Os industriais brasileiros mostram-se incomodados com a concorrência dos produtos da China há tempos, mas a recente manifestação de Benjamin Steinbruch, dono da CSN, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, ex-controlador da Vale e herdeiro do Grupo Vicunha, sugere que a preocupação mudou de patamar.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 22 de agosto, apela ao governo para restringir os investimentos chineses em setores estratégicos – nomeadamente, em reservas minerais e terras. Segundo Steinbruch, seu grupo, encar-regado da execução (muito atrasada) da estrada de ferro Transnordestina, quis comprar terras para plantar grãos no trajeto da ferrovia e encontrou grandes propriedades tocadas por chineses no interior do Piauí e de Pernambuco. Teme que a China compre reservas de minério no Brasil e, sendo o principal cliente do setor, quebre os competidores ao fixar o preço que lhe convém. E reclama que a concorrência dos chineses é desleal, porque possuem apoio maciço de seu governo: “É o Estado, não a iniciativa privada”, cita o jornal. É provável que fale não só em seu nome, mas também no de outros industriais – e a preocupação não é de todo descabida.

O governo brasileiro estava disposto a atender parcialmente à queixa: no dia seguinte, o presidente Lula aprovou um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que esperava por uma decisão há dois anos, devido ao receio do governo de afugentar investidores em tempo de crise mundial. Com isso, aprovou limitações à compra de terras por estrangeiros, que ficarão limitadas a 50 módulos de exploração indefinida (250 a 5 mil hectares, dependendo da região) e não poderão ocupar mais que 25% da área de um dado município. Reverteu-se decisão de FHC, que, em 1998, com base em parecer da mesma AGU e a justificativa de atrair investimentos externos, liberou totalmente a compra de terras por estrangeiros, sujeita a restrições desde 1971.

Naquela mesma época, estavam sendo liberados ou facilitados os investimentos estrangeiros em mineração, petróleo, infraestrutura e indústrias estratégicas, como parte da panaceia neoliberal então na moda. Os investimentos seriam feitos por países que estão entre os principais importadores dos insumos que produzimos – embora então se pensasse mais nos EUA e na União Europeia – ou nossos principais concorrentes, como o Canadá. Também se combinava uma abertura comercial quase irrestrita com a supervalorização do real, abrindo caminho à perda de competitividade e inundação de produtos importados, já então chineses em boa parte. Mas a mídia se mostrava mais eufórica que preocupada. Os trabalhadores das ex-estatais e os empresários nacionais que se queixavam eram vistos como dinossauros condenados à extinção por incapacidade de se adaptar a uma evolução inevitável, determinada pela ordem natural das coisas e não por uma opção política. Como nos anos 30, voltou-se a afirmar o liberalismo dogmático à maneira de Eugênio Gudin.

As coisas mudaram, provavelmente, porque é mais difícil a empresários e banqueiros brasileiros se associar lucrativamente aos chineses que aos estadunidenses e europeus, tanto por falta de familiaridade quanto pela presença mais direta e visível do Estado nos empreendimentos chineses, mesmo privados. É uma maneira curiosa de adquirir consciência nacional pelas vias tortas, por parte de uma elite que sempre se identificou mais com seus supostos iguais do Hemisfério Norte do que com seu próprio povo. Mas não deixa de ser uma oportunidade para discutir e afirmar estratégias de planejamento e defesa de interesses nacionais, pois não dá para aceitar o capital de olhos azuis e rejeitar o de olhos puxados.

O papel do Estado chinês não serve de pretexto. É preciso aceitar como fato da vida que a versão liberal anglo-saxônica é apenas uma das variedades do capitalismo e que mesmo essa depende de forte sustentação governamental na forma de subsídios e programas governamentais, ainda que menos visíveis, e de obediência a uma estratégia nacional, ainda que menos dirigida. As siderúrgicas e montadoras dos EUA, bem como grande parte de sua agricultura, não existiriam sem proteção e apoio ativo de Tio Sam, que garante os investimentos de suas transnacionais no exterior com o poder de seus porta-aviões. E estas – e até seus clientes e parceiros – têm de se conformar com orientações e restrições do Departamento de Estado, como é mais notório no que se refere a negócios com Cuba, Irã e Venezuela.

