Uma leitura panorâmica da URSS
Em texto publicado no livro Cem Anos da Revolução Russa, Legados e Lições (Anita Garibaldi), um dos organizadores da obra destaca a importância da fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ocorrida em 30 de dezembro de 1922, assim como da Revolução Russa que a engendrou.
Por Adalberto Monteiro, jornalista e poeta. Membro do Comitê Central e secretário nacional de Formação e Propaganda do PCdoB.
Texto publicado em 100 anos da revolução russa: legados e lições. Organizadores: Osvaldo Bertolino e Adalberto Monteiro.—1.ed.-São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2017. 364 p.
A Revolução de Outubro, de 1917, na Rússia, é um marco na história mundial. Ela abriu a era de Estados e sociedades socialistas, obviamente não se desconhecendo a efêmera e heroica experiência da Comuna de Paris (1871). Assim como para muitos a Revolução Francesa simboliza a época das revoluções burguesas, a ascensão do capitalismo, Outubro confirma o cerne do marxismo e descortina o primeiro ciclo histórico da passagem do capitalismo ao socialismo.
A Revolução de Outubro condicionou a dinâmica do século XX e moldou a geopolítica mundial. Em 1922 é constituída a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Inicialmente foi formada com quatro repúblicas, e quinze após a Segunda Grande Guerra. A partir de 1945, na esteira da participação vitoriosa da URSS nessa guerra, países do Leste Europeu e parte da Alemanha passaram a ter regimes de “democracia popular” como parte do processo da transição do capitalismo ao socialismo.
Em 1949, forma-se o Conselho de Cooperação e Ajuda Mútua (Comecon) que, em 1972, abrangia todos os países que se proclamavam socialistas, com exceção de China, Albânia, República Democrática e Popular da Coreia e Iugoslávia. Em 1955, constitui-se o Pacto de Varsóvia, acordo de defesa mútua do campo socialista em contraposição à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que surgiu em 1949.
Processos revolucionários entrelaçados com guerras de libertação nacional e, também, por guerras anticolonialistas que abarcam um período de trinta anos (1945-1975) levaram os comunistas ao poder em vários países: China (1949); Coreia do Norte (1945); Vietnã (processo revolucionário que se estende de 1954 a 1974); Laos (1975). Esse ciclo também constituiu um elenco de países sob a influência do campo socialista.
Em 1959, ocorre a Revolução Cubana que, em 1961, se proclama socialista. Durante os anos 1960 e 1970, a luta anticolonialista, respaldada pela URSS e pela China, liberta vários países do jugo colonial na África e na Ásia. À época, os governos derivados desse processo – Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe – são tidos com “Estados de orientação socialista”.
Nos anos 1970, a América Central se levanta contra ditaduras entreguistas, mas a revolução democrática e patriótica só triunfa em 1979, na Nicarágua. Na América do Sul, entremeio a ditaduras militares que infestavam a região, houve a singular experiência do governo de Salvador Allende (1970-1973). A Unidade Popular – uma frente política e social, liderada pelos socialistas e comunistas – conquistou, pela via eleitoral, o governo do Chile. A experiência foi ceifada por um truculento golpe militar.
Os partidos comunistas estiveram à frente ou tiveram algum tipo de protagonismo na maioria destas jornadas revolucionárias, se revelaram eficazes e indispensáveis vanguardas organizadoras e unificadores da jornada emancipadora.
Um planeta e “dois mundos”
Como resultante, já nos anos 1960, um terço da população do planeta integrava países do campo socialista. Depois da Segunda Grande Guerra até 1990, objetivamente, o mundo foi regido pelo confronto entre os campos socialista e capitalista. Neste espaço de tempo, a Terra teve “dois mundos” antagônicos e, em razoável medida, compartimentados. Em parte considerável desse período, foram pequenos entre eles tanto o intercâmbio comercial quanto – menor ainda – a circulação de pessoas. Isso derivou de uma política de “cerco, isolamento e aniquilamento” adotada pelas potências imperialistas contra a Rússia soviética desde o seu nascimento. Basta dizer que só em 1933 os EUA viriam a reconhecê-la oficialmente na esfera diplomática. Tal política hostil se tornou ainda mais agressiva, a partir de 1945, com a denominada Guerra Fria, inequivocamente desencadeada com o lançamento de bombas atômicas sobre Nagasaki e Hiroxima, crime de lesa-humanidade cometido pelo imperialismo estadunidense.
