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    Internacional

    Programas do Partido Comunista contam a história de um mundo em transição

    No próximo dia 04/08, o PCdoB debaterá o Mundo em Transição no contexto de seu 16º Congresso. Artigo regata documentos do partido que analisam queda do Muro, ascensão da China, BRICS e o desafio do Brasil num cenário geopolítico multipolar.

    POR: Theófilo Rodrigues

    11 min de leitura

    Movimento de turistas no Bund, ponto turístico às margens do rio Huangpu, em Xangai, China. Ao fundo, o distrito de Pudong e a icônica Torre Pérola Oriental. Crédito: Xinhua / Xin Mengchen
    Movimento de turistas no Bund, ponto turístico às margens do rio Huangpu, em Xangai, China. Ao fundo, o distrito de Pudong e a icônica Torre Pérola Oriental. Crédito: Xinhua / Xin Mengchen

    Foi o poeta comunista Mário Lago quem observou certa vez que “o povo escreve a história nas paredes”. Referia-se aos muros pintados com giz ou pincel que, nos anos 1940, denunciavam a opressão e a injustiça. “E quando o povo sofrer, / enquanto tiver fome e tiver sede, / enquanto não tiver direito e liberdade, / os muros amanhecerão contando / histórias”, concluía.

    O que se lê nos muros das cidades é uma narrativa simplória apenas na aparência. Em essência, trata-se — muitas vezes — de uma sofisticada análise de conjuntura, distinta daquela encontrada nos tratados de teoria política. Essa tradição remonta à literatura política clássica, que considera ator, tempo histórico e processos de longa duração na interpretação da conjuntura. É a linhagem do Maquiavel dos Discorsi, do Tocqueville de O Antigo Regime e dos Souvenirs, do Marx do 18 Brumário, do Lênin do Programa Agrário, ou do Gramsci dos Cadernos do Cárcere.

    Maquiavel buscava a verità effettuale della cosa, a “verdade efetiva dos fatos”; Lênin insistia na “análise concreta da realidade concreta”; e, em nossa versão brasileira, Luiz Werneck Vianna diria: “o nome do pau é pau, o nome da pedra é pedra”.

    Outro lugar onde se pode ler a história de nosso povo — e as transformações de nosso tempo — é nos programas e resoluções do Partido Comunista. Esses documentos históricos registram, a partir das lentes da classe trabalhadora, as dinâmicas de um mundo em transição, considerando os conflitos entre atores e atrizes no drama da política, no palco da conjuntura.

    Leia também: A centenária evolução programática do PCdoB

    É nesses documentos que podemos ver como os comunistas analisaram a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética; como os EUA buscaram consolidar, a partir da década de 1990, uma hegemonia unipolar; como a crise econômica internacional de 2008 marcou o início do declínio relativo dos EUA; como a ascensão da China impulsionou a transição para um mundo multipolar; e como a articulação do BRICS e do Sul Global representa a principal novidade geopolítica de nosso tempo.

    Mundo em transição é tema de mesa do Ciclo de Debates: Os desafios brasileiro, nesta segunda-feira (4), no Rio de Janeiro. Saiba mais sobre o evento aqui. Debate terá transmissão ao vivo, veja aqui:

     

    Vejamos abaixo alguns desses documentos que contam a história de um mundo em transição:

    11º Congresso (2005)

    “O início do século XXI é marcado pela mais abrangente e avassaladora ofensiva do imperialismo – em especial o norte-americano – contra os povos do mundo e as nações soberanas para manter a hegemonia unipolar dos Estados Unidos da América (EUA).”

    Era assim que a resolução aprovada no 11º Congresso do PCdoB, em 2005, interpretava aquela conjuntura.

    Após os atentados de setembro de 2001, os EUA deflagraram as guerras de agressão contra o Afeganistão e o Iraque, ação que ficou conhecida como “Doutrina Bush”. Segundo a resolução, era o “início do exercício unilateral do hegemonismo norte-americano, os Estados Unidos exibem um poder praticamente ilimitado, com superioridade militar e tecnológica praticamente inquestionável”.

