Il problema della conquista e della difesa dello Stato moderno non è un problema politico, ma tecnico” (O problema da conquista e da defesa do Estado moderno não é um problema político, mas técnico) (1) – Curzio Malaparte, nos anos 1930, observou quando escreveu seu famoso livro Tecnica del colpo di Stato (Técnica de golpe de Estado). A conquista e a defesa do Estado moderno não deixaram de ser, naturalmente, um problema político. Mas o mérito de Curzio Malaparte foi ressaltar o aspecto golpe, que se modificara e se tornara ainda mais complexo, no curso dos séculos, acompanhando a transformação da natureza do Estado (2). Essa técnica se desenvolveu enormemente e ganhou maior dimensão, entretanto, durante a Guerra Fria, empregada pelos Estados Unidos, como instrumento de política exterior e ingerência nos assuntos internos de outros países, desde a criação da Central Intelligence Agency (CIA), em 1947. “We must learn to subvert, sabotage and destroy our enemies by more clear, more sophiticated and more effective method than those against us” (Nós precisamos aprender a subverter, sabotar e destruir nossos inimigos por métodos mais claros, mais sofisticados e mais efetivos do que aqueles que eles usam contra nós) (3) – recomendou um documento secreto, anexado ao Doolitle Report (Relatório Doolitle) para a Hoover Commission (Comissão Hoover), em 1950 (4).

A CIA, sucessora do Office of Strategic Services (OSS) (Escritório de Serviços Estratégicos), dedicou-se não apenas à coleta de dados, mas a vários tipos de operações de guerra psicológica e paramilitares, conhecidas como PP ou KUKAGE, que jamais deveriam ser a ela atribuídas ou ao governo dos Estados Unidos, e sim a outras pessoas ou organizações (5). O ex-agente da CIA, Philip Agee, reconheceu, em seu livro Inside the Company: Cia Diary (Dentro da Companhia: Diário da CIA), que essas operações são arriscadas porque quase sempre significam intervenção, pois visam a influenciar, por meios encobertos, os assuntos internos de outro país, com o qual os Estados Unidos mantêm relações diplomáticas normais, e a técnica consiste essencialmente na “penetration” (6), buscando aliados desejosos de colaborar com a CIA. Daí que a regra mais importante na sua execução é a possibilidade de “plausible denial” (negação plausível), i.e., negar convincentemente a responsabilidade e a cumplicidade dos Estados Unidos com o golpe de Estado, ou outra operação, uma vez que, se fosse descoberto seu patrocínio, as consequências no campo diplomático seriam graves.

As operações de guerra psicológica implicam propaganda e divulgação, ou seja, campanha através da mídia, junto às diversas organizações estudantis, a sindicatos, outros grupos profissionais e culturais, bem como junto aos partidos políticos, sem que a procedência das informações possa ser atribuída ao governo americano. Ela é efetivada, muitas vezes, por agentes da CIA, estacionados na Embaixada Americana como diplomatas, ou homens de negócios, estudantes ou aposentados, enquanto as operações paramilitares consistem na infiltração em áreas proibidas, sabotagem, guerra econômica, apoio aéreo e marítimo, financiamentos de candidatos nas eleições, suborno, assassinatos (executive actions, ações executivas) pela Division D, dentro do projeto conhecido como ZR/RIFLE (7), treinamento e manutenção de pequenos exércitos (covert actions, ações secretas) etc. (8). Essas operações tipificam a técnica do golpe de Estado, que a CIA desenvolveu e aplicou no Brasil e em diversos países da América Latina, nos anos 60 e 70 do século XX, radicalizando, artificialmente, as lutas sociais, até o ponto de provocar o desequilíbrio político e desestabilizar governos (spoiling actions, ações de aniquilamento), que não se submetiam às diretrizes estratégicas dos Estados Unidos. “In some cases, a timely bombing by a station agent, followed by mass demonstrations and finally by intervention by military in the name of the restoration of order and national unity – (Em alguns casos, um bombardeio oportuno, por um agente de base, seguido por manifestações massivas e finalmente pela intervenção militar em nome da restauração da ordem e da unidade nacional) revelou Philp Agee, acrescentando que as operações políticas da CIA foram responsáveis por coups (golpes), que obedeceram ao mesmo padrão no Irã, em 1953, e no Sudão, em 1958.