É outro incontornável fato da vida que a China será a grande potência industrial de boa parte do século XXI, assim como os Estados Unidos o foram na maior parte do século XX e o Reino Unido no século XIX. Se o crescimento de sua economia e a presença no comércio exterior do Brasil prejudicaram alguns setores, beneficiaram outros – e ao menos nestes anos de crise profunda do capitalismo europeu e norte-americano e do ponto de vista da grande maioria dos trabalhadores brasileiros o saldo pareceu positivo.

Foi em grande parte graças ao mercado chinês que o tsunami de Wall Street bateu como mera marolinha na Avenida Paulista. Segundo a economista Maria da Conceição Tavares, o crescimento asiático deve continuar a blindar o Brasil da crise mundial: “Não há nenhuma armadilha no modelo, porque o País não está parado, dependente de exportações primárias, como é o caso da Venezuela. Estamos aproveitando um ciclo de longo prazo de alta nos produtos. A China está obrigada a crescer rápido ainda por muitos anos e não vai parar de crescer pelo menos nas próximas três décadas”. Observa ainda que a relação do Brasil com a China é mais favorável que com os EUA, visto que ela não é um concorrente em matérias-primas.

É bom ser cauteloso com previsões tão peremptórias: nos anos 70 e 80, também se acreditava que o Japão estava obrigado a crescer por décadas. Mais cedo ou mais tarde, a China vai desacelerar, à medida que seu crescimento depender cada vez mais do consumo interno que do mercado externo, mais do aumento de produtividade que da expansão quantitativa, mais da inovação própria que da assimilação das estrangeiras. Essa mudança de qualidade deve ser acompanhada de turbulências – a inquietação trabalhista nas indústrias chinesas já é bem visível – e não se pode garantir, a priori, que Pequim saberá administrá-las sem crises imprevistas. Seria arriscado apostar tudo na continuidade de seu crescimento e não é realmente necessário.

De janeiro a julho, as vendas de manufaturados brasileiros para a América Latina e o Caribe cresceram 37,3% em relação ao ano anterior, apesar da concorrência chinesa. As exportações de peças e veí-culos para a União Europeia cresceram 17,8%, apesar da má conjuntura econômica da região. São principalmente veí-culos e eletroeletrônicos de transnacionais que usam o Brasil como plataforma de exportação e aviões e peças da Embrae-r, mas mostram que o agronegócio não é o nosso destino inevitável. O crescimento da chamada classe C e a melhora de seu poder aquisitivo nos últimos anos estimulam empresas nacionais a surgir e crescer para atender o mercado popular interno e lhes dão escala para desafiar os chineses ao menos nos países vizinhos, dados a maior proximidade geográfica e cultural e os acordos comerciais dentro da Unasul. A China não poderá continuar a concorrer em toda a gama de produtos, até porque os salários e benefícios estão crescendo e obrigando a deslocar sua produção para artigos de maior valor agregado.

Ao contrário da Inglaterra do século XIX ou dos EUA do século XX, a China de hoje não está em um patamar qualitativamente muito superior ao do Brasil em desenvolvimento tecnológico e industrial. Por opção estratégica que o Brasil já tentou, mas abandonou prematuramente na era Collor-FHC, os chineses têm uma indústria de bens de capital mais completa e independente, e um sistema mais amplo de apoio estatal e de proteção à indústria nacional. Têm também investimentos maiores e mais consistentes em infraestrutura, educação e pesquisa, mas isso é um avanço relativamente recente.

