Democracia em abalo: julgamentos e luta de classes (Parte 2)
A experiência brasileira e o desafio do desenvolvimento
Depois de examinar, na Parte 1, como julgamentos históricos expressaram a luta de classes e redefiniram regimes políticos, o autor volta-se agora à experiência brasileira. Nesta etapa, analisa o fim da tradição da anistia e discute o desafio de vincular a consolidação democrática a um projeto nacional de desenvolvimento.
O Brasil, a tradição da anistia e a instabilidade democrática
Se em diversos contextos históricos os julgamentos se converteram em atos fundadores do novo, no Brasil a tendência dominante foi a inversa: a política da anistia. Desde o Império até a Nova República, o país consolidou uma cultura de conciliação que evitava punir os responsáveis por rupturas institucionais. Sérgio Buarque de Holanda (1995 [1936]) já identificava esse traço como parte da cordialidade brasileira: os conflitos eram dissolvidos na lógica do perdão e da acomodação, e não do enfrentamento. Essa disposição, embora tenha reduzido o risco de guerras civis prolongadas, deixou também um legado de impunidade que fragilizou as instituições democráticas.
Segundo a crítica materialista, essa política de conciliação expressa menos uma característica cultural e mais uma estratégia recorrente das classes dominantes brasileiras para preservar seus interesses. Como destacou Florestan Fernandes (1989), a chamada “revolução burguesa no Brasil” foi inconclusa justamente porque se realizou por meio de pactos de cúpula, nos quais a elite incorporava adversários sem alterar a estrutura de poder. A anistia funcionou como mecanismo de reprodução da ordem capitalista dependente, garantindo a impunidade de agentes estatais e frações dominantes responsáveis por rupturas institucionais. Em vez de instaurar novos marcos democráticos, a conciliação perpetuava o controle oligárquico e limitava o avanço das classes trabalhadoras.
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Na República Velha, incidentes de fraudes eleitorais e levantes armados muitas vezes terminavam em negociações que poupavam os derrotados de punições severas. No Estado Novo, Vargas concedeu anistias parciais como forma de absorver adversários ao regime. Mas foi na transição da ditadura militar que a anistia ganhou contornos decisivos. A Lei de Anistia de 1979, concebida sob pressão social pela libertação de presos políticos e retorno de exilados, estendeu o mesmo perdão a militares e agentes do Estado responsáveis por tortura, assassinatos e desaparecimentos. Como nota Paulo Sérgio Pinheiro (1999), a lei representou um pacto ambíguo: permitiu a redemocratização, mas blindou os perpetradores de crimes de Estado.
Veja na TV Grabois: Anistia de 1979 — o que era justiça não pode virar narrativa:
Essa lógica de “esquecimento institucionalizado” — para usar a expressão de Florestan Fernandes — reforçou a percepção de que golpes e atentados à ordem poderiam ser absorvidos sem consequências reais. A anistia funcionava como válvula de escape para preservar a estabilidade, mas, paradoxalmente, mantinha no horizonte a sombra de novas rupturas. O Brasil tornou-se um país em que a democracia era reconquistada, mas nunca plenamente protegida.
O 8 de janeiro de 2023 representou um ponto de inflexão. Ao condenar os responsáveis pela tentativa de golpe, o Supremo Tribunal Federal (STF) rompeu com a tradição da impunidade. Diferentemente de outros momentos, não se recorreu à lógica conciliatória de “virar a página”. A mensagem institucional foi clara: em democracia, não há espaço para anistia a golpistas. Como observa Rosanvallon (2008), a vitalidade democrática depende de mecanismos de vigilância e sanção contra aqueles que a corroem por dentro. No caso brasileiro, o julgamento tornou-se gesto civilizatório e simbólico: democracia não significa indulgência ilimitada, mas disposição de defender suas próprias bases normativas.
Esse gesto, interpretado pela tradição marxista, não deve ser lido apenas como defesa abstrata da democracia, mas como movimento em que o Estado redefiniu os limites aceitáveis da luta de classes. Ao punir os golpistas, o STF protegeu a estabilidade institucional necessária à reprodução do capitalismo brasileiro, preservando a governabilidade em torno dos interesses do bloco no poder. Rompe-se, assim, com a tradição da anistia, mas sem questionar as bases estruturais de desigualdade e exploração que alimentam crises recorrentes do regime democrático.
Teoricamente, essa instabilidade não deve ser vista como defeito, mas como característica constitutiva da democracia. Tocqueville (2005 [1835]) já percebia que a democracia americana era atravessada por permanente agitação social e política. Longe de ser fragilidade, essa vitalidade era a fonte da resiliência democrática, pois assegurava constante renovação do pacto coletivo. Schumpeter (1961 [1942]), por sua vez, enfatizou o caráter competitivo do regime: a democracia não garante harmonia, mas institucionaliza a luta pelo poder, transformando a cizânia em método legítimo de escolha de lideranças.
