Nilson Araújo: Os trabalhadores foram os mais sacrificados no pacote de Haddad
O economista Nilson Araújo de Souza lista os problemas do pacote econômico apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
A Faria Lima não se deu por satisfeita. Queria e quer mais. Não está satisfeita com os R$ 869,3 bilhões de juros que recebeu do governo nos últimos 12 meses até outubro e nem com as medidas propostas pelo ministério da Fazenda. Quer escalpelar o trabalhador e a trabalhadora para atender seu objetivo maior: locupletar-se cada vez mais. Por meio de seus ventríloquos na mídia e a pressão sobre o dólar, pressiona o governo Lula a tirar o povo do orçamento, desvinculando do salário mínimo as aposentadorias e pensões, o Benefício de Prestação Continuada (o BPC) e o abono salarial, eliminado os pisos constitucionais da educação e da saúde, e por aí vai.
A proposta final do ministério da Fazenda, por decisão do presidente Lula, não acatou aquelas loucuras, mas seguiu abordando o chamado sacrifício principalmente pelo lado dos mais pobres, essa grande massa de trabalhadores e trabalhadoras deserdados. Os trabalhadores e as trabalhadoras, incluída a imensa maioria do povo pobre, foram os mais sacrificados no pacote do ministério da Fazenda tanto no salário mínimo quanto nas aposentadorias e pensões, no BPC e no abono salarial. Antes de pensar em limitar gastos sociais, o que deveria ser feito seria acabar com o próprio arcabouço.
Diz-se que não teria havido cortes, mas apenas limitado seu crescimento real, enquadrando o salário mínimo nos limites draconianos do arcabouço. O salário mínimo, que era reajustado nos períodos Lula I e II pelo IPCA do ano anterior mais o crescimento do PIB de dois anos antes, medida que havia retornado em Lula III, passaria a ser enquadrado nas regras do arcabouço. Seguiria sendo reajustado pelo IPCA mais o incremento do PIB, mas essa taxa seria limitada a 2,5% ao ano. Isto é, se o PIB neste ano crescer acima de 3%, como acredita o ministro Fernando Haddad, os trabalhadores teriam um aumento real de, no máximo, 2,5% daqui a dois anos, o que levaria algumas décadas para atingir o mínimo necessário conforme o salário mínimo necessário do DIEESE. Cálculos de Pedro Rossi dão conta de que, se as regras do pacote estivessem vigendo desde 2003, o salário mínimo estaria 25% abaixo de seu nível atual. Reforçando esses dados, o documento da Fazenda indica que o montante do valor surrupiado por meio dessa medida contra o salário mínimo seria de R$ 109,8 bilhões nos próximos seis anos, de um montante total de R$ 327 bilhões, ou seja, 35,9%. Isso é ou não um violento corte?
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Ocorre que as aposentadorias e pensões e o BPC (que atende a idosos com 65 anos ou mais e pessoas com deficiência de baixa renda) têm seu reajuste anual condicionado ao salário mínimo. Portanto, também se submeteriam às regras do arcabouço. O mesmo sucede em relação ao abono salarial, que atende aos trabalhadores com carteira assinada que ganham até dois salários mínimos (hoje R$ 2.812), que seria fixado em um valor equivalente a dois salários mínimos de 2023, ou seja, R$ 2.640, e a partir daí experimentaria reajuste apenas pela inflação até atingir, em 2035, 1,5 salário mínimo. Seriam cortados, portanto, do BPC, do Bolsa Família e do abono salarial, pela estimativa do ministério da Fazenda, R$ 47 bilhões, ou seja, mais 14,3% do total do pacote. Na área social, já se contabiliza cerca da metade do montante do pacote.
Todas as medidas são contrárias aos interesses dos trabalhadores e do povo mais pobre. E também jogam contra os interesses da indústria, que veria seu mercado interno encolher. Todos concordam que, dadas as elevadas taxas de juros praticadas pelo Banco Central, o que repercute no conjunto das taxas cobradas pelos bancos, o ligeiro crescimento anual (cerca de 3% ao ano) que o PIB vem experimentando se deve, em grande medida, ao mercado criado pelos programas sociais do governo Lula. Assim, os cortes desses programas significarão o encolhimento do mercado interno, prejudicando, em consequência, a nossa indústria.
Nem o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (o famoso Fundeb), o fundo da educação, escapou. Na alquimia que o ministério montou, poderá haver uma “economia” de R$ 42,3 bilhões nos próximos seis anos, dinheiro que poderia ser dedicado à educação. O mesmo ocorreu com o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o fundo da ciência, da tecnologia e da inovação. Ao ser enquadrado na famigerada DRU (Desvinculação de Receitas da União), que a Fazenda pretende renovar, perderá parte das verbas de que dispõe. E ficou claro desde que foi criado pelo Fernando Henrique que o objetivo da desvinculação era liberar recursos para pagar juros da dívida. O ministério estima que, de 2025 a 2030, a DRU receberia um aporte de R$ 25,6 bilhões, retirados das CT&I e de outras áreas. A cultura também não escapou: a lei Aldir Blanc, de fomento à cultura, foi garfada em R$ 7 bilhões de 2025 a 2030.