No triênio 1989-1991, esse confronto tem desfecho com a derrota do campo socialista. Ocorre a derrocada dos governos do Leste Europeu e o fim da URSS. As potências imperialistas usam a toda carga seu complexo midiático, ideológico e cultural para disseminar a falência e a inviabilidade do socialismo e a caducidade do marxismo. Chega-se a vaticinar o “fim da história”.
Um tufão anticomunista e obscurantista varre o mundo.
Em decorrência disso, a desorientação e a deserção ganham terreno no campo revolucionário. Muitos chegam mesmo a negar que tenha existido socialismo na URSS. O imperialismo, de posse da vitória, parte para o ataque.
Se a Revolução influenciou positivamente a marcha da humanidade, o seu fim em 1991 tem impacto oposto. À época, George Bush, o pai, proclama ao mundo que com “o fim do comunismo” o planeta conheceria um período de paz e prosperidade.
Sem a URSS e o elenco de países por ela liderados para confrontá-lo, o imperialismo recrudesceu sua ofensiva contra os povos e a exploração capitalista se exacerbou sobre os trabalhadores. A implementação em larga escala do neoliberalismo e a Guerra do Golfo (1990-1991), deflagrada nos estertores da URSS, sinalizaram o que estaria por vir.
Neste contexto, o campo socialista, sob inspiração marxista-leninista, foi chamado a empreender a resistência. Impunha-se um fecundo e amplo trabalho crítico e autocrítico para sistematizar as razões da derrota e as lições desse primeiro ciclo socialista.
A crítica e autocrítica do PCdoB
O Partido Comunista do Brasil, neste período, confrontou-se com a colossal campanha anticomunista. No país e pelo mundo afora, partidos e governos dissolveram-se. Fez-se longa a lista de descrentes e desertores. Mas o PCdoB resistiu, e mesmo se fortaleceu, durante a crise. Entre 1989 e 1995 o coletivo partidário, liderado por João Amazonas, destacada liderança dos comunistas brasileiros, empreendeu um labor teórico, político, ideológico, de conteúdo crítico e autocrítico. Passou em revista a experiência soviética e a própria trajetória do Partido Comunista do Brasil.
Ao final desse labor, em 1992, no 8º Congresso, e em 1995, na 8ª Conferência, o PCdoB reafirmou o socialismo sob um criterioso estudo. Defendeu o legado da URSS à humanidade e, ao mesmo tempo, apontou erros e insuficiências da primeira experiência do socialismo no mundo. Aliás, neste trabalho, usufruiu de uma singularidade de sua trajetória. Já na década de 1960, havia indicado o desvio daqueles países da rota revolucionária.
João Amazonas aponta que o fim da URSS provocaria às fileiras do movimento revolucionário mundial um longo período de defensiva estratégica dado a envergadura da derrota. Previsão que foi totalmente confirmada e que prevalece a esta altura da fase final da segunda década do século XXI.
Em 1995,o PCdoB supera concepções dogmáticas de seu pensamento estratégico e, com base na sistematização do estudo crítico da experiência da URSS e de um esforço de interpretação da realidade brasileira, elabora um Programa Socialista para o Brasil – socialismo renovado, enriquecido com a experiência e lições da história.
De lá para cá, o PCdoB prosseguiu em suas reflexões sobre o tema, interagiu com a elaboração teórica de outros partidos comunistas e, também, com o pensamento de intelectuais marxistas e progressistas.
Sustenta estar em curso uma nova luta pelo socialismo, jornada esta iniciada já mesmo no curso do enfrentamento da maré anticomunista advinda do fim do URSS. Nova etapa que se alimenta da resistência dos países que mantiveram a perspectiva socialista e da resistência ativa do movimento revolucionário.
Sob a liderança de Renato Rabelo, o PCdoB elabora, em 2009, um novo Programa no seu 12º Congresso que aponta a luta por um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento como o “caminho brasileiro para o socialismo”. Um programa situado na dinâmica da históra brasileira e no contexto do mundo contemporâneo. Esse “Programa Socialista para o Brasil” apura ainda mais o pensamento tático-estratégico dos comunistas brasileiros, e procura ser consequente com a lições da Revolução de Outubro. A luta pelo socialismo deve ser regida pelas singularidades de cada país.