Desse modo, a crítica de inspiração marxista acrescenta outra chave: a democracia burguesa nunca foi neutra. Ela é estruturada pela luta de classes, onde a igualdade formal convive com desigualdades materiais profundas. Marx (2012 [1850]) advertia que as instituições democráticas funcionam como forma de mediar, mas também de reproduzir, as contradições sociais. Lênin (1986 [1917]) insistiu que, mesmo em sua forma mais avançada, a democracia parlamentar não elimina a dominação de classe, ainda que abra brechas para a luta política dos trabalhadores. A democracia, não é ponto de chegada, mas terreno de disputa, onde a instabilidade reflete as contradições internas do capitalismo.
Essa dupla leitura — liberal e marxista — ajuda a compreender por que a democracia é simultaneamente vulnerável a abalos e capaz de se reinventar. Sua força não está na ausência de rupturas, mas na capacidade de metabolizá-las, transformando a crise em ocasião de reafirmação de princípios. Em vez de temer o choque, a democracia vive dele; e é por isso que, mesmo quando sacudida por golpes ou tentativas de ruptura, pode encontrar nos próprios julgamentos e condenações a fonte de sua regeneração.
A democracia e seus julgamentos
A democracia não é tranquila nem linear: é feita de rupturas, quedas e ressurgimentos. Do Senado romano ao Supremo Tribunal Federal, de Atenas a Brasília, sempre esteve em jogo o mesmo dilema — manter ou transformar a ordem vigente. Essa trajetória mostra que julgamentos, em diferentes épocas e lugares, ultrapassaram a dimensão jurídica e se converteram em marcos fundadores, capazes de redefinir regimes e estabelecer novos pactos sociais. Em Roma, marcaram a passagem da República ao Império; na França, a transição do radicalismo jacobino ao Termidor; na Grécia, a afirmação da pólis em suas contradições; em Nuremberg, a reorganização da ordem internacional; e nos Estados Unidos, os limites da democracia pós-Guerra Civil. O julgamento de 8 de janeiro de 2023 inscreve-se nessa mesma linhagem e pode ser visto como divisor de águas: não se trata apenas de punir indivíduos, mas de afirmar que a democracia brasileira atingiu um novo patamar de maturidade institucional.
Esse julgamento inscreve o país no rol das democracias que aprenderam, a duras penas, que a tolerância ilimitada com os inimigos do regime significa abrir caminho para a sua destruição. Como lembram Levitsky e Ziblatt (2018), as democracias não morrem apenas por golpes clássicos, mas também por erosão gradual, alimentada pela complacência institucional. O Brasil, ao condenar os golpistas, mostra que não trilhará esse caminho. Do mesmo modo, O’Donnell (1994) advertia que democracias frágeis tendem a se converter em regimes “delegativos”, nos quais o poder se concentra na figura de líderes eleitos sem freios institucionais. O julgamento de 8 de janeiro reafirma que a democracia brasileira busca se consolidar como normativa: nela, a lei se sobrepõe à vontade pessoal.
Todavia, é preciso reconhecer que tais julgamentos, ainda que afirmem a democracia contra seus inimigos imediatos, cumprem também a função de reproduzir a ordem de classe vigente. Como advertiu Marx, a forma política nunca se separa das bases materiais que a sustentam. Cada momento de “renovação democrática” é também um esforço de recomposição da hegemonia burguesa, assegurando a continuidade do capitalismo e dispositivando a disciplina da luta de classes, delimitando até onde o conflito pode avançar sem romper os marcos do Estado burguês. Mas é igualmente verdade que essa recomposição se dá em contextos nacionais específicos, nos quais as condições históricas e sociais moldam os limites e as possibilidades do regime democrático.
Dessa maneira, no Brasil, a ruptura com a tradição das anistias conciliatórias não apenas protege a ordem institucional, mas também expressa uma tentativa de redefinir, em chave nacional, os contornos da democracia diante de sua própria história de conciliações e impunidade. O desafio histórico, portanto, permanece aberto: transformar os abalos democráticos não apenas em reafirmação institucional, mas em oportunidade de avançar rumo a uma democracia substantiva, enraizada na realidade nacional e capaz de superar a dominação de classe.
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Nesse ponto, coloca-se a questão decisiva: como transformar tais abalos em oportunidade histórica? Julgar e punir golpistas é condição necessária, mas insuficiente. Para que a democracia brasileira se torne substantiva, precisa enfrentar suas bases materiais de desigualdade e dependência. É nesse horizonte que se inscreve o debate sobre a relação entre democracia e desenvolvimento nacional, tema da próxima seção.
Democracia e desenvolvimento nacional
A democracia brasileira não pode ser compreendida apenas em termos institucionais. Sua vitalidade depende de condições materiais capazes de sustentar a soberania e reduzir as desigualdades estruturais. Sem um projeto nacional de desenvolvimento, a democracia permanece vulnerável, exposta a ciclos de instabilidade e rupturas.