A decisão de enrijecer os controles e fiscalizar o BPC e o Bolsa Família para evitar ou cancelar possíveis irregularidades é uma medida, em princípio, correta, mas, no afã de obter recursos para saciar a insaciável sedc dos rentistas da Faria Lima, os burocratas podem terminar mais rígidos do que exigiria uma medida de combate às irregularidades. Esse combate deve ser feito sempre como medida de defesa do erário público. E não como medida de política econômica. Mas essa rigidez só vale para os pobres? Por que então não se estabeleceu uma medida para fiscalizar seriamente e anular benefícios fiscais a grandes empresas que nunca cumpriram ou que deixaram de cumprir a finalidade dos benefícios fiscais (para o conjunto dos benefícios, o próprio ministério da Fazenda divulgou que montam em R$ 546 bilhões; antes, havia falado em R$ 600 bilhões). Se conseguisse tirar 10% desse total, já reuniria R$ 54,6 bilhões por ano. Sobre isso, o ministro apenas disse que, se houver déficit primário, será vedada a criação, majoração ou prorrogação de benefícios tributários e isso economizaria tão só R$ 12,8 bilhões, Silêncio total sobre a parcela que, com uma fiscalização rígida, poderia ser obtida na redução dessas despesas. Ora, o que tem de ser examinado é se o benefício fiscal está ou não produzindo resultados, tais como geração de emprego, ciência, tecnologia e inovação. Com essa política, não se vai longe no desenvolvimento de CT&I e do país. Não somos contra benefícios tributários, mas tem que ser os adequados ao desenvolvimento nacional.
Consta também do projeto do ministério da Fazenda uma verdadeira conspirata contra a eficiência do Estado brasileiro, ao retirar um bilhão de reais por ano das verbas estabelecidas para a realização de concursos (provimento e criação de cargos), dando um montante de R$ 6 bilhões nos seis anos. Até parece que o Estado brasileiro não foi sucateado pelos governos anteriores e, portanto, carece de reconstrução para ajudar na reconstrução do Brasil.
O ministério da Fazenda promete no pacote que encaminhará, por lei complementar, a lista de exceções ao teto remuneratório nacional, valendo para todos os poderes e todas as esferas. Trata-se de coibir os supersalários (aqueles que ganham acima do teto do servidor público, que é de R$ 44.008,50). Conseguiu também cortar R$ 1 bilhão por ano das chamadas regalias dos militares (como reformar-se muito cedo e repassar a pensão para a filha solteira). Os militares já reagiram e seu comando foi conversar com o presidente Lula, que mandou a equipe econômica reestudar o problema.
Mas por que, em lugar desse varejo, não se atua no atacado? Correlação de forças ou subserviência? Correlação de forças é algo objetivo, mas pode ser alterada pela ação dos dirigentes e das massas populares. E por tomarem decisão firme quando estão no governo.
E, como atuar no atacado? Já dissemos isso em outro artigo: captando uma parcela dos benefícios fiscais que já não são mais necessários (divulgou o ministério da Fazenda a lista dos beneficiários e o montante dos recursos que anualmente deixam de ser recebidos pelo governo: R$ 548 bilhões) e alterando no CMN a meta de inflação (a fim de que o BC não esteja pressionado a atingir meta muito baixa) e seguir batalhando para a queda da Selic. A cada 1% de queda da Selic, se economizaria cerca de R$ 50 bilhões no pagamento de juros. Com isso, não se teria que mexer com tanta gente, da favela à caserna.
O governo também pediu a colaboração do Congresso Nacional no caso das emendas parlamentares, com a possibilidade de bloqueio dessas emendas e a destinação de um determinado percentual para o SUS. O impacto esperado pelo ministério seria de R$ 39,3 bilhões em seis anos, a partir de 2025, uma média anual de R$ 6,5 bilhões. A conferir. Mas acreditamos que o governo deveria aproveitar a decisão do STF para recuperar pelo menos parte do seu controle orçamentário.
A proposta de Haddad implicaria numa economia de cerca de R$ 71 bilhões nos próximos dois anos e de R$ 327 bilhões até 2030, montante que poderia ser suprido pelo corte das despesas financeira e tributária.
Por último, mas não menos importante, o presidente Lula, como assinalamos antes, conteve parte da ânsia do ministro da Fazenda para atender à Faria Lima. Mas vimos que, ainda que um pouco mais suave, mantiveram-se no pacote elementos essenciais do “plano”, a saber: o “sacrifício” maior recaiu sobre os mais pobres, uma espécie de Robin Hood às avessas. Mas, agora, vamos tratar de uma proposta apresentada especificamente pelo presidente Lula: tributar adequadamente os que ganham mais de R$ 50 mil por mês para, assim, isentar as faixas de renda de até R$ 5 mil. Uma taxa de 10% para quem ganha mais de R$ 600 mil por ano. Será considerado o conjunto das rendas. É a primeira medida para compensar a ampliação da isenção do imposto de renda. Esse, sim, um verdadeiro Robin Hood.
Mas o ministro da Fazenda jogou um balde de água fria. Depois de anunciar as duas medidas casadas com pompa e circunstância em seu pronunciamento na TV, esclareceu no dia seguinte, durante a entrevista coletiva, que estas medidas estariam incluídas na reforma do IR, que ficaria para 2025 e funcionaria a partir de 2026. Jogou para as calendas? Não temos a menor garantia de que serão aprovadas ao não serem encaminhadas junto com o pacote. A Anafisco, por sua vez, propõe a tributação de lucros e dividendos em cerca de 5%, o que arrecadaria R$ 51 bilhões por ano. Ou seja, havia várias alternativas à promoção dos cortes.
Nilson Araújo de Souza é pesquisador do GP 1: Desenvolvimento nacional e Socialismo – Economista, Mestre em Economia pela UFRGS, Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM), com pós-Doutorado em Economia pela USP; professor aposentado pela UFMS, professor visitante voluntário do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB, Diretor da Fundação Maurício Grabois e do Instituto Claudio Campos, presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo; autor de vários livros, antigos e ensaios sobre economia brasileira, latino-americana e mundial, destacando-se “Economia brasileira contemporânea – de Getúlio a Lula” e “Economia internacional contemporânea – da depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008”, além de haver organizado vários livros com diversos autores.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.