Os agentes da CIA e seus mercenários nativos, encarregados de promover “hidden World War Three” (Terceira Guerra Mundial disfarçada) (9), executaram no Brasil, desde 1961, as mais variadas modalidades de operações políticas (PP), covert action e spoiling action, engravescendo a crise interna e induzindo, artificialmente, o conflito político à radicalização, muito além dos próprios impulsos intrínsecos das lutas sociais, das quais a comunidade empresarial norte-americana participava como significativo segmento de suas classes dominantes. A técnica consistiu em induzir a radicalização das lutas de classes, mediante a guerra psicológica de atos de provocação, de modo a socavar a base de sustentação social do governo e que só lhe restasse o apoio da extrema-esquerda. A consequência era a sua desestabilização. Como Philip Agee descreveu, essa técnica pode implicar a colocação de uma bomba relógio acertada pelo agente da base, seguindo-se uma demonstração de massa (e.g. Marcha da Família com Deus pela Propriedade) e, finalmente, a intervenção dos militares em nome da restauração da ordem e da unidade nacional (10).

Mutação da estratégia de segurança continental

Apesar dos fatores domésticos, que os possibilitaram, os golpes de Estado nos países da América Latina, após a Revolução Cubana, constituíram batalhas da “hidden World War Three”. Eles resultaram da mutação da estratégia de segurança continental, promovida pelo Pentágono, redefinindo as ameaças, com prioridade para o inimigo interno, e difundindo, através da Junta Interamericana de Defesa particularmente, as doutrinas de contrainsurreição e da ação cívica. Quase todos os golpes de Estado na América Latina, durante os anos 1960 e 1970, configuraram, assim, um fenômeno de política internacional continental, mais do que de política nacional, interna, da Argentina, Peru, Guatemala ou Brasil. Evidenciou-o o fato de que a intervenção das Forças Armadas no processo político visou, sobretudo, a alterar diretrizes de política exterior e ditar decisões diplomáticas, conforme os objetivos estratégicos dos Estados Unidos, e ocorreram, geralmente, contra os governos que se recusavam a romper relações com Cuba.

Embora, nos anos 1960, as corporações multinacionais, em busca de fatores mais baratos de produção, não pudessem tolerar nos new industrializing countries (novos países industrializados) nenhum governo de corte social-democrático – que, sob influência dos sindicatos, favorecesse a valorização da força de trabalho, e o presidente John F. Kennedy (1961-1963) condenasse, formalmente, os golpes de Estado e privilegiasse a democracia representativa como forma de evitar revoluções e combater o comunismo –, os Estados Unidos trataram de enfraquecer e derrubar o governo do presidente João Goulart, não apenas por causa de algumas nacionalizações, mas, sobretudo, com o objetivo de modificar a política externa do Brasil, que defendia os princípios de autodeterminação dos povos e se opunha à intervenção armada em Cuba.