Ignácio Rangel (1985) já advertia que a democracia no Brasil só se consolidaria quando articulada ao projetamento, isto é, à capacidade do Estado de orientar estrategicamente o desenvolvimento. Sua noção de dualidade básica — a tensão entre setores modernos e arcaicos — mostrava que o atraso não era um resíduo, mas parte constitutiva da dinâmica capitalista dependente. Superar essa dualidade exige um Estado ativo, capaz de organizar investimentos, planejar setores estratégicos e integrar as massas populares no processo político.
Celso Furtado (2007 [1959]) reforçou que não há democracia sólida em um país submetido à dependência externa. Para ele, a tarefa histórica do Brasil era romper o círculo vicioso do subdesenvolvimento, que não se resolve apenas com crescimento econômico, mas com mudanças estruturais que ampliem a soberania e a cidadania substantiva. Assim, democracia e desenvolvimento são dimensões indissociáveis: a fragilidade de uma compromete a existência da outra.
Essa perspectiva encontra ressonância em reflexões contemporâneas. Jabbour e Gabrielli (2021) destacam que a experiência chinesa demonstra como o planejamento estatal de longo prazo pode assegurar estabilidade política, reduzir desigualdades e projetar soberania nacional. Evidentemente, o Brasil não deve copiar modelos externos, mas aprender que nenhuma democracia se sustenta sem uma base material de desenvolvimento capaz de responder às demandas populares.
Octavio Ianni (1991) lembrava que a democracia brasileira sempre foi marcada pela dependência, limitada pela posição subordinada do país na divisão internacional do trabalho. Já Carlos Nelson Coutinho (1984) insistia que a democracia deve ser entendida como valor universal, mas só se enraíza quando conquista efetividade social e política. Esses aportes reforçam que, sem projeto nacional, a democracia brasileira corre o risco de permanecer formal, incapaz de transformar-se em experiência substantiva.
Portanto, se os julgamentos recentes indicam uma ruptura com a tradição da anistia, o passo seguinte é mais ambicioso: vincular a defesa das instituições a um horizonte de transformação material. Apenas um plano nacional de desenvolvimento — que combine soberania, inclusão social e planejamento estratégico — pode garantir que a democracia brasileira não seja apenas resiliência diante de crises, mas projeto histórico de emancipação.
Conclusão
A trajetória da democracia no Brasil revela um paradoxo: enquanto outras sociedades transformaram julgamentos em momentos fundadores de novas ordens políticas, aqui prevaleceu a lógica da conciliação e da anistia. O julgamento de 8 de janeiro de 2023 representou uma inflexão, rompendo com o esquecimento institucionalizado e afirmando que não há espaço para golpistas. No entanto, ainda que esse gesto tenha reafirmado as instituições, ele também cumpriu a função de recompor a hegemonia burguesa, sem alterar as bases materiais da desigualdade.
Dessa forma, os abalos democráticos, longe de sinalizarem apenas fragilidade, devem ser compreendidos como ocasiões para repensar o futuro político do país. A democracia brasileira não se consolidará apenas por meio de respostas institucionais às crises: exige enraizamento social e um horizonte de desenvolvimento que supere a dependência histórica e a desigualdade estrutural.
Epílogo: Democracia substantiva como projeto histórico
Este díptico sobre a democracia em abalo mostra que o destino do regime político não se decide apenas em parlamentos ou tribunais, mas também no campo da economia e da soberania nacional. O desafio brasileiro não é apenas julgar seus inimigos, mas construir as condições para que a democracia floresça como experiência de transformação social.
A tarefa histórica é articular instituições sólidas com um plano nacional de desenvolvimento que combine soberania, planejamento democrático e inclusão popular. Sem isso, a democracia corre o risco de permanecer formal, presa ao jogo das elites e vulnerável a novas rupturas. Com isso, ao contrário, pode tornar-se substantiva: capaz de reduzir desigualdades, ampliar direitos e projetar o país como sujeito autônomo no cenário mundial.
A democracia brasileira, portanto, não é um ponto de chegada, mas um projeto em construção. Seu futuro depende de nossa capacidade coletiva de unir justiça institucional e desenvolvimento nacional, abrindo caminho para uma forma política verdadeiramente enraizada na realidade do país e capaz de realizar sua promessa universal de igualdade e liberdade.
Leia a Parte 1:
Democracia em abalo: a relação histórica entre julgamentos e luta de classes
Roberto César Cunha é geógrafo (UFMA) e pós-doutor em Geografia Econômica (UFSC). Pesquisador científico e professor universitário, possui cerca de 20 anos de dedicação acadêmica às temáticas do agronegócio, da geografia econômica e do desenvolvimento econômico do Brasil e de suas regiões. É autor de mais de 50 trabalhos científicos publicados, entre artigos nacionais e internacionais, além de capítulos de livros sobre esses assuntos. Também é autor do livro O Ouro do Cerrado – Origem e Desenvolvimento da Soja no Maranhão. E-mail: [email protected]
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.
Referências
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