    Não obstante a “hegemonia unipolar dos EUA”, aquele documento já observava o crescimento da China. “Hoje em dia, o mundo vem sendo surpreendido pela ascensão vertiginosa da China socialista à condição de potência econômica, com caráter acentuadamente distinto das potências econômicas imperialistas. Trata-se de um dos acontecimentos mais relevantes da presente época, que certamente implicará, em médio e longo prazos, importantes mudanças geopolíticas.” Com efeito, essas mudanças geopolíticas vieram.

    Acompanhe: Ciclo de debates para o 16º Congresso do PCdoB discute desafios brasileiros num mundo em transição

    12º Congresso (2009)

    Em 2009, o 12º. Congresso aprovou o “Programa Socialista para o Brasil”. Esse novo documento apontou para uma inédita virada no quadro internacional. Se até o Congresso anterior o que se via era a “hegemonia unipolar dos EUA”, agora era a multipolaridade que começava a mostrar sua face.  O novo “Programa Socialista para o Brasil” dizia o seguinte:

    “Está em curso uma transição do quadro de dominação unipolar que marcou o imediato pós-Guerra Fria, com a intensificação de tendências à multipolarização e à instabilidade no sistema internacional. Transição cuja essência é marcada pelo declínio relativo e progressivo dos EUA e pela rápida ascensão da China socialista.”

    O pano de fundo para essa leitura era a grande crise econômica internacional que havia atingido em cheio os EUA no ano anterior.

    13º Congresso (2013)

    Em 2013, o 13º. Congresso reafirmou a leitura que havia sido feita em 2009:

    “Está em curso uma prolongada transição, caracterizada por alterações nas relações de poder no planeta. Há uma nova correlação de forças em formação, e o mundo está passando por importantes transformações geopolíticas, cuja marca principal é a ascensão da China e o declínio histórico dos Estados Unidos. A tendência à multipolaridade manifesta-se em conjunto com o acirramento de contradições, o agravamento de conflitos e a intensificação da resistência e da luta dos povos”. […] “Pode estar começando a fase final de um ciclo de cinco séculos de dominação da Europa Ocidental e dos EUA”.

    O declínio dos EUA, a ascensão da China e a transição para um mundo multipolar eram uma tendência cada vez mais forte. A novidade, no entanto, ficou por conta do surgimento dos BRICS, que aparece pela primeira vez em um documento do partido. “Aumentam as contradições entre os países imperialistas, tendo os EUA no centro, e os países em desenvolvimento da Ásia, da África e da América Latina, especialmente os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que têm tomado iniciativas unitárias contra-hegemônicas em vários terrenos”, diz o 13º. Congresso.

    Leia também: Brasil, BRICS+ e as rotas que irritam Trump

    14º Congresso (2017)

    Em 2017, no 14º. Congresso, o B já aparece com maior ênfase como um contraponto ao declínio relativo dos EUA:

    “A principal característica da conturbada transição em curso é o declínio relativo da superpotência estadunidense e a emergência de novos polos de poder econômico, político, diplomático e militar. O fenômeno mais representativo desta tendência é o protagonismo da China socialista como potência, e a recuperação do poder nacional da Rússia, ambas atuando em parceria estratégica, e a existência do BRICS.”

    Naquele documento, o BRICS já aparece como o demandante de “uma nova arquitetura financeira e pela reforma do sistema monetário internacional”.

    A novidade é a menção ao projeto chinês de Nova Rota da Seda e o seu papel na reorganização geopolítica do mundo:

    “A China está no centro de uma mudança na arquitetura financeira mundial, criando alternativas à hegemonia dos Estados Unidos estruturada no sistema Bretton Woods (dólar, Banco Mundial e FMI). A nação asiática tem sido ainda a promotora do maior projeto de integração de infraestrutura (energia, comunicação e transportes) de que se tem notícia: a Nova Rota da Seda. Tendo o Estado como indutor central do desenvolvimento e propulsor da economia, a China cumpre papel econômico e geopolítico decisivo na atual quadra histórica.”

