Hágia Sophia: Basílica, Museu ou Mesquita?
O presente artigo foi feito a partir de uma entrevista que concedi ao Laboratório de Jornalismo da UFRJ, que foi publicado originalmente em https://labdicasjornalismo.com/.. Transformei-o na forma de artigo.
Sobre a Hágia Sophia
Esse templo religioso ortodoxo foi inaugurado muito antes de existir o próprio islamismo. A obra foi finalizada em 537, quando houve a consagração da Igreja, tendo sua construção iniciado em 532. É preciso que entendamos a história também, do Império Romano. A parte Ocidental desse império, já tinha desaparecido em 476. É importante lembrar que a divisão do Império Romano ocorre em 395. O Império Romano do Oriente que deu origem às Igrejas Ortodoxas patriarcais – fruto do primeiro grande cisma cristão em 1056 –, que eram de outro rito, e não o rito latino, durou mais de mil anos e só acabaria em 1453 quando ocorre a conquista – pela etnia turca – da cidade de Constantinopla e do comando do império islâmico, ou seja, o império seguiu sendo islâmico, mas mudou de mãos, passando dos árabes para os turcos.
Essa é uma basílica muito grande, que surge sob o patriarcado ortodoxo do Império Romano do Oriente, então ela era Igreja Ortodoxa. No breve período de 1204 a 1261 ela foi convertida para Igreja Católica romana, quando instaurou-se na região do Oriente, o Patriarcado Latino de Constantinopla. Um breve período de menos de 60 anos e, logo ela modificou a sua configuração.
Quando ela muda de Igreja Ortodoxa para Mesquita? Quando no dia 29 de maio de 1453, depois de 59 dias de cerco ás tropas do sultão Mehmet II, na língua turca significa Mohamed, na tradução ocidental falamos Maomé II, ele conquista Constantinopla – não usamos o termo “tomada” ou mesmo “queda” de Constantinopla, pois foi muito uma batalha muito acirrada. A partir desse momento, a Mesquita foi saqueada, porque se imaginava que ali estariam depositados grandes relíquias.
O sultão Mehmet II prometeu às suas tropas que durante três dias eles poderiam fazer o que quisessem, saquear, matar, estuprar etc., Uma verdadeira barbaridade, ainda que isso fosse naquela época com as guerras. Nesse sentido, um dos seus primeiros decretos foi o de transformar a Igreja em Mesquita, no mesmo ano de 1453.
Então aquele patriarcado latino, em 1200/1260 é anterior a conquista muçulmana da cidade de Constantinopla, que era a sede do chamado Império Bizantino. Porque a sede era na cidade de Bizâncio, hoje Turquia. Bom, apresentado este histórico, a decisão tomada no último dia 10 de julho, não foi tomada pelo poder judiciário, nem pelo poder executivo do governo de Erdogan. Tal qual Putin, Erdogan vai para vinte anos de poder na Turquia, por isso se diz era Erdogan.
O Conselho de Estado da Turquia, o nome está dizendo, ele não é governo, ele é Estado, mas não é Poder Judiciário, mas também decide. Quando a Turquia é proclamada República sob o comando de Mustafa Kemal, Atatürk, que na língua turca significa pai dos turcos. A Turquia só foi reconhecida internacionalmente a partir do tratado ou Conferência realizada em Lausanne em 1923.
As potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial reconhecem a Turquia como herdeira do espólio do Império Otomano naquele território circunscrito ao que era originalmente locais onde existiam as tribos originárias turcas. Todo império otomano foi picado e países foram reconstruídos especialmente no Oriente Médio, quando houve a partilha em 1920 na Conferência de San Remo que distribuiu entre os vencedores dessa guerra, o espólio do Império Otomano, que foram a Inglaterra e a França.
Então o Tratado de Lausanne de 1923 reconhece a Turquia que elabora uma nova constituição que garante a completa laicidade do Estado. Por incrível que possa parecer, a Turquia apesar de ter o maior índice de uma população aderente a uma religião, no caso o islã, que atinge índices de 98% é o Estado mais laico do Oriente Médio. Nem a Síria que é o país mais laico entre os países árabes, chega perto da laicização do Estado Turco. Apesar da Síria ser um Estado laico a constituição cita o Islã, não como religião oficial, mas como religião preponderante.
A Turquia não tem esta palavra, e quem dá garantia desde 1923 para esta laicidade é o exército turco. Atatürk promove uma série de mudanças rumo a ocidentalização da Turquia. Mudança de vestimenta. Proibição do uso do véu islâmico. Separação absoluta entre religião e Estado. Não há nenhuma verba estatal que possa ser destinada a construção de uma mesquita. Isso é impensável na Turquia, apesar de, como disse anteriormente, seu povo ser aderente a uma religião, ainda que não praticante.