O que mais afetava, então, os interesses de segurança dos Estados Unidos, no hemisfério, não era exatamente a luta armada pró-comunista, como as guerrilhas na Venezuela e na Colômbia, mas sim o desenvolvimento da própria democracia naqueles países, onde o recrudescimento das tensões econômicas e dos conflitos sociais aguçava a consciência nacionalista e os sentimentos antinorte-americanos passavam a condicionar o comportamento de seus respectivos governos. Em tais circunstâncias, conquanto Kennedy adotasse, como um dos pressupostos da Aliança para o Progresso, o princípio de não reconhecer governos que não obedecessem às normas do regime democrático-representativo, sua administração foi a que mais incentivou as Forças Armadas – percebidas como a organização social mais estável e modernizadora – a participarem da política interna de seus respectivos países, através de “ações cívicas” e de contrainsurreição. Daí o surto militarista, com a propagação dos golpes de Estado, que tinham como principal fonte de inspiração a Junta Internacional de Defesa. Não sem motivo o embaixador Ilmar Pena Marinho, chefe da Delegação de Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), manifestou sua preocupação com a possibilidade de que o Colégio Interamericano de Defesa, criado por pressão dos Estados Unidos e ao que Goulart se opôs, viesse a transformar-se em uma “academia de golpes de Estados” (11), onde os estagiários e instrutores norte-americanos, a influenciar seus colegas latino-americanos, expressavam abertamente opiniões sobre a necessidade de criar-se um sistema permanente de ação coletiva, capaz de intervir onde quer que seja que não se pudesse enfrentar, com recursos internos do próprio país, a ameaça comunista.

A política exterior do presidente João Goulart, ao defender a soberania e a autodeterminação de Cuba, obstaculizava os objetivos de Kennedy, que em 11 de dezembro de 1962 reuniu o Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional para examinar a “ameaça comunista” no Brasil e a crise do seu balanço de pagamentos. Ao que tudo indica, naquela oportunidade, decidiu-se que os Estados Unidos suspenderiam totalmente qualquer financiamento ao governo Goulart, nada fazendo, como prorrogação de vencimentos, para aliviar as dificuldades de suas contas externas, e só destinando recursos aos Estados, depois denominados “ilhas de sanidade administrativa”, cujos governadores eram militantes anticomunistas. No dia seguinte, ao falar à imprensa, Kennedy referiu-se duramente à situação do Brasil, declarando que uma inflação de 5% ao mês anulava a ajuda norte-americana e aumentava a instabilidade política. Segundo ele, uma inflação no ritmo de 50% ao ano não tinha precedentes e os Estados Unidos nada podiam fazer para beneficiar o povo brasileiro, enquanto a situação monetária e fiscal dentro do país fosse tão instável. Assim, publicamente, proclamou que o Brasil estava em bancarrota. E ao receber em audiência, no dia 13, o senador Juscelino Kubitschek, ex-presidente do Brasil, e Alberto Lleras Camargo, ex-presidente da Colômbia, prognosticou que, não importando o que os EUA fizessem, a situação do Brasil devia deteriorar-se (12).

A operação para eventualmente intervir no Brasil começou, por volta de 1961. O Departamento de Estado, naquele ano, começara a solicitar ao Itamaraty vistos para cidadãos americanos, que entravam no Brasil sob os mais diferentes disfarces (religiosos, jornalistas, comerciantes, Peace Corps [corporações de paz] etc.), e se dirigiam a maioria deles para as regiões do Nor­deste. Em meados de 1962, da tribuna da Câmara Federal, o deputado José Joffily, do Partido Social-Democrático (PSD), denunciou a “penetration” e, no princípio de 1963, o jornalista José Frejat, através de O Semaná­rio, revelou que mais de 5.000 militares norte-americanos, “fantasiados de civis”, desenvolviam, no Nordeste, intenso trabalho de espionagem e desagregação do Brasil, para dividir o território nacional. Se a guerra civil eclodisse, segundo ele, a esquadra do Caribe estaria pronta para apoiar as atividades dos supostos civis americanos, com armas e tropas. Comprovadamente, até 1963, o Itamaraty concedera mais de 4.000 vistos e recebera solicitação para mais 3.000, cujo atendimento os militares nacionalistas brasileiros obstaram. Esse volumoso número de requerimentos causara tanta estranheza que levou o Itamaraty, certa vez, a interpelar o embaixador Gordon. A resposta foi evasiva. Ele declarou que apenas 2.000 americanos utilizaram efetivamente os vistos, sendo que os demais ficariam como reservas. Não era verdade. Mentiu. Cerca de 4.968 norte-americanos, conforme as estatísticas oficiais de desembarque, chegaram ao Brasil, apenas em 1962, batendo todos os recordes de imigração originária dos EUA e superando quase todos os números registrados durante os anos da Segunda Guerra Mundial, quando eles instalaram, oficialmente, bases militares em diversos estados do Nordeste. Aquele número baixou, em 1963, para 2.463, talvez em virtude de restrições do Itamaraty, mas, ainda assim, continuou acima da média de entradas de norte-americanos em todos os anos anteriores e posteriores.