    15º Congresso (2021)

    Como podemos ver abaixo, a ênfase do 15º. Congresso, em 2021, foi a preocupação com a crescente tensão geopolítica entre a China e os EUA:

    “As principais características da conturbada transição em curso são o declínio relativo da superpotência estadunidense e a emergência de novos polos de poder econômico, político, diplomático e militar, oriundos sobretudo das antigas semiperiferia e periferia do sistema internacional. O fenômeno mais representativo dessa tendência é o protagonismo da China socialista como potência, e a recuperação do poder nacional da Rússia”. […]  “A crescente disputa entre os Estados Unidos e a China configura a principal tensão geopolítica no mundo, em acelerado agravamento. O objetivo estratégico central dos Estados Unidos é conter a todo custo a China e recompor o dinamismo da sua economia para reverter o declínio relativo da sua hegemonia no sistema internacional. O novo governo Biden deflagrou intensa campanha midiática, diplomática e militar contra aquele país, tentando responder ao que os Estados Unidos consideram ameaças a seu papel de potência hegemônica: enfrentar a ascensão chinesa, conter militarmente a Rússia e fazer frente à aliança Sino-Russa.”

    Curiosamente, o BRICS não apareceu naquela resolução de 2021. A valorização foi direcionada para “o protagonismo da China socialista como potência”.

    16º Congresso (2025)

    Finalmente, o Projeto de Resolução Política do 16º. Congresso parece corrigir aquela lacuna do Congresso anterior. O BRICS aparece com maior destaque nesse documento:

    “Com recursos naturais estratégicos (petróleo, terras raras etc.), produção agrícola, tecnológica e militar, o BRICS ganha relevância. Um conjunto de iniciativas tem lhe dado consistência crescente. O grupo estuda medidas para criar um sistema financeiro independente que funcionará como uma alternativa à rede SWIFT, dominada pelo Ocidente. O Banco do BRICS, formalmente conhecido como Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, em inglês New Development Bank), instituição financeira multilateral, tem adotado incentivo ao comércio em moedas locais, impulsionando a desdolarização; e a cooperação tecnológica e energética, que impulsiona a transição à multipolaridade.”

    Mais do que isso, a novidade está para a inclusão da expressão Sul Global pela primeira vez em uma resolução do partido. Essa expressão não aparece de forma lateral, mas em diversas ocasiões do documento. “Os países do Sul Global, entendido como denominação geopolítica que agrupa países capitalistas dependentes e Estados que constroem o socialismo, resistem aos ditames imperialistas e se articulam em prol de seu desenvolvimento soberano”, afirma o projeto de resolução.

    Em outra passagem, lemos que “as forças comunistas e revolucionárias, nos países do Sul Global, participam com amplas alianças da luta anti-imperialista, por projetos nacionais soberanos e democráticos, como caminho de acumulação de forças para a conquista do poder político e a transição ao socialismo”.

    O que esperar do futuro próximo?

    Diante do declínio relativo da hegemonia dos Estados Unidos, da ascensão da China e da crescente reorganização geopolítica multipolar, uma pergunta central se impõe aos comunistas — ainda sem resposta definitiva: o Estado brasileiro deve aproveitar as oportunidades de um mundo multipolar mantendo uma posição de independência em relação aos grandes polos em disputa, ou deve assumir de forma mais clara seu lugar no Sul Global, ao lado do BRICS e da China, com a entrada imediata na Nova Rota da Seda?

    A resposta a essa questão estratégica exige análise concreta da realidade concreta, princípio fundamental do marxismo-leninismo. Caberá aos próximos Congressos do Partido, à luz da dinâmica internacional e das condições objetivas internas, apontar com mais nitidez o caminho a seguir.

    Serviço

    Ciclo de Debates: os desafios brasileiros num mundo em transição

    Mesa: Mundo em transição – Rio de Janeiro (RJ)
    04 de agosto (segunda-feira), 18h
    Inscreva-se gratuitamente
    Local: SEAERJ – Rua do Russel, 01, Glória – Rio de Janeiro – Rio de Janeiro (RJ)
    Coordenação: Theófilo Rodrigues / Conceição Cassano
    Participantes: Ana Penido (UFRJ), Elias Jabbour (IPP e UERJ), Luis Manuel Rebelo Fernandes (MCTI e PUC-Rio) – veja o perfil
    Mediação: Conceição Cassano

    Transmissão ao vivo pela TV Grabois.


    Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM. É coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.