No presente, a crise capitalista iniciada em 2007 põe em relevo seus paradoxos, suas mazelas e seus limites históricos e, ao mesmo, pressiona os povos a buscarem saídas. Nestas circunstâncias é que reaparece o socialismo como alternativa viável, e o marxismo enquanto teoria é re-valorizado.
As conquistas e o legado da URSS
Se, no fundamental, a Revolução de Outubro confirma as análises de Marx e Engels, nega também um prognóstico elaborado por eles. A revolução dos oprimidos de fato eclodiu, mas, ao contrário do que especulara Marx, ela não se realizou nos países capitalistas desenvolvidos. O espectro do comunismo que ronda a Europa de que fala o Manifesto ricochetou nos países capitalistas desenvolvidos do Velho Mundo e foi estourar na Rússia, país destacamente rural, agrícola, com “ilhas” de indústrias em algumas grandes cidades. E também o prognóstico inicial de Lênin não se deu: Outubro não se espalhou pela Europa.
Um e outro fato condicionaram profundamente a experiência soviética. E a realidade com sua força e criatividade impôs o desafio de se transitar do capitalismo ao socialismo num país relativamente atrasado quanto ao nível das forças produtivas. Para se ter uma ideia disto, 82% da população, em 1926, encontravam-se na zona rural e apenas 7,5% não estavam vinculados à agricultura.Ademais, sublinhe-se, um país cercado de capitalismo por todos os lados. Capitalismo que desencadeou feroz combate e empreendeu vários estratagemas para liquidar a primeira pátria socialista.
A URSS enfrentou o desconhecido, a barreira de chumbo do ineditismo. O processo de aprendizagem que toda revolução é obrigada a “frequentar”. Num grau de dificuldade maior do que o imposto às revoluções burguesas, como apontou Lênin. Estas, quando conquistaram o poder político, tinham a favor de si a preexistência das relações sociais de produção burguesas que já haviam surgido no âmbito do feudalismo. Outubro, como toda revolução socialista, além de criar um novo Estado, um novo sistema político, teve também de fazer surgir novas relações de produção inexistentes sob o capitalismo.
Marx e Engels, adversários de “anteprojetos” utópicos de como seria a futura sociedade socialista, como assinalou João Amazonas, não se ocuparam em dar amplas indicações de como seria a transição do capitalismo ao socialismo. O tema comparece de modo parcimonioso no Manifesto Comunista, na Crítica ao Programa de Gotha e nas reflexões referentes à Comuna de Paris. Portanto, a liderança soviética teve que dar vida, concretude, a uma nova sociedade de cuja arquiteura havia apenas alguns traços.
Na URSS, mesmo sob circunstâncias adversas, várias fases da transição do capitalismo ao socialismo foram vencidas. Lá, o socialismo, sim, conheceu um processo de edificação. E o legado dele, nessa sua fase inaugural na história, é precioso.
A primeira grande conquista da URSS foi ter se transformado de país atrasado, no curso de 20 anos, numa grande economia industrial. O processo foi massivo e acelerado, sustentado durante décadas, por índices de crescimento econômico e produtividade entre os mais elevados do mundo. Por exemplo, de 1929 a 1938 o crescimento da produção industrial na União Soviética foi 117%, contra 73% do Japão, 15% da Grã-Bretanha e 30% da Alemanha e -22% dos Estados Unidos da América, às voltas com a grande crise do capitalismo iniciada em 1929.
Tal desenvolvimento cativou atenção de vários países do depois chamado Terceiro Mundo que buscavam também vencer o atraso, como salientou o historiador Eric Hobsbawm.
A URSS via uma espécie de “segundo dia da criação”, como denominou o escritor soviético Ilia Ehrenburg, torna-se – para espanto e medo dos capitalistas – uma potência mundial. Aliás, essa velocidade que o governo soviético imprimiu ao processo de industrialização se deu porquanto percebeu, acertamente, que o imperialismo, em meados dos anos1930, já preparava a Guerra.
A democracia burguesa passa a ser confrontada com sua rival, a democracia socialista. Para além dos direitos políticos, da igualdade jurídica que a democracia burguesa formalmente estabelece, o poder socialista canaliza considerável parte da riqueza produzida à elevação da qualidade da vida material e cultural do povo que se ampliou na URSS numa extensão e rapidez impressionante. Quanto aos direitos políticos, a URSS consagra em sua Constituição de 1936 o sufrágio universal pleno. As mulheres adquirem o direito de voto já em 1917.
