Leia a seguir o ensaio “A luta antirracista”, oitavo capítulo do livro “Há Racismo no Brasil”, do escritor e jornalista José Carlos Ruy (1950-2021). Nos marcos da celebração do Mês da Consciência Negra, o Vermelho divulga a obra póstuma de Ruy, que é inédita. Será publicado um capítulo do livro por dia entre 20 e 30 de novembro. Confira.

Cap 8 – A luta antirracista

A resistência antirracista é antiga, e remonta ao período escravista.

Após a Abolição surgiram centenas de organizações, entre elas o Clube 13 de Maio dos Homens Pretos (1902), e o Centro Literário dos Homens de Cor (1903), em São Paulo, a Sociedade União Cívica dos Homens de Cor (1915) ou a Associação Protetora dos Brasileiros Pretos (1917), no Rio de Janeiro.

Em 1931 surgiu a Frente Negra Brasileira que uniu várias entidades do movimento negro em todo o país. E se tornou um partido político, que foi fechado pela ditadura do Estado Novo, em 1937.

O combate ao racismo reencontrou seu espaço no ambiente democrático do final do Estado Novo (1945). As organizações reapareceram, e foi criado o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, durante a campanha pela convocação da Assembleia Constituinte, em 1945. Surgiu também o Teatro Experimental do Negro (1944), criado por Abdias Nascimento, que publicou o jornal “O Quilombo”, e disseminou a consciência da negritude entre os brasileiros. A luta se fortaleceu e inúmeras entidades e associações surgiram pelo Brasil afora.

Sob a ditadura de 1964 o protesto antirracista foi outra vez escamoteado e suas organizações reprimidas e perseguidas. Mas a luta continuou, embora na clandestinidade. Ela voltou com força quando a resistência ao regime dos generais ganhou as massas, uma década depois. O protesto contra o racismo cresceu, mobilizando aqueles que sentiam com força a ação repressiva: o povo pobre, negro e mestiço das periferias e das camadas mais pobres e oprimidas da sociedade.

Em 1978, o assassinato sob tortura, numa delegacia de polícia em Guaianases, na Zona Leste de São Paulo, do trabalhador negro Robson Luiz, foi o estopim que levou à reorganização do movimento negro. Em julho daquele ano, militantes do Rio de Janeiro e São Paulo promoveram uma manifestação contra a violência racista da polícia. Mobilizaram a população negra e mestiça, e o protesto contra a morte de Robson Luiz levou à unificação de entidades em vários estados – Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e outras partes do Brasil. E, em uma assembleia realizada em São Paulo, em 18 de julho de 1978, foi lançado o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial que, em 1979, foi rebatizado como Movimento Negro Unificado (MNU).

Na sua esteira, outras organizações surgiram e encontros foram realizados. Dez anos depois, em 14 de julho de 1988, foi criado o SOS Racismo. Naquele mês de julho foi fundada também, em Salvador (Ba), a União de Negros pela Igualdade (Unegro), com apoio do Partido Comunista do Brasil, formada por militantes da Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, com o objetivo de unir a luta antirracista à luta de classes e contra a opressão da mulher, na perspectiva de conquistar da transição para um Brasil socialista e multirracial.

Em julho de 1989 ocorreu o Encontro Nacional de Lideranças do Movimento Negro, em Belo Horizonte; de 14 a 17 de novembro de 1991, em São Paulo, ocorreu o 1º Encontro Nacional de Entidades Negras (ENEN), com 554 delegados de 250 entidades de vários estados.

Em 1988 o Catálogo das Entidades do Movimento Negro, elaborado pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), do Rio de Janeiro relacionava 516 grupos de luta contra o racismo. Mais da metade deles estava em São Paulo (159) e Rio de Janeiro (152), e havia uma quantidade expressiva na Bahia (51) e em Minas Gerais (47); a maioria deles estava na periferia das capitais e das grandes cidades.

O período democrático da Constituição de 1988 tem sido marcado pelo crescimento e fortalecimento da luta contra o racismo. Em 11 de maio de 1988 negros e militantes antirracistas do Rio de Janeiro assinalaram o centenário da Lei Áurea (que proibiu a escravidão no Brasil) com uma Marcha dos Negros Contra a Farsa da Abolição, cujo trajeto iria da Candelária ao monumento a Zumbi, na Praça XI, passando pelo panteão onde estão sepultados os restos mortais do Duque de Caxias, na sede do Comando Militar do Leste, que mobilizou tropas contra a marcha. O pretexto: segundo nota do Comando Militar do Leste, foi o risco de desrespeito ao patrono do Exército, o Duque de Caxias.

Em 2001 houve um protesto inovador: a ocupação de um espaço “branco” por militantes negros que, em 6 de julho daquele ano, ocuparam um shopping center na Zona Sul do Rio de Janeiro. Aquela ação indicou a disposição de combater o racismo em ambientes de predomínio de pessoas de pele clara. O ato assinalou a abertura da Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância (preparatória da 3a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul). Um grupo de 50 militantes do Movimento Negro percorreu aquele shopping em protesto contra a realidade revelada por uma pesquisa segundo a qual naquele local – como em tantos outros centros comerciais pelo país afora – existiam 155 lojas que empregavam 742 trabalhadores, dos quais apenas 26 eram negros, ou 3,5% do total.

Esse tipo de ação de massa, como protesto, foi repetido anos depois – no final de 2013 – por jovens pobres e negros das periferias de cidades como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, e outras capitais. Eles passaram a promover os chamados “rolezinhos”, passeios combinados através das redes sociais da internet, para ocupar os principais shopping centers destas cidades, incomodando com sua presença o público endinheirado de pele clara. Acenderam a ira racista de muita gente das classes dominantes, que chamaram a polícia contra aqueles “negros” incômodos e ameaçadores que invadiam espaços socialmente reservados para pessoas de pele mais clara.