O futebol e o “homem brasileiro”
Ninguém sintetizou melhor o futebol brasileiro do que o escritor Nelson Rodrigues em sua clássica crônica sobre a famosa partida entre Santos e Milan pelo mundial interclubes. “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão. E o lindo, o sublime na vitoria do Santos é que atrás dela há o homem brasileiro, com o seu peito largo, lustroso, homérico”, escreveu. À alusão a teoria clássica do drama, estabelecida por Aristóteles, Nelson Rodrigues agregou que a vitória do Santos valeu pela vitoria do homem brasileiro.
O cronista aplicou a mesma lógica quando interpretou o significado do “escrete nacional” defendendo as cores brasileiras nas competições internacionais. Para ele, nessas ocasiões a pátria se apresenta em calções e chuteiras. Na sua idéia, o que está implicado é o sentido moderno da palavra nação. Ou seja: uma comunidade política que, para existir, precisa ser corporificada por signos que representem os laços de pertencimento e solidariedade.
Nelson Rodrigues entendia que o “escrete” fazia a nação se realizar plenamente. Em uma crônica de 1970, por exemplo, ele afirmou que os jogos da seleção são as únicas ocasiões "em que todos se lembram do Brasil, em que 90 milhões de brasileiros descobrem o Brasil”. E provocou: fora as esquerdas, que acham o futebol o ópio do povo, todos os outros brasileiros se juntam em torno da seleção. O “escrete”, nas competições internacionais, era o "mito" da nação brasileira, revelando por intermédio dele as qualidades do agente representado, o homem brasileiro.
Essa formulação começou a se desenvolver com a conquista da Copa do Mundo de 1958, quando, segundo Nelson Rodrigues, a seleção brasileira venceu o complexo de vira-latas. Ele não menciona, mas é preciso considerar alguns aspectos já então incorporados ao futebol brasileiro — como a criação de um estilo próprio de jogar. A influência de elementos da cultura negra, como o samba e a capoeira, era uma marca da identidade do mencionado “homem brasileiro”. Numa de suas crônicas, Nelson Rodrigues elegeu o negro Didi como símbolo da vitoria brasileira — bom de bola mas "frouxo como homem".
Com a conquista, não era só a imagem de Didi que se transformava. Era, sobretudo, a imagem que o brasileiro fazia de si próprio. “A partir desse mundial, o brasileiro começa a ter uma nova imagem de Didi. Repito: — passa a ver Didi como um homem de bem. Pois nós sabemos que nenhum escrete levanta um campeonato do mundo sem extraordinárias qualidades morais. De nada adianta o futebol se o homem não presta. O belo, o comovente, o sensacional do triunfo de ontem está no seguinte: – foi, antes de tudo, o triunfo do homem”, escreveu. Pelé e Didi, que além de virtuoses da bola, mostraram ser também bravos, sérios e responsáveis como os europeus.
O homem do Brasil entra na história
Essa mesma definição ganhou formas mais sofisticadas quando o Brasil conquistou o bicampeonato mundial em 1962. As magistrais atuações de Garrincha fizeram Nelson Rodrigues dizer que ele jogou um futebol lúdico e dionisíaco. Em uma crônica antológica, na qual comenta o jogo final contra a Tchecoslováquia, Nelson Rodrigues se concentra nos minutos finais, quando Garrincha, depois de um espetáculo em campo, parou diante de alguns adversários.
“É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, esta todo o brasileiro, esta todo o Brasil. […] O homem do Brasil entra na historia com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios”, escreveu.
As crônicas de Nelson Rodrigues não são teses produzidas com a objetividade do trabalho acadêmico. São parte do mundo do futebol, escritas no calor dos fatos comentados. Os leitores eram as mesmas pessoas que iam aos estádios, que acompanhavam os jogos, que conversavam sobre futebol. Mas elas interagem muito mais com a realidade do que a predominância das idéias acadêmicas de maior circulação. O antropólogo Roberto Da Matta, por exemplo, no ensaio "Futebol: ópio do povo ou drama de justiça social?” afirma que o futebol no Brasil é uma "metáfora da própria vida", uma "dramatização” em que a sociedade representa seus dilemas.
Do mesmo modo, Anatol Rosenfeld, no artigo "O futebol no Brasil", considera o futebol uma forma de “expressão simbólica", ou "representação organizada", em que a sociedade brasileira expia impulsos e tensões da vida social por meio de num processo de catarse. São formulações que descartam o modo como os sentidos associados ao futebol pelo imaginário coletivo brasileiro são produzidos. Não há dicotomia entre academia e arquibancada, mas a essência do “homem brasileiro” descrito por Nelson Rodrigues tem sido motivo de controvérsias não é de hoje.