Ao chegar a Segunda Guerra Mundial – com a base material edificada e seus trabalhadores e suas nacionalidades com motivos de sobra para defendê-la –, a URSS enfrenta vitoriosamente a máquina de guerra hitlerista. Vinte milhões de vidas soviéticas pereceram na jornada vitoriosa que derrotou a peste nazi-fascista.
No confronto entre os “dois mundos”, a URSS enfrenta e desmascara as teorias e ideologias racistas contra negros, judeus, os povos da Ásia e África, e das colônias, considerados pelo imperialismo como inferiores e “não civilizados”. Contribuição decisiva para romper a barreira da segregação, ser integrante “da humanidade” progressivamente deixou de ser privilégio de seletos povos, como destacou o filósofo Domenico Losurdo. Para além da luta ideológica, a URSS respalda as revoluções nacionais que libertaram os povos dos grilhões do colonialismo.
Ante as conquistas políticas e sociais do campo socialista, o próprio capitalismo se viu impelido a fazer concessões aos povos e trabalhadores. Essa influência impulsiona as lutas operárias e populares em vários países que resultam em conquistas no terreno dos direitos trabalhistas, sociais e previdenciários.
A Rússia soviética, ao estabelecer o voto popular qualificado desde os seus primórdios e, já na URSS, o voto universal pleno em 1936 – inclusive com mandato revogatório –, contribuiu para combater os liberais que nas democracias burguesas impunham ao sufrágio restrições censitárias, machistas e racistas. Não se deve esquecer que a lei que garante o voto aos negros somente é aprovada nos EUA em 1965.
Deste modo, reconhecidamente, muitas conquistas civilizatórias obtidas pela humanidade no século XX são legados diretos ou indiretos do socialismo.
Erros e Insuficiências
O fim da URSS – fato recente, sob o ângulo do tempo histórico – continua a demandar uma análise totalizante. O campo político marxista e revolucionário segue a empreender investigações e reflexões que elucidem o feixe de erros, causas e circunstâncias que concorreram à derrota. O objetivo desse esforço teórico e político é sistematizar o aprendizado da experiência concreta para reafirmar e rejuvenescer o socialismo.
Desde o início deste labor têm se destacado os condicionantes e as circunstâncias que envolveram a trajetória soviética. Quais sejam: o ineditismo, isto é, o “batismo” histórico do socialismo, a adversidade de se empreender a transição do capitalismo ao socialismo num país com forte presença de relações pré-capitalistas e o corrosivo cerco imperialista. Isto é imprescindível sob pena de uma leitura idealista e a-histórica. Todavia, apesar deste contexto original, muito adverso, seria errôneo entender que a análise se esgota com tais corretas indicações. Absolutizá-las seria resvalar para o equivocado juízo da inevitabilidade da derrota.
Na esfera da construção econômica, a URSS, impulsionada durante décadas por uma perspectiva modernizadora, obteve índices de elevação da produtividade do trabalho equivalentes aos das potências capitalistas. Nesta etapa, a construção econômica se realizou por alta centralização e detalhado planejamento e com grande parte das forças produtivas estatizadas, concentradas em grandes unidades de produção.
A partir dos anos 1960, o crescimento embora ainda competitivo vai perdendo impulso e, em meados da década de 1970, a economia soviética passa a descrever uma trajetória que tende crescentemente à estagnação. Em suma, como destaca Luis Fernandes, a economia da URSS “passou a ter um desempenho pior ou igual às demais potências capitalistas.”
A direção política soviética deixou cair no esquecimento, como observou João Amazonas, a preciosa elaboração teórica de Lênin acerca da complexa tarefa da transição do capitalismo ao socialismo, sobretudo num país como a Rússia.
Na URSS, diz Amazonas, “a marcha do desenvolvimento da sociedade, em todos os campos, parecia depender principalmente da vontade dos homens, dos dirigentes, sem considerar que esse desenvolvimento tem raízes objetivas, envolve estágios determinados”.
Desse modo, a direção do PCUS cai na ilusão, conforme declarado em 1939, no texto do 18º Congresso, de que já se alcançara o socialismo pleno. Tratava-se, então, dali para diante, de se empreender a passagem gradual do socialismo ao comunismo.