Lincoln Gordon (d.) com general Castelo Branco

Esses americanos integravam as Special Forces (forças especiais), conhecidas como Green Berets (boinas verdes), criadas para travar guerras de baixa intensidade (low-intensity wars) e treinar as forças nos diversos países, onde houvesse essa perspectiva de conflito armado. E desde meados de 1963 pelo menos, a CIA e o Pentágono começaram a elaborar vários planos de contingência, denominados Brother Sam, a fim de intervir militarmente no Brasil, diante da eventualidade de que João Goulart, como consequência da pressão econômica dos Estados Unidos, reagisse e envergasse para a esquerda, não propriamente comunista e sim sob a forma do autoritarismo ultranacionalista, algo no modelo de Getúlio Vargas ou Juan D. Perón, conforme a avaliação da CIA. E até o seu assassinato (executive action) foi planejado. Em 10 de outubro de 1963, à mesma época em que o Grupo Especial do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos autorizara novas operações de sabotagem em Cuba, os soldados do 1º Batalhão da Polícia do Exército brasileiro, sob o comando do major Ary Abrahão Ellis, vasculharam um sítio em Jacarepaguá (Rio de Janeiro), perto de uma propriedade de Goulart, e descobriram 10 metralhadoras Thompson, calibre 45, 20 carregadores, 72 caixas de cartuchos Remington Kleanbore 45, 10 granadas Federal Blast Dispersion (dispersão colossal de dinamite), Tear Gas (Gás Lacrimogêneo) (CN, Chloroacetophenone) e um rádio transmissor motorola, marcado com o símbolo do programa Ponto IV (mãos apertadas), da embaixada dos Estados Unidos. O ministro da Justiça, Abelardo Jurema, declarou que as metralhadoras Thompson entraram clandestinamente no Brasil, pois nenhuma daquele tipo existia nas suas organizações de polícia nem no seu Exército, cujos oficiais desconheciam todos aqueles modelos de armamentos, tão modernos que eram. E as investigações evidenciaram a existência de uma trama para a eliminação de Goulart e de seus filhos, bem como de muitos políticos e generais favoráveis ao governo. Não há dúvida de que a CIA estava por trás do complot.

O golpe de Estado, que derrubou em 1964 o presidente João Goulart, tipificou o conjunto das operações que a CIA desenvolveu e aprimorou, e com tais procedimentos ela conseguiu desestabilizar o governo e permitir a sublevação dos militares, a pretexto de restaurar a ordem e evitar o comunismo. A oposição tinha, decerto,  uma dinâmica interna própria, determinada pelas contradições econômicas e sociais, que se aguçaram no Brasil. Mas teriam os militares brasileiros, que conspiravam contra Goulart, desfechado o golpe de Estado, para derrubar um governo legalmente constituído, se não soubessem que contariam com o respaldo dos EUA? Teriam ousado empreender essa aventura, que poderia deflagrar uma guerra civil, se não estivessem seguros de que receberiam assistência militar de Washington, sob a forma de gasolina, armas, munições e até mesmo assessores, se necessário fosse? Seguramente, não. A assertiva do embaixador Lincoln Gordon, segundo a qual a derrubada de Goulart foi realizada pelos militares brasileiros sem “assistance or advice” (assistência ou aconselhamento) dos EUA não corresponde à realidade. Não é consistente com os fatos. O embaixador Lincoln Gordon, como sempre, mentiu.

