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    Sustentabilidade

    Agricultores da Amazônia: invisíveis, ameaçados de extinção e ausentes na COP30

    Mais de um milhão de agricultores na Amazônia são responsáveis pela segurança alimentar de 30 milhões de pessoas. Evaristo de Miranda aponta os desafios que esses produtores enfrentam, incluindo insegurança jurídica, falta de políticas públicas e ausência em debates globais

    POR: Evaristo de Miranda

    Alimentos produzidos por pequenos produtores rurais de Brasileia (AC).
    Alimentos produzidos por pequenos produtores rurais de Brasileia (AC). Foto: Marcos Vicentti/Secom Gov Acre

    COP30: Camponeses invisíveis, ameaçados de extinção – Desde o Neolítico, pratica-se agricultura na Amazônia. O cultivo da terra começou ali, com paleoíndios1. Dos agricultores brasileiros, quantos vivem na Amazônia? Quais seus maiores desafios sociais e econômicos? Quem defende seus interesses ou deseja seu desaparecimento? Esses produtores não se assemelham aos do resto do Brasil. Estão ausentes nos fóruns e temas da COP30, em Belém (PA). Sem direitos, eles são uma espécie ameaçada de extinção. E sem eles, a Amazônia passará ainda mais fome.

    Leia também: COP29 e o Brasil – Caminhos para a Liderança Climática na COP30

    São muitas unidades e áreas de produção lato sensu na Amazônia, cuja condição legal é mista (proprietários, arrendatários, assentados, meeiros, ocupantes, extrativistas…), das mais estáveis às mais precárias, em terras públicas e privadas. Nada comparável ao mundo rural em outros biomas. Não cabe simplismo, reducionismo ou narrativa idealista, sem base em dados, nas questões agrícolas, agrárias e rurais da Amazônia.

    A irredutível complexidade do mundo rural amazônico combina: atividades ligadas a territórios (apicultura, pesca, caça…); extrativismos vegetais (palmitos, açaí, castanhas, madeiras, fibras, óleos…); grupos humanos, etnias e comunidades distintas em áreas consolidadas (índios, nipodescendentes, afrodescendentes, colonos, caboclos, sulistas, nordestinos…); mais de meio milhão de famílias em assentamentos agrários (sic!); agricultores com posses precárias em locais de conflito agrário ou tidos como invasores, após a criação ou extensão de áreas indígenas e unidades de conservação sobre suas terras; agricultores periurbanos e produtores capitalizados, responsáveis por áreas entre as mais produtivas e modernas da agropecuária brasileira.

    Quantos agricultores na Amazônia?

    O primeiro dimensionamento preciso e atual desse universo foi realizado pela Embrapa Territorial. Dados do Censo Agropecuário (IBGE, 2017)2, tratados em bases territoriais, identificaram 672.202 estabelecimentos agropecuários no bioma. A coordenada geográfica de cada um, levantada pelo recenseador, foi armazenada. E para cada um, há uma ficha no IBGE.

    Mapa dos estabelecimentos agropecuários no bioma Amazônia. Crédito: Embrapa

    Os dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) de 20213 também foram tratados e 648.957 imóveis rurais mapeados no bioma. Em geral, cada imóvel corresponde a uma matrícula no INCRA. A Embrapa Territorial reuniu os limites geográficos dos polígonos e os dados de cada imóvel rural registrado validamente no CAR na Amazônia.

    Crédito: Embrapa Territorial

    Com esse bigdata, a Embrapa obteve a quantificação dos produtores rurais4 lato sensu na Amazônia ao cruzar coincidências e divergências, por geoprocessamento, e integrar os dados do Censo Agropecuário do IBGE, do Cadastro Ambiental Rural e informações do INCRA5 sobre assentamentos.

    Crédito: Embrapa Territorial

    Existe mais de um milhão de produtores rurais lato sensu no bioma Amazônia. Cada uma dessas unidades está referenciada geograficamente na Embrapa. Pará com 407.341 e Rondônia com 157.705 produtores, reúnem 56,1% da totalidade. Deles, mais de 89% são pequenos, com áreas inferiores a quatro módulos fiscais6.