Quando Ataturk proclama a República turca, ele decide transformar a mesquita (que era assim desde 1453) em museu. É um dos pontos turísticos mais visitados no mundo. Este Conselho de Estado Turco decide dar um passo atrás. Autorizou que ela volte a funcionar como uma mesquita e não como uma igreja.
Falando em termos históricos se considerarmos o ano de 537 quando a Basílica (Igreja) foi inaugurada até 1453, quando foi transformada em mesquita, ela funcionou como Igreja por quase mil anos, e funcionou como mesquita por 400 e poucos anos. Se ela deixasse de ser museu, devería então voltar a ser uma igreja como era originalmente. Essa é uma decisão estranha e tomada em um momento difícil na região. Sabemos que a Turquia respeita, tanto que tem igrejas católicas e ortodoxas funcionando. Estas quase não têm seguidores, mas elas existem e funcionam normalmente.
Não é uma decisão do governo Erdogan, mas do Conselho do Estado, que é o mais grave. É uma decisão de Estado e não de governo, isto é claro um retrocesso. Lembremos que Erdogan pertence a um Partido, moderado, de centro-direita, cuja sigla é AKP, traduzido para o português é Partido da Justiça e do Desenvolvimento. Este Partido é moderado no sentido de defender uma islamização moderada da Turquia, o que é um retrocesso, o que os militares não estão de acordo. Consideram o exército o guardião da laicidade da Turquia. Esta decisão pode ter repercussões de retrocesso, tendo em vista a laicidade do Estado, pois deixa de ser um museu, local público e passa a ser um local religioso.
A Turquia ingressará na União Europeia?
Esse é um assunto muito polêmico. Evidentemente que em 1923 a União Europeia estava muito longe de existir, mas de qualquer forma o Erdogan ocidentalizou a Turquia. Ele virou as costas para a Ásia, especialmente para os povos aderentes e praticantes do Islã, e preferiu olhar para uma Turquia ocidentalizada. E o grande sonho da Turquia seria integrar na Europa. Quando uso o termo Eurásia é aquele pedaço de mundo entre a Ásia e o Continente Europeu, e a Turquia fica bem no meio, ali onde temos o estreito de Dardanelos que é banhado por dois rios, o Mármara e o Bósforo é como se fosse uma linha divisória (é um dos menores estreitos entre os 44 existentes na planeta).
Mas, a Turquia nunca foi um país europeu e do meu ponto de vista nunca será. A Turquia é membro da Otan. A Turquia é o país mais ocidentalizado da Ásia, mas a Europa não aceitará a Turquia. Em política internacional não se pode usar o termo nunca, não é mesmo? Vai que daqui a dois anos, de repente a Europa decide mudar de posição e aceita a Turquia.
Assim não podemos usar a palavra nunca em política e relações internacionais. Mas eu acho muito difícil que hoje isso ocorra. Há um preconceito na Europa, contra os turcos/turcas. Porque eles são de outra etnia, outra religião, porque é outro modo e estilo de vida. Apesar de toda ocidentalização que ocorreu na Turquia, e diga-se que essa ocidentalização implicou o abandono até da forma de escrever siríaca para a forma latina. Até isso foi modificado pelo governo de Moustafa Kemal Atatürk. Há, portanto, um desejo claro da Turquia de ingressar na União Europeia, mas é uma possibilidade de difícil implantação.
A posição da Igreja Católica
O Papa Francisco – nosso bispo Bergoglio, aqui da Argentina – que evidentemente, condenou energicamente, esta transformação, de museu em mesquita. Fato que poderá sim ser um fator de um possível acirramento de um conflito, como já houve na história, mais agudo entre muçulmanos e cristãos, de um modo geral.
Há um livro – esgotado –, de Amin Maalouf, que As Cruzadas vistas pelos árabes. As Cruzadas, que alguns historiadores enumeram existiram em até nove delas – uma delas inclusive só de crianças –, foram movimentos de imensos contingentes humanos ocorridos entre os anos de 1096/1099, de cristãos fundamentalistas europeus que iam para o Oriente Médio, especialmente para a Palestina para a reconquista de Jerusalém, que para eles estavam na mão dos “infiéis” (em uma alusão, claro, aos muçulmanos, ainda que esses adorem o mesmo deus).
Esse movimento chegara a conquistar Jerusalém, instalando um reinado cristão, que durou 200 anos, e em 1177, voltou para as mãos dos muçulmanos conquistado por Saladino (em árabe Salah el Din). Que não era árabe, era curdo, mas era um líder islâmico, muçulmano, tipo sultão. Este período é considerado o auge do império árabe-muçulmano, auge na sua expansão territorial, cultural e cientifica, grandes conquistas, grandes legados, para a humanidade.
