Há muitas maneiras de se falar de um homem. Quando esse homem é Graciliano Ramos as possibilidades se ampliam. Sendo muitos os caminhos, optamos por tornar sua obra Vidas Secas, num de seus aspectos, aquele que nos permite um aproximação sem sermos especialistas em literatura, mas profissionais preocupados com as questões de linguagem em suas relações com o pensamento e com o conhecimento humano, enfim como mediadora entre o homem e o mundo.
Nosso objetivo, pois, é tentar compreender o personagem principal do romance, Fabiano, a partir de sua produção linguística, suas reflexões e a expressão do seu mundo interior em dissonância constante com a realidade exterior opressiva, mesquinha e hostil.

A construção ficcional de Graciliano Ramos nos oferece o motivo para pensar a realidade da linguagem e suas implicações na inserção social do homem – aí incluída a sua identidade enquanto derivada da percepção do outro, de si mesmo – bem como a extensão do universo que ele consegue abranger.

A história é uma só, um só drama. O de uma família de retirantes impelida pela seca: Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia. Nesse pequeno mundo pesa um grande silêncio: falta o vento, que traz a chuva, faltam palavras para assegurar maior realidade àquelas vidas difusamente humanas consumidas no mister extenuante de sobrevivência. A gestualidade preenche as lacunas para agregar algum sentido à comunicação rudimentar entre os membros do pequeno grupo. O ver, ou seja, o sentido da visão, assume grande importância nesse contexto. E sobretudo pelos olhos que se dá a apreensão do que se passa ao redor. Quando os personagens falam, estão em presença uns dos outros, comunicam-se por expressões e gestos que são captados através do olhar: “O único vivente que o compreendia era a mulher. Nem precisava falar: bastava os gestos” (Fabiano – p. 123). As crianças (o menino mais velho e o mais novo) não entendem bem uma história que o pai conta porque não lhe vêem o rosto.

Os personagens vivem num mundo concreto, dos objetos, seres e fenômenos reais. O que chega ao entendimento pela via de linguagem verbal com maior nitidez são as palavras que representam esses objetos de existência concreta, do mundo real, da vida cotidiana. Tanto Fabiano como a família só entendem, só apreendem de modo não problemático o mundo dos objetos e das sensações.

A família apresenta uma forte identificação com o ambiente natural, hostil na maior parte do tempo, mas seguro do ponto de vista do conhecimento que tem dele. Na verdade eles não desejam viver num outro espaço, apenas querem condições para permanecer onde estão. Bastaria que a seca acabasse para seus sonhos serem atendidos. Seu maior drama é a vida nômade, é a constante necessidade de mudar para fugir da seca e da morte que ela significa. Transplantar suas raízes enfraquecidas e doloridas para outra terra: recomeçar sempre.

Fabiano é um ser confuso e solitário. Atrapalhado com as palavras e, quando as usa nas relações indispensáveis com os outros homens, sai sempre prejudicado. Ele percebe a existência de dois mundos – o da natureza, dos objetos e da cultura, dos fatos sociais – que ele não consegue conciliar.

No primeiro, sente-se forte e, de certo modo, à vontade; no outro, sente-se fraco, impotente, inferior, desprotegido, à mercê das forças que o esmagam. Os personagens vivem em conflito. Na busca de sua identidade ele tenta integrar-se ora à natureza, ora ao grupo social que o exclui. Essa ambivalência decorre, sobretudo, de sua marginalização: tanto a natureza como a sociedade o rejeitam à sua maneira.

Fabiano vive o pesadelo da seca que o impede de fixar-se na terra, condenando-o a sua vida errante. Ela veio e encontrou-se de trouxa arrumada, pois “Viviam de trouxa arrumada, estavam só de passagem”. De novo a fuga, adiada com esperança, mas fatal e imperativa: o desejo de sobrevivência vence a ilusão e a família se põe em marcha. Fabiano sabe que é “(…) um vagabundo empurrado pela seca” (p. 26). O seu estado de privação e as condições subumanas de vida favorecem a sua rejeição pela sociedade que o humilha e explora.

Assim, configura-se a oposição de dois universos em cujos limites se debate o personagem. De um lado, o universo natural, constituído pelos fatos físicos e biólogos; de outro, o universo da cultura, instituído pela linguagem e ação dos homens sobre o primeiro (o universo natural), constituído pelos fatos da vida social.

Para o personagem essa oposição se manifesta principalmente em sua dificuldade com a linguagem que o descaracteriza como não-humano (universo cultural). Tentaremos demonstrar como essa dicotomia se apresenta no romance.

Se tomarmos as qualidades específicas de Fabiano, temos: não sabe a própria idade, não sabe contar além de três, pensa pouco, deseja pouco, se sente velho, frouxo e covarde, obedecia, evitava os homens, tinha muque e substância, que podem ser agrupadas pelo campo semântico a que pertencem. Assim, não sabe (idade), não sabe (contar) e pensa pouco pertencem ao domínio da ignorância; deseja pouco pertence ao domínio da apatia; velho, frouxo e covarde ao domínio da franqueza, obedece, ao domínio, submissão, evitava os homens, ao domínio retraimento e muque e substância pertencem ao domínio força.