O embaixador Lincoln Gordon e o golpe de 1964

Uma série de documentos desclassificados em 2004, por solicitação do National Security Archives (arquivos de segurança nacional), da George Washington University, com base no FOIA – Freedom of Information Act (Ato por liberdade de informação), evidenciaram a técnica que os Estados Unidos empregaram no Brasil, a fim de criar as condições políticas para a efetivação do golpe militar em 1964. O general Humberto Castelo Branco, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, era quem comandava, clandestinamente, a conspiração e, em telegrama ao Departamento de Estados e às mais altas autoridades em Washington, inclusive a John McCone, diretor da CIA, o embaixador Lincoln Gordon, em 27 de março, revelou que ele preferia atuar “only in case of obvious inconstitutional provocation” (apenas em casos de provocação obviamente inconstitucional) e que por isso estava “preparing for a possible move sparked by a communist-led general strike, another sergeants rebellion, a plebiscite call opposed by Congress, or even a major governamental countermove against the democratic military or civilian leadership” (preparando para uma possível mudança provocada por uma greve geral de procedência comunista: alguma rebelião de sargentos, um plebiscito chamado em oposição pelo Congresso, ou mesmo um contra-ataque de um governo principal contra o exército democrático ou um comando civil).

O embaixador Lincoln Gordon pressionou Washington para que se envolvesse diretamente no golpe contra o governo de Goulart, respaldando o general Castelo Branco. “If our influence is to be brought to bear help avert a major disaster here – which might make Brazil the China of the 1960s – this is where both I and al my senior advisors believe our support should be placed” (Se a nossa influência é para ser exercida a ajudar a evitar um grande desastre aqui – que pode fazer o Brasil a China da década de 1960 – este é o local onde eu e meus veteranos conselheiros acreditamos que nosso apoio deve ser colocado) – escreveu em telegrama ao Departamento de Estado, Casa Branca e CIA, datado de 27 de março de 1964 (13).

A fim de assegurar o sucesso do golpe, no mesmo telegrama, Lincoln Gordon recomendou que medidas fossem tomadas para que “clandestine delivery of arms of non-US origin” (entrega clandestina de armas de origem não-norte-americana) para colocá-las à disposição dos que apoiavam Castello Branco em São Paulo” e preparar “without delay against the contingency of needed overt intervention at a second stage” (sem demora contra a contingência de uma necessária intervenção aberta numa segunda fase). Os telegramas desclassificados confirmam que a CIA empreendera “covert measures” (medidas secretas), que incluíam “covert support for pro-democracy street rallies (next big one being April 2 here in Rio, and others being programmed), discrete passage of word the U.S. Government deeply concerned at events, and encouragement [of] democratic and anti-communist sentiment in Congress, armed forces, friendly labour and student groups, church, and business” (suporte secreto para comícios de rua pró-democracia (próximo grande comício em 2 de abril aqui no Rio e outros sendo programados), discreta passagem da palavra ao governo dos EUA, profundamente preocupado pelos eventos, e encorajamento [de] sentimento democrático anticomunista no Congresso, nas forças armadas, trabalho aliado e grupos de estudantes, igreja e empresas) (14).
Esse telegrama evidencia, incontestavelmente, que as Marchas “da Família com Deus, pela Liberdade” (a primeira em 19 de março, em São Paulo) foram organizadas pela CIA e que o governo dos Estados Unidos tinha um plano para “the contingency of needed overt intervention at the second stage” (a contingência de necessária intervenção aberta na segunda fase).