Ostensiva presença dos ingleses no mundo
Graciliano Ramos, em texto de abril de 1921 publicado no jornal O Índio, da cidade alagoana de Palmeira dos Índios, disse que o futebol não pegaria como esporte de massa no Brasil porque havia uma diferença gigantesca entre os sertanejos e os habitantes das cidades. “As cidades regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças; nós somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda e galego. Nas cidades, os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam limba. Nas cidades assiste-se, cochilando, à representação de peças que poucos entendem, mas que todos aplaudem, ao sinal da claque; entre nós, há criaturas que nunca viram um gringo. Nas cidades há o maxixe, o tango, o fox-trote, o one-step e outras danças de nomes atrapalhados; nós ainda dançamos o samba. Estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega”, disse ele.
Eça de Queiroz também via um certo tipo de brasileiro das cidades com pouco identidade nacional. “No Brasil, as cidades eram cabeças de ponte do mundo moderno. Grupos urbanos procuravam aproximar-se o máximo possível dos exemplos europeus de organização econômica, estrutura social, atitudes e modo de viver. Os brasileiros se habituaram a consumir comida estrangeira, a usar remédios patenteados para curar suas moléstias, a perfumar-se com novas essências, a encher suas casas com móveis estranhos e novidades em artigos sanitários, a iluminar as casas sem o uso do óleo, a ir e a retornar da cidade mais rapidamente, a vestir-se à moda estrangeira e a adotar novos tipos de divertimentos, tudo porque os europeus davam o exemplo”, escreveu.
Ele atribuía o fenômeno à ostensiva presença dos ingleses no mundo. “Estão em toda parte, esses ingleses! Porque, por mais desconhecida e inédita que seja a aldeoa onde se penetra, por mais perdido que se ache num obscuro canto do Universo o regato ao longo do qual se caminhe, encontra-se sempre um inglês, um vestígio de ingleses!”, escreveu. Para ele, os confins do mundo estavam recebendo o seu Times ou o seu Standart e formando a sua opinião não pelo que viam ou ouviam ao redor de si, mas pelo artigo escrito em Londres. “A alma voltada sempre para trás, para o home; abominando tudo o que não é inglês, e pensando que as outras raças só podem ser felizes possuindo as instituições, os hábitos, as maneiras que os fazem a eles felizes na sua ilha do Norte”, disse.
Elite brasileira imita os ingleses
A causa do fenômeno era o progresso trazido pelos ingleses por meio de grandes investimentos em ferrovias, em infra-estrutura urbana, em energia. No final do século XIX e começo do século XX, a economia mundial viveu grandes mudanças. A tecnologia da Revolução Industrial aumentou ainda mais a produção, o que gerou uma grande necessidade de mercado consumidor para esses produtos e uma nova corrida por matérias primas. Era natural que a expansão do capitalismo difundisse os modos ingleses — entre eles o futebol, oficializado em 1863 com a criação do association football por doze clubes. Antes, em outubro de 1848, uma associação de escolas reuniu-se no Trinity College, em Cambridge, e elaborou as famosas “quatorze regras de Cambridge”.
Em 1863, representantes dos clubes de futebol ingleses fundaram a Football Association, a partir de uma reunião realizada na taverna Freemason's, e redigiram um código de leis para o esporte, num total de treze itens. Essas regras sofreram sucessivas alterações até chegarem aos dezessete itens que formam hoje as leis do jogo. As regras foram aprimoradas, nasceram organizações semelhantes em outros países e no início do século XX o futebol afirmou-se como esporte de massas. No final do século XIX, as federações inglesa, escocesa, irlandesa e galesa criaram o International Football Association Board (IFAB), responsável pela monitorização das leis de jogo. A FIFA passou a integrar o IFAB em 1913 e, hoje, o International Board continua a ser o guardião das leis do futebol.
Quando os ingleses desembarcaram no Brasil, trouxeram na bagagem toda essa formulação futebolística. A elite brasileira, como observou Eça de Queiroz, logo começou a imitar os ingleses e tentou erguer barreiras para manter o povo distante da bola. Mal sabia ela que o futebol já havia conquistado ampla popularidade entre os súditos de Sua Majestade Britânica. Segundo o sociólogo britânico Stephen Wagg, muitos clubes ingleses surgiram como times de fábricas — o Arsenal, por exemplo — ou de igrejas — como o Aston Villa. Tornado religião laica do povo, na bela definição de Eric Hobsbawm, onde o futebol chegava ganhava simpatia das massas.