Como dito acima, a partir da década de 1970, as forças produtivas não se desenvolvem a contento. Não se conseguiu passar da fase de crescimento econômico extensivo (expansão baseada em novas unidades de produção, com uma mesma base tecnológica) para a fase de crescimento intensivo (incorporação de novas tecnologias, mais inovação e força trabalho ascendemente mais qualificada e emulada).
Embora, em certa medida, no decorrer dos anos da década de 1960, a liderança soviética tenha tomado consciência de que se esgotara o modelo ultracentralizado, de crescimento extensivo, ela não foi capaz de “engatar” aquela gigante economia a uma etapa que a revolucionasse, aportando à indústria avanços científicos e tecnológicos, reestruturando o processo produtivo.
O dinamismo tecnológico se restringiu, em poucos ramos, notadamente da indústria bélica e da aeroespacial. Enquanto isso, o capitalismo ganha impulso com uma nova revolução técnico-científica aumentando contraste entre os dois sistemas, com vantagem para o capitalismo. Com a queda do crescimento econômico, em qualidade e quantidade, a vida do povo deixa de se elevar e a confiança no socialismo é afetada.
Este fenômeno de tendência à estagnação econômica na URSS, a partir dos anos 1970, suscita uma questão crucial na construção do socialismo, à qual Luis Fernandes denominou de “dilema da produtivade”, da inovação.
Como garantir o permanente desenvolvimento das forças produtivas, com a inovação tecnológica e elevação da produtividade do capital, do trabalho, da economia como um todo?
Convém sublinhar que, mesmo depois do triunfo da revolução; mesmo com o poder político sob controle de forças revolucionárias; mesmo depois de mudanças na base material e nas relações sociais de produção, isso não resulta em mudança automática na consciência social. Os valores e concepções do capitalismo continuaram a perdurar por longo tempo, dificultando e freando os avanços da construção econômica em bases socialistas.
Na URSS, o fator político de defesa da pátria ameaçada pelo cerco imperialista, e a defesa das conquistas da revolução se constituíram impulsionadores relevantes. Contudo, ficou demonstrado que não basta motivação política e ideológica, é preciso um fator material, econômico. Ficou também evidente que um sistema de produção, rigidamente comandado por um minucioso planejamento central, tolhe o dinamismo da economia e é refratário à inovação.
A semiparalisia a que chegou a economia soviética se relaciona e interage – com as deformações que corroeram o Estado soviético – com o rígido sistema político-institucional que conteve a expansão e o florescimento da democracia socialista. O Estado agigantou-se com numerosa burocracia e se tornou impermeável ao controle social. O Partido se fundiu com ele, além de exercer uma tutela sobre todas as organizações de representação dos trabalhadores e do povo, inclusive, sobre os sovietes.
Neste ângulo também comparece o desprezo pelas etapas e a alteração qualitativa das circunstâncias.
A URSS, pós-Segunda Grande Guerra, já se tornara uma grande potência, já dispunha do tão almejado campo socialista, portanto, mais apta a enfrentar o cerco imperialista e outras adversidades, mas o Estado seguiu centralizador e onipresente, refratário à participação crítica e criativa das massas.
Embora tenha sido aprovada em 1936 uma Constituição democrática, que estabeleceu o sufrágio universal pleno entre outros dispositivos avançados, na prática a democracia socialista padeceu de frequentes medidas de exceção que feriam a legalidade socialista. Isto deu margem para grassar repressões e violências insanas e, consequentemente, instaurar o medo entre as massas.
Como pretexto de o Estado exercer uma das funções que lhe compete – a defesa da revolução –, se espalhou uma repressão cujo alvo, por vezes, foi o próprio coletivo partidário, tal como ocorreu na segunda metade dos anos 1930. Tal ação foi uma pá de cal na participação crítica e criadora das massas e fator de inibição da inteligência e da vigilância do coletivo militante.
Esse ambiente trouxe, também, consequências negativas para o avanço das ciências, o florescimento da cultura e da arte e, também, do marxismo. A ausência de liberdade e a ingerência tosca e indevida do Estado nos dilemas da ciência passaram a frear seu avanço na URSS. De igual modo, as artes – que tiveram sua força criativa presente na fase primeira da revolução – têm esse dinamismo freado.