Hoje em dia não é elevado o choque entre cristãos e muçulmanos, mas não dá para dizer que é uma convivência harmônica. Na Europa tem crescido muito a presença de muçulmanos, a religião islâmica, isto é visto com preconceito por grande parte dos europeus, coisa que a vida inteira os judeus sofreram, preconceito e perseguição, os muçulmanos sentem isso na pele, na Europa, aliás em boa parte do mundo. Na hora de entrar num avião, fazer check-in, passar por uma fronteira, receber vistos em seu passaporte, o preconceito é grande. Existe uma associação do terrorismo internacional com os muçulmanos, com os árabes em particular, ainda é muito grande.
Agora esta decisão tomada por um Conselho de Estado da Turquia não reflete a opinião dos muçulmanos no mundo, diferente do cristianismo e de outras igrejas patriarcais e ortodoxas, que tem um Patriarca e o catolicismo tem o Papa, o Islã não tem um Papa, não tem uma figura que representa toda a religião, é descentralizada de forma absoluta. Cada Mesquita, em cada lugar do mundo, tem o seu xeique, que faz a reza na sexta-feira ao meio dia, que é similar a missa dos católicos, o culto dos protestantes, ele faz a reza, dura uma hora, hora e meia, que é o momento mais importante para o Islã.
Os muçulmanos guardam a sexta-feira como dia sagrado, os judeus guardam o sábado e os cristãos guardam o domingo. Nem em relação aos dias sagrados eles se entendem muito. Além de não ter um líder único muçulmano em todo o mundo, eles tem uma divisão entre sunitas e xiitas. Que é quase inconciliável, apesar deles seguirem o mesmo livro sagrado, diferente dos cristãos, que tem várias traduções da Bíblia, algumas com grandes diferenças e modificações nos textos mais antigos e originais. Eles têm um único alcorão, não há modificação.
Eles dizem que o Islã foi a última religião revelada por deus e que Maomé é o seu último profeta. O Alcorão cita 25 profetas, Adão seria o primeiro, depois viria Noé que também eles consideram um profeta. Jesus é um profeta, não é filho de deus, apesar de acreditarem na virgindade da Maria. Não há idolatria, nem a Maria, nem a Jesus, então é como se Maomé tentasse resgatar e preservar certos postulados básicos do cristianismo, como também o fez com o judaísmo da Torá (Velho Testamento).
Como o cristianismo fez a mesma coisa em relação ao judaísmo, não houve uma ruptura. Então o Islã procede algumas modificações e diferenciações, mas ele preserva a essência do cristianismo e do judaísmo, que são chamadas as religiões mozaicas (de Moisés). Eles dizem adorar o mesmo deus.
Bom, se considerarmos que existe no mundo hoje, um bilhão e meio de muçulmanos, os cristãos são dois bilhões, mas dentro do cristianismo tem os protestantes, os católicos, etc. Os católicos são 1,2 bilhão, os muçulmanos são 1,5 bilhão, portanto se analisarmos por confissões religiosas, o Islã é a maior religião mundial e dentro os 1,5 bilhão de seguidores do islamismo, um bilhão são sunitas e 500 milhões são xiitas. E há diferenças, os que mais vão criticar este tipo de procedimento serão os xiitas e os muçulmanos sunitas se dividirão. Acredito que haverá um grau de conflito, mas não o ponto de se equiparar aqueles conflitos do século XI, XII e XIII quando houve as cruzadas e a conquista de Jerusalém pelos cristãos europeus.
Mudança no acesso ao patrimônio histórico
Não tenho dúvida que será restringido, se não for oficialmente será pelo constrangimento. Será muito diferente um turista visitar um museu, como será diferente ele visitar um local religioso. Quantos cristãos, católicos, seja de que corrente for, ou mesmo de outras religiões deixariam de visitar este grande centro? É um exemplo de arquitetura ortodoxa muito importante. É o prédio que mais se destaca na foto panorâmica de Istambul, assim como o que mais se destaca em Jerusalém é a Mesquita da Cúpula Dourada, também conhecida como Mesquita de Al-Aqsa. Acho tudo um grande retrocesso. Mas, isso tem a ver com o sonho e projeto de restauração do Califado Otomano e Erdogan, claro, sonho ser o novo sultão (Califa). Mas, isso jamais ocorrerá. Mas, esse é assunto para outra entrevista.
*Sociólogo, professor universitário (aposentado), escritor de 13 livros (alguns em coautoria), pesquisador, especialista em política internacional. Atualmente exercendo a função de analista internacional, sendo comentarista da TVT, da TV 247, do Canal Resistentes e do Canal Outro lado da notícia, todos por streaming no YouTube. Publica artigo nos sites Vermelho, Fundação Grabois, Brasil 247, Resistentes, Resistência e Outro lado da notícia.