    Crédito: Embrapa Territorial

    O mundo rural é uma das expressões da soberania nacional na Amazônia. No Acre, ele garantiu novos contornos ao território do país. Hoje, é como se não existisse. Não é conhecido, nem reconhecido por sua história, existência e relevância na produção de alimentos e riqueza para a região.

    Quem alimenta a população da Amazonia?

    Existem 748 cidades nos 551 municípios do bioma. São 30 milhões de habitantes. Quem lhes fornece frutas, leite, hortaliças, café, arroz, feijão, milho, mandioca, carne, ovos e outros alimentos são os agricultores, distribuídos em toda a Amazônia. Não há como trazer de outras regiões. Os custos e a logística são proibitivos. Negar isso, é sabotar a Amazônia.

    Cidades e áreas densamente urbanizadas na Amazônia. Crédito: Embrapa

    Apesar de seu papel estratégico na alimentação da população da Amazônia e não na balança comercial brasileira, os agricultores seguem marginalizados nas políticas públicas. Falar em desenvolvimento rural se tornou delito e, para o ambientalismo, configura crime. O tema está excluído da COP 30.

    Isso explica os maiores desafios do mundo rural: a insegurança jurídica e a ilegalização das atividades rurais pelo Estado. Basta considerar os 2.406 assentamentos de reforma agrária no bioma e a marginalização, quando não criminalização, das 509.907 famílias assentadas. Instaladas há décadas, elas ainda não receberam o título de propriedade. Da mesma forma, sofrem milhares de colonos instalados em áreas designadas pelo Incra, como ao longo da rodovia BR 364 em Rondônia, por exemplo.

    Como um produtor, desse mais de meio milhão de assentados, pode obter um crédito rural sem documentação fundiária? Ou solicitar autorização de desmate a um órgão ambiental, sem título de propriedade? Os produtores rurais da Amazônia têm direito legal de desmatar, seguindo Código Florestal. E não podem exercê-lo, nos termos da lei. Juridicamente, eles não existem. Os desmates anuais dos pequenos agricultores, necessários para viver e sobreviver, são irregulares e não ilegais. São crônicos e não cessarão.

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    O acesso à autorização de desmatamento é negado ao produtor rural na Amazônia. A área ambiental no governo, desde a Constituinte, parece trabalhar pela ilegalização do desmatamento e dos produtores rurais amazônicos. É uma forma de desantropizar a região, expulsar produtores de suas terras e realizar a eugenia ambiental, tão desejada por parte do ambientalismo. E de congelar a economia da região, sonho de muitas ongs e governos estrangeiros, com seus projetos de atraso e retorno ao Neolítico.

    A regularização fundiária de terras públicas na Amazônia degenerou e serve ao avesso do atendimento à função social da propriedade, estimula grilagem e conflitos. E o Presidente vetou artigo capaz de facilitar a regularização em assentamentos. É como dizer ao pobre: primeiro se torne rico, acerte seus passivos ambientais e será regularizado. Deveria ser o contrário.

    Não há esforço na municipalização de autorizações de desmatamentos. Não há desburocratização para desmatar dentro da lei. Não há uma ficha a ser preenchida, orientações ou procedimentos na Internet, como em outros direitos exercidos por um cidadão. Ninguém viu qualquer folheto ou cartilha orientar como obter uma autorização de desmate. Não é assunto da extensão rural. Não há qualquer facilidade para isso. Quem conseguir a proeza da solicitação numa capital amazônica, como acompanhará e fará valer seu direito, ao retornar à sua terra onde não há sequer eletricidade?

    Assentamentos agrários são apenas um exemplo da ilegalização dos desmatamentos. Existem outros. Médios e grandes produtores, com a devida documentação, conseguem solicitar a autorização de desmate às autoridades. Aí, passam meses e anos sem resposta. Só com o protocolo nas mãos e sem autorização para exercer seu direito. No limbo. Sem sim, nem não. Pior. Se a área técnica aprova o desmatamento, a autoridade ambiental não assina. Por medo de ser execrado em público por autorizar desmatar a Amazônia.