Lincoln Gordon ainda reclamou o envio imediato de uma força naval para manobras no Atlântico Sul e estacionar em frente ao porto de Santos. E, em outro telegrama datado de 29 de março, insistiu junto ao Departamento de Estado e a outras autoridades, entre as quais John McCone, diretor da CIA, para que fosse enviada secretamente uma variedade de armas, de modo que elas estivessem “pre-positioned prior any outbreak of violence” (previamente posicionado antes de qualquer surto de violência) e pudessem ser “used by paramilitary units working with Democratic Military groups” (usadas pelas unidades paramilitares que trabalham com grupos militares democráticos). Também recomendou que Washington fizesse uma declaração pública para assegurar ao “large numbers of democrats in Brazil that we are not indifferent to the danger of a Communist revolution here” (grande número de democratas no Brasil de que não somos indiferentes ao perigo de uma revolução comunista aqui) e sugeriu que, de modo a ocultar o papel dos Estados Unidos, as armas deviam ser despachadas via “unmarked submarine to be off-loaded at night in isolated shore spots in state of Sao Paulo south of Santos” (submarino não-identificado para ser desembarcado à noite em pontos isolados da costa do estado de São Paulo ao sul de Santos) (15). Já então Goulart recebera a informação de que por volta da meia-noite do dia 16 de julho de 1963, um submarino norte-americano, com o prefixo WZY-0983 e sob o comando de um sobrinho do general Mac Clark, provavelmente chamado Roy, havia desembar­cado, ao largo de Pernambuco, munições de guerra, entre as quais 750 bazucas, revólveres, espingardas e granadas, com o auxílio de alguns generais brasileiros reformados (16). Estas armas se espalharam pela Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte e outros estados, sendo muitas de origem tcheca, dentro de um plano de provocação, que visava a justificar, de acordo com o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), a intervenção dos EUA no Brasi1 (17). Vários depósitos com armamentos chegaram a ser descobertos pela Polícia do Exército, que em 10 de outubro vasculhou uma chácara em Jacarepaguá (Rio de Janeiro), perto de uma proprie­dade de Goulart, o Sítio do Capim Melado, e encontrou 10 metralhadoras Thompson, calibre 45, 20 carregadores, 72 caixas de 50 cartuchos Remington Kleanbore 45, 10 granadas Federal Blast Dispersion, Tear Gas (CN) e um rádio transmissor-receptor portátil Motorola, marcado com o símbolo do Ponto IV (mãos apertadas), da Embaixada dos EUA (18).

O sítio pertencia a um amigo de Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara (então a cidade do Rio de Janeiro), e as armas eram tão modernas que os oficiais do Exército brasileiro estranharam, porquanto ainda não as conheciam. Segundo o ministro da Jus­tiça, Abelardo Jurema, as metralhadoras Thompson entraram clandestinamente no Brasil. Não existia nenhuma daquele tipo nas organizações de polícia do país, nem sequer do Exér­cito, e as investigações evidenciaram que se tramava o assassinato de Goulart e de seus filhos, bem como o de muitos políticos e generais favoráveis ao governo (19). O Inquérito Policial-Militar comprovou a “intenção criminosa” de vários colaboradores do governador Carlos Lacerda Lacerda que, sem dúvida alguma, não estava alheio à iniciativa, segundo o Serviço Federal de Informações e Contrainformação (SFICI), que, em informe a Goulart, incriminou também os deputados estaduais da União Democrática Nacional (UDN), Sandra Cavalcanti e Nina Ribeiro (20).