Intensa luta de classes no futebol
No Brasil, o futebol chegou quando o país respirava os novos ares da Independência e da Abolição. Os primeiros chutes vistos por aqui foram de marinheiros britânicos, freqüentadores habituais da costa do país — de Belém do Pará ao Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Thomaz Mazzoni, pioneiro do jornalismo esportivo brasileiro, diz em seu livro História do futebol no Brasil, publicado em 1950, que os marujos realizavam seus jogos “nos capinzais desertos do litoral norte e sul do país”. Distante do mar, segundo Mazzoni, alguns obscuros e mal documentados, como uns tais mister Hugh e mister John, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro, juntaram operários brasileiros e funcionários ingleses em gramados improvisados. As duas cidades eram, desde o início da República, centros de grande importância e referência nacional.
Começou, desse modo, uma intensa luta de classes no futebol. O Colégio São Luis, de Itu (SP), por exemplo, reunia filhos dos “barões do café” e professores em animadas partidas. Outros colégios seguiram o exemplo. Era uma moda britânica. Quando o paulista Charles William Miller voltou ao Brasil em 1894, depois de passar dez anos estudando na Inglaterra — país natal de seus pais —, trouxe na mala um livro de regras do association footbaall, duas bolas, uma bomba de ar, um par de chuteiras, uma camisa do Banister Court School e outra do Saint Marys’s Fotbaal Club — onde se destacara como atacante. Outro brasileiro que trouxe a experiência do futebol em colégios foi o carioca Oscar Cox, que conhecera o esporte durante seus estudos no Collège de La Ville, em Lausane, na Suíça.
Outros jovens que estudaram no exterior espalharam a prática pelo Brasil. Os clubes começaram a surgir. Em São Paulo, Charles Miller promoveu o primeiro jogo em 1895, reunindo funcionários da Companhia de Gás e trabalhadores da São Paulo Railway — a maioria sócios do The São Paulo Athetic Club. Já existiam cinco clubes que promoviam o futebol: o São Paulo Athletic Club, a Associação Athletica Mackenzie College, o Sport Club Germania, o Sport Club Internacional e o Club Athletico Paulistano. Foram eles que criaram, em 1901, a primeira Liga de clubes do país, que começaria, no ano seguinte, a promover o Campeonato Paulista.
A etiqueta social da belle époque
Ainda em 1901, o carioca Oscar Cox reuniu uma comitiva de futebolistas e viajou para São Paulo a fim de participar de duas partidas com um grupo paulista liderado por René Vanorden. Os dois empates — 1 a 1 e 2 a 2 —, segundo o cronista Leopoldo Sant’Ana, citado por Mazzoni, traduziram a cordialidade do encontro. “Foram verdadeiras festas ao ar livre, nas quais predominava o esporte pelo esporte, num ambiente da mais franca camaradagem”. Tudo isso sem se descuidar do “desenvolvimento físico da raça, aliado ao intercâmbio social entre a mocidade das duas grandes capitais brasileiras”. O empate do primeiro jogo foi festejado por ambos os lados em um banquete na Rotisserie Sport, quando um brinde foi levantado ao rei Eduardo VII, da Inglaterra, e ao presidente brasileiro, o paulista Campos Salles.
O encontro serviu para dinamizar o futebol nos dois Estados. No Rio de Janeiro, Oscar Cox fundou, em 1902, o Fluminense Football Club, reunindo jovens que tentavam criar na cidade um espaço para manter os novos hábitos adquiridos no exterior. No mesmo ano, nasceu o Rio Foot-ball Club, considerado o primeiro clube de futebol da capital carioca, reunindo ingleses e brasileiros sem ascendência britânica. Mas o futebol era ainda essencialmente elitista. O jornalista Mário Filho, outro pioneiro de nossa literatura futebolística, diz em seu livro O negro no futebol brasileiro que as partidas eram presenciadas por moças maquiadas, bem penteadas e elegantes em seus grandes chapéus emplumados, torcendo nas arquibancadas com lencinhos em suas mãos delicadas.
No gramado, os jogadores se apresentavam enfeitados com toucas de tricô e faixas de cetim. “O futebol prolongava aquele momento delicioso de depois da missa”, disse ele, na mais perfeita consonância com a etiqueta social da belle époque. Ao cair nas graças da juventude, era inevitável que o futebol chegasse às camadas sociais que não pertenciam aos seletos clubes e aos prestigiados colégios. Mário Filho diz que os jogadores entravam em campo, saldavam as moças nas aruibancadas mas não repetiam seu hip-hip-hurrah “diante da geral, onde se amontoavam os torcedores sem colarinho e gravata”. Mas os sem colarinho e gravata logo começaram a fundar seus próprios clubes. Em 1906, a cidade do Rio de Janeiro já contava com mais de trinta clubes. O Clube Regatas Botafogo, o Clube Regatas Flamengo e o Clube Regatas Vasco da Gama abriram suas portas ao futebol.