Seguindo do mais específico para o mais geral, encontramos os campos ignorância, apatia, franqueza, submissão, retraimento e força que, por sua vez, podem se reduzir a dois, ou seja, um correspondendo ao aspecto intelectual e volitivo (ausentes ou atenuados em Fabiano) e outro correspondendo ao aspecto físico-força (presente em Fabiano), donde se infere que o termo ou elemento intelectual é negativo, enquanto o termo positivo é a força.

Fabiano é definido intelectualmente por um negativo, ficando, assim, no nível léxico, reduzido à condição física pelo termo positivo – força.

Se a ausência pode determinar uma identificação de Fabiano com o mundo animal, também a presença de traços de significados próprios desse mundo vai projetá-lo naquela direção e demonstrar que há melhor integração de personagem com esse universo, onde se sente forte por corresponder a elemento do seu cotidiano.

Fabiano tem a aparência delineada a partir das semelhanças localizadas no seu ambiente circundante: queixo cabeludo, mãos grossas e cabeludas, peito peludo… o corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados, parecia um macaco, a cabeça inclinava…, montado confundia-se com o cavalo… a pé não se aguentava bem.

Quanto ao comportamento, delineava-se através das conotações: “(…) ele, a mulher e os filhos tinham se habituado à camarinha escura, pareciam ratos”; “(…) aparecera como um bicho, entocava-se como um bicho” (p. 21 e 95); “Fabiano grunhira”, “(…) cavou a areia com as unhas: (…) corcunda, parecia farejar o solo”. “Fabiano rosnava uma objeção” (p. 13, 127 e 154; “(…) anda banzeiro, pesado como um urubu”, “(…) desajeitado como um pato”, “Fabiano atirando coices no chão” (p. 64, 130 e 99); “(…) os meninos precisavam ser duros, virar tatus”, “(…) pés calosos e duros como cascos” (p. 153).
O seu desempenho linguístico lembra, às vezes, o do papagaio, e sua comunicação inclui sons como rosnar, grunhir, berrar, entre outros.

Essas características estão presentes em Fabiano, concretamente, em nível presente, ou seja, de ser, aqui e agora; na esfera da vontade, do desejável, Fabiano gostaria de ser uma onça, enquanto é indesejável a condição de rês. “Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente” (p. 42).

Neste ponto, caberia discutir as razões que levam Fabiano a considerar onça como elemento positivo e rês como elemento negativo. Em levantamento do emprego dos termos bicho e animal, verifica-se que, embora aparentemente se trate de um par de sinônimos, eles assumem, no contexto, significados diferentes e mesmo opostos, dependendo do termo ao qual vão se opor. Quando animal aparece no mesmo contexto que tronco, ramos, folhagens etc, temos animal em oposição a vegetal: defini-se, pois, como um reino – da natureza. Quando animal está em oposição a humano ele vai se definir como uma classe, ou seja, a classe dos animais.

Animal considerado em oposição a bicho vai se definir como elemento pertencente a uma classe zoologicamente inferior ao homem e consequentemente sujeita ao seu poder de vontade, enquanto bicho se apresenta em oposição ao homem e com existência independente dele.
Chega-se, assim, a uma distinção segundo a qual os bichos viveriam em seu ambiente natural, segundo suas próprias leis, enquanto os animais teriam que se adaptar ao ambiente do homem e submeteram-se a ele.

Se no plano do desejo Fabiano gostaria de ser uma onça (“Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira”, p. 42) no plano do indesejável ser tratado como rês (“Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente”, p. 42), “seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia”, p. 27, se afigura como uma indignidade. Cabe observar que os termos, assim considerados, assumem um significado valor simbólico para Fabiano. O que efetivamente caracteriza a distinção, nesse nível da análise, é o que cada um deles representa em relação ao homem.

“Fabiano pensa que é bicho, não gente. Mas luta por valores como respeito e honestidade”.

Assim, rês é animal domesticado, propriedade do homem que a utiliza segundo seus interesses. No contexto da sociedade industrial é bem de consumo, decomponível em partes: carnes, couro, ossos etc, fornecendo matéria-prima para a fabricação de manufaturados. É, pois, elemento dominado, ser fragmentado, passivo: é um animal.

Em contraposição onça é animal selvagem que não se presta à utilização pelo homem, que a teme – pela força e violência – e procura evitá-la. É, pois, o ser na sua integridade, ativo, dominador: um bicho, segundo temos procurado demonstrar.

Fabiano confere uma carga conotativa de valor positivo ao termo bicho. Quando usa para si essa denominação é como se atribuísse uma qualidade, o que se comprova quando, elogiando Baleia por suas virtudes, dirige-se a ela, dizendo: “(…) você é um bicho, Baleia”. Igual carga conotativa é conferida ao termo rês que, pelas suas combinatórias contextuais, vai projetar sobre animal os seus semas negativos, gerando a oposição: ser bicho é positivo, enquanto ser animal é negativo.