Todas as alternativas foram excogitadas pela CIA e pelo embaixador Lincoln Gordon que, quatro dias antes do golpe, informou a Washington que “we may be requesting modest supplementary funds for other covert action programs in the near future” (nós podemos solicitar modestos fundos suplementares para outros programas de ação secreta no futuro próximo), e demandou o envio de petróleo e lubrificantes para facilitar as operações logísticas dos conspiradores e o deslocamento de uma força naval visando a intimidar as forças que apoiavam Goulart. Em 30 de março, a estação da CIA no Brasil transmitiu a Washington que, segundo as fontes em Belo Horizonte, “a revolution by anti-Goulart forces will definitely get under way this week, probably in the next few days” (uma revolução pelas forças anti-Goulart entra definitivamente em curso esta semana, provavelmente nos próximos dias), e marcharia para o Rio de Janeiro (21). No mesmo dia 30, no momento em que Goulart discursava para os sargentos no Automóvel Club, o secretário de Estado, Dean Rusk, leu para o embaixador Lincoln Gordon, por telefone, o texto do telegrama nº 1296, informando-o de que, como os navios, carregados de armas e munições, não podiam alcançar o Sul do Brasil antes de dez dias, os EUA poderiam enviá-las por via aérea, se fosse assegurado um campo intermediário em Recife ou em qualquer outra parte do Nordeste, capaz de operar com grandes transportes a jato, e manifestou o receio de que Goulart, o deputado Ranieri Mazzilli, os líderes do Congresso e os chefes militares alcançassem naquelas poucas horas uma acomodação, fato que seria “deeply embarrassing” (profundamente embaraçoso) para o governo norte-americano e “would leave us branded with an akward attempt at intervention” (nos deixaria marcados com uma tentativa desajeitada de intervenção) (22). No mesmo telegrama, Dean Rusk forneceu o script (roteiro) da encenação, de forma a disfarçar o golpe de Estado e a intervenção dos EUA, ao recomendar que:

“It is highly desirable, therefore, that if action is taken by the armed forces such action be preceded or accompanied by a clear demonstration of unconstitutional actions on the part of Goulart or his colleagues or that legitimacy be confirmed by acts of the Congress (if it is free to act) or by expressions of the key governors or by some other means which gives substantial claim to legitimacy” (É altamente desejável, portanto, que se forem tomadas medidas pelas forças armadas tal ação seja precedida ou acompanhada de uma clara demonstração de ações inconstitucionais por parte de Goulart ou de seus colegas, ou essa legitimidade ser confirmada por atos do Congresso (se é livre para agir) ou por declarações de governadores-chave ou por outros meios, o que dá substancial caráter de legitimidade) (23).

Havia, decerto, vários grupos que conspiravam. O motim dos marinheiros, em 26 de março, constituiu a provocação que o general Castelo Branco esperava e, sem dúvida alguma, fora encorajada pela CIA, a fim de induzir a maioria dos militares a aceitar a ruptura da legalidade, em face da quebra da disciplina e da hierarquia nas Forças Armadas. O golpe estava previsto depois da Marcha da Família com Deus pela Propriedade, a ser realizada no Rio de Janeiro, em 2 de abril. Mas o general Olímpio Mourão Filho, comandante da IV Região Militar, com sede em Juiz de Fora (Minas Gerais), precipitou os acontecimentos. De qualquer forma, era necessário que o golpe de Estado tivesse uma aparência de legitimidade, conforme Dean Rusk enfatizara, de modo que os EUA pudessem fornecer a ajuda militar aos sediciosos (24). E de seu rancho no Texas, no dia 31 de março, o presidente Lyndon B. Johnson, falando por telefone com o subsecretário de Estado e o secretário-assistente Thomas Mann, deu a luz verdade para que os Estados Unidos ativamente respaldassem o golpe contra o governo de Goulart. “I think we ought to take every step that we can, be prepared to do everything that we need to do” (Acho que devemos tomar todas as medidas que podemos, esteja preparado para fazer tudo o que precisamos fazer) – Johnson ordenou e, em aparente referência a Goulart, acrescentou: “we just can’t take this one” (nós só não podemos pegar este) (25).