Amálgama entre o sentimento nacional e a bola
Em São Paulo, segundo Mazzoni, os times de bairro nasceram quase no mesmo tempo dos clubes fundadores da Liga. “A semente da popularidade futebolística brotou logo prodigiosamente. O exemplo dos estudantes e dos moços ricos do Mackenzie, Paulistano etc. não deixou indiferentes os rapazes operários dos bairros, e daí surgirem pequenos clubes em pouco tempo. Assim, se consultarmos, por exemplo, os jornais, leremos em duas ou três linhas que ‘estão combinados para hoje alguns matches de footbaal’, no ponto final do Tramway da Cantareira, entre os clubes A.A Cruzeiro Paulista x A.A Santos Dumont e S.C. Silvio de Almeida x S.C. Guarani”, escreve ele.
Nascia também os clubes de várzea — sinônimo de futebol humilde. Mazzoni relata que por volta de 1908 as modestas equipes da Paulicéia começaram a se reunir aos domingos na vasta área da Várzea do Carmo, próximo ao centro da capital paulista. “Nos vários campos improvisados, era um suceder-se interminável de partidas”, diz ele. A prática também se expandiu para terrenos baldios da cidade e surgiram vários clubes nas periferias. O futebol explodia em todo o país e rompia as barreiras geográficas e sociais que separavam a elite e o povo. O esporte ganhou força também no Rio Grande do Sul, no interior de São Paulo, no Norte e Nordeste, em Minas Gerais. No começo da segunda década do século XX, o futebol já gozava de grande popularidade no Brasil.
Em 1915, com a fundação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, que mais tarde se transformaria na CBF), a organização do futebol deu um salto importante. Nasceu ali a grande amálgama entre o sentimento nacional e a bola. A realização do terceiro Campeonato Sul-Americano de Futebol no Rio de Janeiro em 1919 fez explodir a nacionalidade futebolística brasileira. Até o sisudo historiador Capistrano de Abreu se rendeu à crescente mobilização popular. Em carta dirigia à senhora Assis Brasil, ele no Rio de Janeiro e ela no Rio Grande do Sul, escrita às vésperas do jogo contra os uruguaios, ele disse: “O grande acontecimento desse aldeão é o foot-ball. O Brasil só tem pela frente o Uruguai. Vencerá? (…) Nunca assisti a uma partida, não posso fazer idéia de como é, e os termos técnicos soam-me aos ouvidos como a mais arrevesada das gírias; mas enquanto for independente de socorros federais ou municipais, contará com minhas simpatias incondicionais o jogo de foot-ball.”
Escola brasileira de futebol
Era a decisão, realizada dia 29 de maio de 1919, uma quinta-feira, às 14 horas, no novíssimo estádio do Fluminense, nas Laranjeiras. O presidente da República, Delfim Moreira, decretou ponto facultativo nas repartições públicas da capital, enquanto os bancos e boa parte do comércio sequer abriram as portas. Ao meio dia, o bonde da Companhia Light em direção às Laranjeiras começou a circular a cada dez minutos. O estádio lotou. Os morros ao redor foram tomados pela população. A conquista do título levou os torcedores ao delírio. Era, na expressão do historiador Nicolau Sevcenko, a “descoberta de uma vocação”. Segundo ele, o jornal O Estado de S. Paulo publicou que “os jogadores brasileiros evidenciaram possuir as melhores qualidades que se podem desejar em ‘footballers’, qualidades que somente ele, e nenhum outro povo, reúnem todas”.
Na ocasião, o jornalista Americo R. Netto, editor da então recém-lançada revista Sports, anunciou o surgimento da “escola brasileira de futebol”. Segundo ele, todos os povos que jogavam futebol imitavam os ingleses, mas aos brasileiros cabia a honra e a glória de terem criado seu uso próprio, um sistema novo de jogar. O futebol já era, de fato, parte importante do movimento modernizador da nação brasileira. Mas a entrada de pobres, negros e trabalhadores em campo escandalizava os que se imaginavam donos do futebol. Tanto que começaram a criar regras para enquadrá-lo.
