiais e simbólicas para se perpetuar e se intensificar, como já foi provado em 2019, com chacinas, excludente de ilicitude, carros alvejados pelo exército etc. Mas na França, e especificamente na Île-de-France, região do entorno de Paris, como a necropolítica se desencadeia? O conceito de necropolítica possui validade analítica para compreendermos o Norte Global?
Conforme discutido, qualquer Estado-nação capitalista opera uma política (ou algumas políticas) de produção da morte, sobretudo em uma conjuntura como a que estamos vivendo, de agudização da crise do capital e intensificação das contrarreformas. Se algum dia o capitalismo assumiu um caráter progressista, como no momento em que situa as bases para a superação do feudalismo, ou apresentou “tempos de ouro” em alguns países do centro do sistema, como no terceiro quarto do século XX, no século XXI tal sistema já se mostra esgotado por ele mesmo e a máxima “socialismo ou barbárie”, apresentada por Rosa Luxemburgo, nunca pareceu tão atual.[2]
O desafio colocado reside justamente em identificar quais as tecnologias e quais os grupos a quem tais políticas de produção da morte se endereçam. Diferente do Brasil, onde a necropolítica opera através de mecanismos mais evidentes, seja pelas tecnologias empregadas – operações bélicas em periferias, por exemplo – ou pelas elevadas taxas de homicídios, na França estão em vigor mecanismos mais sutis e a produção da morte se dá, sobretudo, a partir da inação estatal em relação a determinados grupos entregues à própria sorte, como se o Estado francês não possuísse qualquer responsabilidade em relação a eles.
Que grupos são esses? As massas de migrantes econômicos e refugiados, em sua imensa maioria não-europeus, que na tentativa de tomar os céus, descobrem o inferno e se aglomeram em acampamentos improvisados que mais parecem campos de concentração, nas estações de metrô, nas saídas de ar, nas ruas. Os ninguéns à la française, desprovidos de direitos, que incomodam e “enfeiam” a República francesa e a cidade do amor. A estes, a fome, o frio, o desemprego, o desprezo, o incômodo, a morte quase sempre lenta, para que pareça natural, desprovida de interesse e, antes da morte biológica, uma espécie de morte em vida, de zumbificação. Mas tudo com muito requinte, afinal estamos na França e, ao contrário do Brasil, onde há uma figura patética que se perde em suas próprias palavras, escancarando todo o seu ódio racista e de classe, o banqueiro Macron é mais sutil, e quase sempre joga com argumentos técnicos para justificar suas escolhas políticas caracterizadas por um voluntarismo radical que nega as mazelas do colonialismo no tempo presente, de modo a se esquivar de qualquer responsabilidade histórica. Se fosse brasileiro, certamente estaria filiado ao PSDB.
Em outubro de 2017, cerca de cinco meses após assumir a cadeira presidencial, Emmanuel Macron, parafraseando o discurso do primeiro-ministro francês Michel Rocard em 1990, dispara “não podemos acolher toda a miséria do mundo”[3] e com isso anuncia o endurecimento da política em relação aos imigrantes durante o seu governo. Associado a isso, megaoperações (algumas com cerca de 600 policiais[4]) para interditar acampamentos de imigrantes e através do Direito suspender direitos seguem fazendo parte do atual modelo de tratamento aos imigrantes.
Merece destaque, também, que desde novembro de 2019, uma política de imigração que dificulta a entrada e restringe o acesso dos imigrantes aos serviços de saúde está em vigor. A necropolítica requintada não mata expressamente, deixa morrer. Diante disso, a atualidade de pensadores como Achille Mbembe e suas formulações sobre necropolítica e o devir-africano do mundo, utilizado para caracterizar a condição dos quarto-mundistas no Norte Global emergem como arma teórica e política para compreendermos a condição dos setores mais precarizados da classe trabalhadora no capitalismo. Não menos importante, também está o sempre atual Domenico Losurdo e a crítica do ideário liberal, pois “Liberdade, igualdade e fraternidade” para quem, afinal?
*Gabriel Miranda é Doutorando em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN, Natal) e, atualmente, em estágio doutoral na École des hautes études en sciences sociales (EHESS, Paris). Pesquisador associado ao Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (OBIJUV/UFRN). Autor do livro “Juventude, crime e polícia: vida e morte na periferia urbana” (CRV, 2019).