Quando Goulart saiu de Brasília, tentando organizar a resistência a partir do Rio Grande do Sul, o senador Auro Moura Andrade cumpriu literal e fielmente o roteiro prescrito. Declarou a vacância da presidência da República, mesmo sabendo que ele, Goulart, não renunciara e continuava no Brasil, e empossou no cargo o deputado Ranieri Mazzilli que, como presidente do Congresso, estava imediatamente na linha de sucessão. Aí, se resistência houvesse e a guerra civil irrompesse, ele poderia requerer a assistência dos EUA, com base no Acordo Militar, renovado através das notas reversais de 28 de janeiro de 1964. Mas não foi necessário. Resistência não houve. E o embaixador Lincoln Gordon pôde declarar que estava “muito feliz” com a vitória da sublevação de Minas Gerais, “porque evitou uma coisa muito desagradável, que seria a necessidade da intervenção militar americana no Brasil” (26). E continuou a insistir na “plausible denial” (negação plausível), i.e., em negar convincentemente a responsabilidade e a cumplicidade dos EUA com o golpe de Estado, norma esta pela qual os governos norte-americanos pautaram muitas vezes suas políticas de intervenção em outros países.

Com a vitória do golpe de Estado, Thomas Mann, na sexta-feira, 3 de abril, telefonou a Johnson e manteve a seguinte conversação:

“Thomas Mann: I hope you’re as happy about Brazil as I am.
Lyndon B. Johnson: I am
Thomas Mann: I think that’s the most thing that’s happened in the hemisphere in three years.
Lyndon B. Johnson: I hope they give us some credit, instead of hell” (27).
(Thomas Mann: Espero que você esteja tão feliz com o Brasil quanto eu.
Lyndon B. Johnson: Eu estou.
Thomas Mann: Acho que foi a coisa mais importante que aconteceu no hemisfério, em três anos.
Lyndon B. Johnson: Eu espero que eles nos deem algum crédito em vez de inferno.)

Conclusão

O golpe de Estado, que derrubou o governo constitucional do presidente João Goulart, triunfou em 1º de abril 1964 e, em homenagem ao Dia da Mentira, logo se denominou Revolução Redentora, antecipando a data para 31 de março, ao mesmo tempo em que, a pretexto de defender a democracia, destruía a democracia e implantava uma ditadura militar. E, com toda razão, ao escrever sobre o golpe de Estado na França, em 1848, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx comentou, ironicamente, que “a sociedade é frequentemente salva todas as vezes que o círculo dos seus dominadores se restringe e um interesse mais exclusivo se sobrepõe. Qualquer reivindicação, ainda que da mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais vulgar, do mais formal republicanismo, da mais  trivial democracia, é ao mesmo tempo castigada como ‘atentado contra a sociedade’ e estigmatizada como ‘socialismo’. Por fim, os pontífices da ‘religião e da ordem’ são eles mesmo expelidos a pontapés de suas cadeiras de Pythia (28), arrancados da cama no meio da noite e da névoa, colocados em camburões, lançados no cárcere ou enviados para o exílio, seu templo arrasado, sua boca lacrada, suas plumas partidas, sua lei rasgada, em nome da religião, da propriedade, da família, da ordem” (29).

Esse trecho de Marx sobre a França de 1848 parece descrever, exatamente, o que ocorreu no Brasil, durante e logo após o golpe de Estado de 1964. Contudo, embora se recomende, aos governantes, estadistas, povos, preferivelmente o ensinamento através da experiência da história, como Hegel ressaltou, o que a experiência e a história ensinam é que os povos e governos nunca aprenderam qualquer coisa da história nem se comportam de acordo com suas lições (30). A CIA, nove anos depois da queda de Goulart, aplicou no Chile a mesma técnica para derrubar em 1973 o governo constitucional do presidente Salvador Allende, mas fracassou quando, em março de 2002, articulou outro golpe para derrubar o presidente Hugo Chávez, na Venezuela.

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* Luiz Alberto Moniz Bandeira é doutor em ciência política, professor titular de História da Política Exterior do Brasil, na Universidade de Brasília (aposentado), e autor de mais de vinte obras, entre as quais O Governo João Goulart: As lutas sociais no Brasil (1961-1964), cuja 8ª edição foi lançada pela Editora Unesp em 2010; Brasil, Argentina e Estados Unidos: Conflito e integração na América do Sul (Da Tríplice Aliança ao Mercosul), De Marti a Fidel: a revolução cubana e a América Latina e Formação do Império Americano (Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque).