O escrete precisa de amor
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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a 13ª crônica da série: “O escrete precisa de amor”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
“Não sabemos admirar, não gostamos de admirar. Ou por outra: — só admiramos num terreno baldio e na presença apenas de uma cabra vadia. Ai de nós, ai de nós! Somos o povo que berra o insulto e sussurra o elogio.”
O escrete precisa de amor (1)
Amigos, é a grande viagem para a vitória, a gigantesca vitória. Logo mais, a cidade vai se despedir do escrete. Não será um adeus, mas um “até o tri”. E ninguém deve ficar em casa. Como se omitir, se a seleção precisa de todos nós e de cada um de nós? Eis a verdade inapelável e eterna: — só o grande amor faz o grande escrete.
E, por isso, temos que inundar o Maracanã com o nosso amor. O escrete quer sentir também a nossa admiração. Eu sei que o brasileiro e Satã têm algo em comum. Como se sabe, o abominável Pai da Mentira é um impotente do sentimento. Não há, em toda a sua biografia, um único e escasso momento de ternura. E o Satanás daria a metade de suas trevas por uma furtiva lágrima de amor. Pois bem. Já o brasileiro é o impotente da admiração.
Não sabemos admirar, não gostamos de admirar. Ou por outra: — só admiramos num terreno baldio e na presença apenas de uma cabra vadia. Ai de nós, ai de nós! Somos o povo que berra o insulto e sussurra o elogio. Mas hoje é a última noite. E a admiração tem que explodir, afinal tem que explodir. É difícil, eu seu que é difícil.
Outra verdade eterna: — como bom brasileiro, o Maracanã nasceu com a vocação da vaia. Tenho dito: — lá, vaia-se até minuto de silêncio. Sem maldade, sem premeditação. A vaia rebenta sem querer, por um desses automatismos inapeláveis. Mas repito: — o doce escrete vai partir. É preciso que as vaias emudeçam. Imaginem vocês se todo o Maracanã, de pé, aplaudir o escrete. A seleção há de ter uma sensação de onipotência.
Pode parecer que eu esteja, aqui, profetizando o tricampeonato. Realmente, eu estou profetizando. Vamos ser tricampeões. Amigos, a grande vitória é anterior a si mesma, ou por outra: — antes de acontecer, ela já estava escrita. Estava escrito que o Brasil seria campeão na Suécia e bicampeão no Chile. Do mesmo modo, está escrito que será tricampeão na Inglaterra.
Os pessimistas (que sempre os há) rosnam pelas esquinas e pelos botecos: — “Humildade, humildade.” Mas é uma abjeção falar em humildade no Brasil. Olhem este povo de paus de arara. Ante as riquezas do mundo, cada um de nós é um retirante de Portinari, que lambe a sua rapadura ou coça a sua sarna. A humildade tem sentido para os césares industriais dos Estados Unidos. Já o pau de arara precisa, inversamente, de mania de grandeza.
Eis a caridade que nos faz o escrete: — dá ao roto, ao esfarrapado uma sensação de onipotência. Em 58, quando acabou o jogo Brasil x Suécia, cada brasileiro sentiu-se compensado, desagravado de velhas fomes e santas humilhações. Na rua, a cara dos que passavam parecia dizer: — “Eu não sou vira-latas!” Em 62, a mesma coisa. De repente, sentimos que o brasileiro deixava de ser um vira-latas entre os homens e o Brasil um vira-latas entre as nações.
Amigos, vamos enxergar o óbvio ululante: — cada exibição brasileira na Inglaterra será uma aventura pessoal de oitenta milhões de sujeitos. Não há distância entre nós e a equipe verde-amarela, ou por outra: há uma distância falsa, uma distância irreal. Na verdade, estamos encarnados no escrete.
O Globo, 15/6/1966
(1) Título sugerido pela edição do livro A pátria em chuteiras (Companhia das Letras, 1994). A crônica foi publicada originalmente na coluna “À sombra das chuteiras imortais” sem título. (N.E.)