O realismo socialista, como outras correntes estéticas da história universal das artes, produziu belas e fecundas obras. O erro crasso foi sua “entronização”, sua referência obrigatória.
O marxismo-leninismo, elevado à condição de doutrina oficial do Estado, estancou sua evolução vitimado pelo dogmatismo. Quando as diferenças e divergências de opinião se tornam delitos, não há teoria alguma que possa prosperar.
Por isto, o 8º Congresso do PCdoB, 1992, asseverou: “Não se pode desenvolver a sociedade, na fase de transição, sem o uso da democracia e da liberdade. Democracia socialista para incorporar grandes massas na atividade estatal, liberdade para combater a burocracia, os defeitos emergentes, a rotina conservadora”.
A degeneração do PCUS
O Partido Comunista da União Soviética (PCUS), força dirigente da gloriosa saga soviética, por seus feitos e realizações, gozava de imenso prestígio na URSS e no mundo. Seus quadros, por sua dedicação e competência, eram admirados mesmo no mundo capitalista. Todavia, saiu ferido de morte dessa fusão Partido-Estado, uma vez que Estado e Partido são categorias distintas, com funções definidas.
Com a teoria marxista estagnada, o PCUS gradativamente deixa de contar com um dos principais instrumentos que possibilitavam-lhe resolver os dilemas e problemas da dinâmica da construção do socialismo.
De vanguarda capaz de engajar milhões no processo revolucionário – e, posteriormente, na construção da nova sociedade, de liderar a defesa da pátria tanto nos seus primórdios quanto na Guerra Patriótica – passou a ser fator de exclusão das massas nesta dinâmica.
Os quadros, exemplos de abnegação e competência, respeitados pelo povo por dedicação ilimitada, à medida que o PCUS se degenera, perdem perspectiva e valores revolucionários, recebem a repulsa das massas. Em vez de serem vistos como homens e mulheres dispostos a sacrifícios pela causa do povo, tornam-se símbolos de uma casta ímproba e privilegiada.
Dois episódios emblemáticos retratam a ascendente desqualificação do PCUS enquanto força revolucionária.
Em 1956, no seu XX Congresso, liderado por Kruschev, à guisa de um acerto de contas com o período Stálin – cujo papel, aliás, foi analisado com fecunda crítica pelo 8º Congresso do PCdoB –, excomunga o passado, enxovalha a trajetória soviética e é incapaz de adotar medidas que impulsionem o socialismo a uma nova etapa. Tal atitude provocou uma fratura política, ideológica e moral no seio da sociedade soviética e do movimento comunista e foi estéril quanto às lições e às perspectivas, como bem destacou João Quartim de Moraes.
Embora os erros e insuficiências já estivessem presentes no período anterior à sua realização, o XX Congresso representa uma ruptura ideológica no âmbito do PCUS, fato que, progressivamente, irá atuar negativamente para a edificação do socialismo.
O segundo episódio deu-se no final dos anos 1980. De vanguarda que liderou a transição do capitalismo ao socialismo – no auge de sua degeneração, à época da denominada Perestroica – transforma-se no seu oposto: o partido é que lidera a transição do que restara do socialismo ao capitalismo. De tal modo, o Estado e o debilitado sistema político soviético caem, em 1991, por ação coordenada pela própria cúpula do PCUS.
Outro elemento que elevou as contradições no campo socialista e atuou para o fracasso da transição em vários países foi a imposição por parte da URSS de um modelo “científico”, único de construção do socialismo, que passou a ser exportado independentemente das distintas realidades políticas, econômicas e sociais dos países. Com base nesse modelo “ideal” de socialismo, havia uma espécie de receita universal para o trânsito ao socialismo. Dessa maneira, qualquer abordagem mais nacional do processo poderia ser considerada “desvio” ou traição.
No âmbito das relações entre os países socialistas, há que se destacar, nos anos 1960 e 1970, a cisão ocorrida. Tais conflitos chegaram ao extremo de provocar conflitos bélicos entre eles. Exemplos disso são os conflitos sino-soviético e sino-vietnamita. O imperialismo explorou habilmente tais contradições, açulando as rivalidades entre os países socialistas.
No Oriente e na América Latina o socialismo resiste
A revolução socialista não prosperou na Europa, mas se expandiu na Ásia, e também nas Américas, através de Cuba, conforme já exposto. Embora descendentes do mesmo tronco, o marxismo-leninismo, e da mesma fonte inspiradora e apoiadora, a URSS, há singularidades nos processos revolucionários dos países que persistiram na construção do socialismo, depois do fim do campo socialista liderado pela URSS.
Todavia, se destaca a seguinte convergência: triunfaram e se legitimaram perante seus povos tendo a causa nacional, a luta pela soberania de seus países, como questão central, vinculando-a com a construção do socialismo. Por exemplo, China, Vietnã, Cuba tiveram capacidade de saber – apesar das dificuldades objetivas e dos erros cometidos, dos “ziguezagues” e vicissitudes de cada um dos processos –, ao modo de cada um, resistir, persistir e renovar-se.
Quando o campo soviético dava sinais de esgotamento nos anos 1970, e óbices crescem no âmbito desses países, a China, em 1978, sob a liderança de Deng Xiaoping, busca revigorar a construção do socialismo com a política de “reforma e abertura”. Em dinâmicas e conteúdos distintos, renovações também passaram a ocorrer, logo a seguir no Vietnã e, mais recentemente, em Cuba.
Ao emergir a grande onda anticomunista no triênio em 1989-1991, e as dificuldades objetivas crescem com hegemonia unilateral do imperialismo estadunidense, estes países encontraram força e convicções para manterem o poder e as instituições políticas originárias de seus processos revolucionários.
Esta resistência e a crescente luta dos trabalhadores e dos povos tiveram papel relevante tanto para a elaboração da teoria revolucionária quanto para o surgimento de uma nova luta pelo socialismo.
A contribuição desses países se destaca pela capacidade de incorporarem reformas, correções e inovações a partir de uma reflexão crítica e autocrítica na esfera tanto política quanto econômica.
Resgata-se na prática a concepção de um processo de transição do capitalismo ao socialismo segundo a realidade de cada um deles. Tem-se procurado desenvolver as forças produtivas, com base tanto na economia planejada com suas empresas e empreendimentos estatais quanto alavancadas por um setor capitalista, misto e formas de capitalismo de Estado. Na esfera política, busca-se um aprimoramento da democracia socialista, com participação crescente dos trabalhadores na vida política e respeito à legalidade socialista.
São experiências avessas a modelos. Galvanizam o marxismo com o saber nacional e, apesar da indefinição e dos riscos inerentes a todo processo de transição, trilham caminhos originais e alimentam por força de seus êxitos a luta transformadora em nosso tempo.
Destacam-se, também, a luta anti-imperialista, contra a guerra, e a defesa da paz empreendidada pelos povos, e as jornadas dos trabalhadores contra a forte investida dos capitalistas que lançam sobre os ombros do povo os ônus da corrente crise capitalista.
Na América Latina, em particular na América do Sul, da luta de resistência ao fracassado modelo neoliberal brotaram a partir do final do século passado, e início deste, governos democráticos, patrióticos e populares resultantes de um caminho singular: luta social, luta política forjando frentes partidárias que, pela via eleitoral, conquistaram governos centrais de vários países.
Estes governos enfrentam no presente forte contraofensiva do imperalismo e das classes dominantes de seus países, com derrotas significativas já ocorridas na Argentina (2015) e Brasil (2016) e pesadas dificuldades na Venezuela, o que não apaga seu legado e importância para a luta que segue na região.
Ao final da segunda década do século XXI, o capitalismo – mergulhado na sua maior crise desde 1929 – revela com agudeza seus limites históricos. As conquistas dos países que sustentam a perspectiva socialista, as jornadas dos trabalhadores e dos povos para desenvolver soberanamente seus países, assegurando melhores condições de vida ao povo, são fatores importantes que descortinam reais e férteis possibilidades de avanço da luta pelo socialismo neste século.
Ensinamentos significativos
O ciclo inaugural do socialismo representado pela URSS e pelo campo de países por ela liderados representa a “infância” da existência histórica do socialismo. Da experiência do século XX e da nova luta pelo socialismo que emerge no século XXI, se destacam as seguintes lições ao projeto revolucionário.
a – Não há modelo único nem de socialismo e nem de revolução. A concepção de um modelo único de socialismo revelou-se errada e anticientífica. A construção do socialismo rege-se pela singularidade de cada país. Sua dinâmica de edificação deriva da realidade política, econômica, social, cultural, histórica de cada nação. Corresponde ao seu nível de acumulação de forças e ao seu tipo de inserção na economia e geopolítica mundial. A construção da nova sociedade requer o poder nas mãos de um bloco de forças políticas comprometidas com o projeto socialista e em progressividade com a socialização dos meios de produção.
b – Não há passagem direta do capitalismo ao socialismo. Sua edificação passa por um período de transição, com etapas e fases realizadas com maior ou menor velocidade segundo a realidade de cada país e a correlação de forças no plano mundial. É um período histórico objetivamente determinado, com suas leis e etapas, no qual em decorrência da luta de classes se trava a luta entre a velha e nova sociedade e, de antemão, não se pode dizer quem vence quem.
c – A democracia socialista é uma das bases sobre a qual devem se erguer o Estado e o sistema político capazes de mediar e defender a construção da nova sociedade. A legalidade socialista garantida por um Estado de Direito regido por um ordenamento jurídico é uma necessidade imperativa à vida política e social do país. É imprescindível a participação crítica e criadora das massas. Esta visão se torna ainda mais importante ao ser revelada, pela prática histórica, a concepção teórica do “definhamento” no Estado como um processo complexo e prolongado, devido tanto ao cerco imperialista quanto aos adversários internos da edificação.
d – O desenvolvimento das forças produtivas e a passagem de etapas e fases na construção econômica – nas quais se busca permanente avanço do desenvolvimento, com base em crescente inovação tecnológica e elevação da produtividade – são condições indispensáveis ao êxito da transição. As experiências que associam o planejamento do Estado com as relações de mercado, que adotaram uma base ecônomica múltipla com uma parte socialista predominante e que compete com outra privada e mista, constituem-se em tentativas de implementar mecanismos que impulsionem a produtividade, a inovação tecnológica e o dinamismo do desenvolvimento.
e – A expansão neocolonial do imperialismo reforça a questão nacional como questão-chave tanto à conquista do poder quanto à edificação do socialismo. A correta relação entre as bandeiras nacional, social e democrática que fazem parte de uma mesma realidade é fator de vitória ou derrota tanto da revolução quanto da transição, da construção do socialismo. As eventuais contradições entre elas devem ser resolvidas, conforme cada circunstância histórica, no sentido do interesse e da perspectiva do que é determinante para o êxito da revolução e da transição. As tensões e diferenças existentes no âmbito da Nação decorrentes do processo histórico devem ser solucionadas sempre com o objetivo de fortalecer a unidade nacional. A Nação não se preserva e nem se realiza em plenitude sem o socialismo, e o socialismo não triunfa sem absorver a causa da soberania e da afirmação nacional. Numa palavra: impõe-se enraizar o projeto socialista no solo nacional.
f – Tarefa estratégica da atualidade é desenvolver e enriquecer a teoria revolucionária, uma vez que o dogmatismo travou sua evolução. O PCdoB procura contribuir com este trabalho de importância estratégica, empreendendo um intercâmbio com o pensamento marxista e progressista, e buscando realizar interpretações marxistas das singularidades do capitalismo contemporâneo. Persegue, também, um domínio ascendente da realidade brasileira visando a desvendar os caminhos de sua transformação. A teoria revolucionária avança à medida que enfrenta os novos e principais fenômenos da contemporaneidade.
g – Os partidos comunistas são decisivos ao êxito da transição, estando, entretanto, sujeitos a processos de descaracterização e degeneração. A construção de partidos comunistas com hegemonia política nacional, vínculos com os trabalhadores, liderança política entre o povo, é um desafio a ser vencido no século XXI.
Bibliografia básica utilizada
AMAZONAS, João. Os desafios do socialismo no século XXI. São Paulo: Anita Garibaldi, 1999
FERNANDES, Luis. URSS: ascensão e queda. São Paulo: Anita Garibaldi, 1992.
______. O Enigma do Socialismo Real. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
LOSURDO, Domenico. Fuga da História? Rio de Janeiro: Revan, 2004.
______. Stálin, História crítica de uma lenda negra. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
PCdoB. O Socialismo vive – documentos e resoluções do 8º Congresso do Partido Comunista do Brasil, PCdoB. São Paulo: Anita Garibaldi, 1992.
RABELO, Renato. Ideias e Rumos. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.
VÁRIOS autores. Capitalismo Contemporâneo e a Nova Luta pelo Socialismo. São Paulo: Anita Garibaldi, 2008.