    Narcotráfico ou desenvolvimento rural?

    Toda ilegalidade deve ser combatida e não confundida com irregularidade ou negação de legitimidade. O programa Prodes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) indica: são cerca de 30.000 desmatamentos anuais no mundo rural7. Existe mais de um milhão de produtores. Se cada desmate fosse obra de um produtor diferente, ainda assim, menos de 3% deles estariam envolvidos. 97% não participam.

    Apesar dos dados, as acusações ambientalistas e internacionais são contra toda agropecuária e todos agricultores. O epifenômeno do desmatamento não é a marca da agricultura na Amazônia e sim a sua demanda por regularização fundiária, a mãe de todas as batalhas econômicas, sociais e ambientais.

    Os produtores rurais da Amazônia não têm vez, nem voz, nesses debates. E terão ainda menos na COP 30, cuja organização parece ir contra o país. Ali, eles já são considerados uma espécie extinta. Não há plano governamental coordenado para efetivar a regularização fundiária na Amazônia. Nem para promover o desenvolvimento de milhões de pessoas nas áreas rurais.

    Saiba mais sobre a COP30 no Brasil

    Os quase um milhão de pequenos agricultores na Amazônia seguem invisíveis na discussão do futuro da região. São ignorados por movimentos sociais e alienados em organizações partidárias. Na década de 1970, eles eram considerados pelas lideranças como a base da linha revolucionária nacional, a exemplo da Guerrilha do Araguaia. Muitos cultivam o resgate da memória desses mortos e se esquecem dos vivos.

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    O crime organizado é o principal empregador na Amazônia, cuja “mexicanização” já aconteceu. As operações de guerra visam os produtores rurais e não o narcotráfico. Mesmo com a repressão policial e ambientalista, centenas de milhares de agricultores seguirão re-existindo na Amazônia, com sonhos familiares, trabalho e pequenos desmatamentos para suas roças de mandioca, milho, arroz, feijão, café, frutas, pastos e agrofloresta. Cada um por si e Deus, Estado, ongs e partidos contra todos, como diria Macunaíma.

    À queixa do mundo rural sobre a dificuldade de se produzir e a falta de alimentos na Amazônia, há em Brasília quem parece encarnar – em aparência e comportamento -, a advertência da conselheira Yzma, do filme A Nova Onda do Imperador: – Devia ter pensado nisso antes de virar… camponês!

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    Notas:

    1 EVARISTO, Eduardo de Miranda. Quando o Amazonas corria para o Pacífico: uma história desconhecida da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 2007.

    2 Para consultar os resultados definitivos do Censo Agropecuário (IBGE, 2017) clique aqui

    3 Estudos sobre Agricultura e Preservação Ambiental, realizados pela Embrapa Territorial com dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) de 2021, podem ser consultados aqui.

    4 MIRANDA, E. E. de; CARVALHO, C. A. de; MARTINHO, P. R. R.; OSHIRO, O. T. Contribuições do geoprocessamento à compreensão do mundo rural e do desmatamento no bioma Amazônia. Revista Embrapa Territorial, 2020. Disponível aqui.

    5 Acervo Fundiário do Incra pode ser consultado aqui.

    6 Módulo fiscal é um dos Índices Básicos Cadastrais utilizados pelo Incra para fixar por município parâmetros de caracterização e classificação do imóvel rural de acordo com a sua dimensão e disposição regional.

    7 Taxas anuais de desmatamento da floresta amazônica brasileira divulgadas pelo PRODES Amazônia – 1988 a 2024 (km2) disponíveis aqui.

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    Evaristo de Miranda é agrônomo, com mestrado e doutorado em ecologia pela Universidade de Montpellier. Com mais de 1.400 publicações no Brasil e exterior, é autor de 56 livros, como “Tons de Verde – A Sustentabilidade da Agricultura Brasileira” (em português, inglês, árabe e mandarim). Pesquisador da Embrapa de 1980 a 2023, coordenou mais de 40 projetos e dirigiu três centros nacionais de pesquisa. Membro da Academia Nacional de Agricultura, foi eleito Agrônomo do Ano em 2021.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

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