Nada que o Brasil não tenha condições de emular, se o fizer de maneira consciente e continuada. Os dois países são comparáveis em desenvolvimento geral e problemas sociais, e o Brasil tem algumas vantagens, como maior abundância relativa de recursos naturais (água e energia, para começar), mais unidade nacional e cultural e um sistema de saúde e previdência mais abrangente, por longe que esteja do ideal. Há nisso um lado negativo, que é o desestímulo à poupança interna popular, mas também um fator de estabilidade social – e econômica, na medida em que ajuda a garantir a sustentação do mercado interno mesmo em tempos difíceis.

Não há como disputar com a China em economias de escala: o tamanho da p-opulação economicamente ativa e do mercado de consumo é insuperável. Sendo as outras coisas iguais, o Brasil dificilmente conseguiria manter lucrativamente uma indústria tão diversificada e verticalizada quanto a China, assim como é difícil ao Chile ser competitivo em tantos setores quanto o Brasil, ou a Coreia do Sul em tantos quanto o Japão. Tendemos a ser um pouco menos industrialmente autossuficientes e nos concentrar em menos setores. Por outro lado, a indústria chinesa, por sua enorme dimensão, necessita muito mais do exterior para conseguir insumos e clientes. Ambos têm de minimizar sua dependência externa e a solução, nos dois casos, está em ofensivas diplomáticas para diversificar e garantir fornecedores e mercados.

Hoje, os EUA têm 19% da produção industrial mundial, a China 15,6% e o Japão, 15,4%. A ordem deve mudar e a China superar os EUA em mais alguns anos, mas nada indica que ela, ou qualquer outro paí-s, chegará a representar metade ou mais das manufaturas mundiais, como chegaram a ser os EUA e a Inglaterra em seus respectivos auges. Ao longo deste século, nenhuma nação será economicamente “dona do mundo”: haverá espaço para manobra e o Brasil estará mais próximo da igualdade com as grandes potências do que jamais esteve em sua história. Já em 2011, deverá ser o sétimo PIB do mundo (superando a Itália, depois da Espanha e Canadá) e em 2014, o quinto (ultrapassando Reino Unido e França), segundo The Economist.

Apesar da parcial complementaridade entre China e Brasil, a simbiose não convém a nenhum deles. Para um pequeno país africano, talvez não haja alternativa a médio prazo a especializar-se em produtos agrícolas e minerais e deixar os chineses investir à vontade e o controlar grande parte de sua economia, mas o Brasil tem como controlar quanto, onde e como o capital chinês (ou de outras potências) é aplicado em sua economia, garantir que sirva a seus interesses pelo menos tanto quanto aos dos investidores estrangeiros e evitar pôr todos os ovos na mesma cesta.

O Brasil não tem como deixar de ser um grande exportador de produtos agrícolas e minerais ou, de preferência, de seus derivados mais ou menos elaborados. Mas também tem como investir em infraestrutura e tecnologia para competir internacionalmente em um bom número de setores industriais de ponta para conquistar clientes globais à China e outros concorrentes. Em outros tantos, pode ao menos defender o mercado interno e latino-americano. Desde que não tenha medo de formular políticas industriais e planejar o seu futuro: deixá-lo ao sabor do livre mercado será apenas colocá-lo, como sempre, à mercê do planejamento estrangeiro.

Historiadores, políticos e economistas desenvolvimentistas muitas vezes tiveram de lamentar que o Estado brasileiro não tenha sido mais protecionista nem tenha conseguido evitar que muitos de seus setores mais importantes caíssem sob o controle das potências dominantes dos dois últimos séculos, o que limitou as opções de desenvolvimento do País e nossos interesses econômicos. Corremos o risco de cair em outra forma de subdesenvolvimento – ou no desenvolvimento dependente, como preferia FHC antes de pedir a todos que esquecessem o que escreveu? Veremos, mas as condições são melhores que nunca para que deixemos de repetir os mesmos erros.

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Fonte: revista CartaCapital