No começo da década de 1920, a revista Sport Ilustrado relatou um distúrbio no campo do Botafogo de forma acentuadamente preconceituosa. “Há (…) em todos os clubs uma classe que sem fazer parte dos quadros sociais, é causa, quase que exclusiva, dos distúrbios verificados nos campos de futebol: a classe dos ‘torcedores’. Essa classe constituída em sua maior parte por indivíduos de baixa condição social, sem instrução e sem educação, não podendo, portanto, discernir com critério, a quem nada fica mal pois a sua própria condição assim o permite. O problema é difícil, mas pode e deve ter solução, do contrário a polícia encarregará de resolvê-lo”, escreveu a publicação.
O submundo do futebol
O texto dizia que a “famosa torcida” se avolumava a cada dia. E com ela o número de mal educados. “Quem se der ao trabalho de fazer uma ligeira análise sobre esses pedidos de inscrição verificará facilmente que quanto menos elevada é a posição social de um bom jogador, quanto mais duvidoso pode ser o seu nível moral. Tanto maior o número de clubs que o inscreveram e com as circunstâncias de que esses clubs são tais que não escolhem elementos de ordem moral para os seus quadros, mas, apenas bons jogadores”, disse a revista. A mesma publicação aplaudiu, em 1921, a decisão do presidente da Liga de Desporto Terrestre de Natal, Rio Grande do Norte, de promover “uma limpeza geral nos teams de club de foot baal”. “É muito melhor e mais bonito apresentar-se em campo um teams de rapazes decentes, embora não saibam jogar, porém que tem educação esportiva e representação no meio social, aos que se tem apresentado mal educados”, completou.
O alvo principal das discriminações era o negro. As demarcações sociais remanescentes da escravidão aparecem com nitidez quando se percorre a história do futebol, ainda que rapidamente. O livro de Mário Filho é uma referência importante, mas a imprensa da época é uma porta que revela, em toda a sua dimensão, o submundo do futebol daquele tempo. Já em 1907, o jornal Gazeta dos Sports noticiou que o Bangu Athletico Club oficiou a Liga Matropolitana dos Sports Athleticos desligando-se da entidade. O motivo era um ofício da Liga comunicando que não seriam aceitos registros de “pessoas de cor”.
Uma polêmica envolvendo o Vasco da Gama e a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos, em 1924, também mostra a força do racismo no futebol. O clube protestou contra a eliminação de doze atletas e obteve a resposta de que a Associação alimentava “a esperança de que para o futuro, elle (o Vasco) fizesse todos os esforços para constituir equipes genuinamente portuguezas, para uma demonstração sportiva das verdadeiras qualidades dessa nobre raça secular”.
À boa moda brasileira
A revolução de 1930 começaria a mudar a face elitista do futebol, mas ela, ainda nos dias que correm, se mostra vez por outra. De toda forma, é significativa a constatação de que dois jogadores que seriam os maiores ídolos da “era Vargas”, Leônidas da Silva e Domingos da Guia, têm a marca do negro brasileiro. E que, mais tarde, dois negros, Pelé e Garrincha, lideraram o ciclo de ouro do futebol brasileiro.
A “era Vargas” abriu as portas para uma nova manifestação cultual brasileira. O reflexo disso no futebol pode ser visto nas páginas esportivas dos jornais, nos textos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e José Lins do Rego. No prefácio do livro Copa Rio Branco: 32, de Mario Filho, José Lins do Rego escreveu: “Os rapazes que nos representaram, triunfalmente, em Montevidéu, eram no fundo um retrato da nossa democracia social, onde Paulinho, filho de uma família importante, se uniu ao negro Leônidas da Silva, ao mulato Gradim, ao branco Martim. Tudo feito à boa moda brasileira. Lendo este livro sobre futebol, eu acredito no Brasil, nas qualidades eugênicas dos nossos mestiços, na energia e na inteligência dos homens que a terra brasileira forjou, com sangues diversos, dando-lhes uma originalidade que será um dia o espanto do mundo.”
O nosso estilo nacional e suas representações sobre o povo, que Nelson Rodrigues chamou de “homem brasileiro”, no campo do futebol ainda são pouco estudados pelo chamado pensamento social. Eles revelariam muito do que somos como nação — à boa moda brasileira, no dizer de José Lins do Rego. O centenário do futebol brasileiro, portanto, é digno de festa nacional — sua popularidade não se explica por algo sobrenatural, por um ou outro clube. Cada um tem o seu valor, sua cota de participação nessa belíssima história de um século construída pelo homem brasileiro que lutou pela Independência, pela Abolição, pela República, pela Revolução de 1930.