Surge, assim, do ponto de vista de Fabiano, uma oposição Bicho/Animal no contexto de sua realidade, que equivale, para nós, à oposição natural/ambiente imposto ou, ainda, restringindo a especificidade do traço distintivo, que seria nesse caso liberdade, distinguir os dois elementos opostos em função da ausência desse sema no primeiro (animal) e presença no segundo (bicho). O sertão é o ambiente natural de Fabiano. Ele está preso à terra por uma condição cultural que foi herdada e que será transmitida aos filhos. Aí ele se realiza como bicho. Temos, pois, finalmente, sob as oposições lexicais a questão da cultura: Fabiano busca fortalecer-se na sua cultura para enfrentar os problemas que ela lhe impõe. O contato com a cultura estranha coloca o problema de diferença que o torna fraco e o desqualifica como homem. Fabiano, a despeito de se considerar ignorante, primitivo, fraco, retraído, submisso, mais animal do que homem, manifesta valores como respeito, honestidade e responsabilidade. “É trabalhador e pessoa de bons costumes”, conforme ele reconhece. Assim, o seu comportamento seguem as nomas válidas para a comunidade social. Como indivíduo, Fabiano deve ser respeitado. Todavia, isso não ocorre e Fabiano, violentado na sua dignidade, privado nas suas necessidades básicas, explorado na sua miséria, amordaçado na sua miséria, amordaçado na sua revolta, é anulado como homem e forçado a buscar nos animais as qualidades necessárias para resistir à marginalização e ao isolamento.

Assim é que, evidenciados os valores humanos presentes em Fabiano, no contexto social urbano ele se define como homem, não apenas por características físicas, mas em função de um perfil moral. Contudo, isso não basta para conquistar o seu espaço na sociedade onde esses valores foram subvertidos: o homem não vale pelo que é, mas pelo que aparenta e pelo que possui: “E pensando bem ele não era homem: era apenas um cabra, ocupado em guardar coisas dos outros” (p. 20). “Não queria lembrar do patrão nem do soldado amarelo. Mas lembrava-se com desespero, enroscando-se como uma cascavel assanhada. Era um infeliz, era a criatura mais infeliz do mundo”. “Não era homem, não era nada. Aguentava zinco no lombo e não se vingava” (p. 140).

Fabiano, em termos de comportamento, identificava-se com o mundo das coisas concretas. A sua linguagem impõe limites estreitos à organização do seu pensamento. Fabiano percebe que a linguagem distingue o homem. Sente que ela é fator importante para a conquista de espaço na sociedade e que dela depende o desenvolvimento da capacidade intelectual, própria do homem. Para que essa faculdade se desenvolva é necessária a organização que é dada pelo sistema linguístico, cuja apropriação se dá no meio social. A cultura que lhe é própria tem como característica o isolamento do indivíduo que, afastado da comunidade onde circulam os discursos, tem reduzida sua possibilidade de desenvolver, de modo satisfatório, sua linguagem. Isto cria uma tensão dialética: uma força o impulsiona a uma identificação com o mundo animal, onde se sente como elemento superior – “(…) na caatinga cantava de galo, arrengava” – na tentativa de negar sua franqueza enquanto indivíduo social, ao mesmo tempo em que se revolta contra o grupo social que não reconhece sua humanidade.

Considerando sua dificuldade para desenvolver condições intelectuais capazes de modificar o ambiente, de transformar pelo poder da reflexão e do pensamento o meio hostil e as condições adversas de vida, ele tenta negar a linguagem para evitar o desequilíbrio, para impedir que a capacidade de perceber e pensar para além da concretude crie uma instabilidade capaz de minar a força física, ao mesmo tempo em que tenta afastar conflitos, porque no ambiente natural, ele não tem que discutir condições.

É ele em função de uma natureza, de fatos próprios do seu cotidiano, do conhecido, do familiar. Enquanto esse meio restrito em que vive o sertanejo, exige dele aptidões necessárias à sobrevivência, como a força e a resistência física, no meio social essa diferença é tratada como inferioridade, o que desafia a compreensão de Fabiano, causando confusão e revolta e leva-o a um sentimento de inferioridade com relação ao homem urbano. Consciente das injustiças de que é vítima, Fabiano não se defende. Percebe que pertence a uma casta inferior cujos valores humanos, como dignidade e respeito, não são reconhecidos. Fabiano não pode compreender claramente os meios através dos quais é possível a realização do desejo de viver.

A solidão e o isolamento de Fabiano em relação à comunidade vão repetir-se no âmbito doméstico, onde a comunicação verbal entre os elementos do grupo apóia-se em exclamações, palavras isoladas, frases pouco compreensíveis. Cada elemento vive isoladamente, há pouca interação. O traço de união é a miséria e o destino comum de retirantes.

Percebe-se que mesmo quando Fabiano sonha ser um homem, ele tenta pela repetição convencer-se de que é um bicho – “Você é um bicho, Fabiano, – Um bicho, Fabiano” (p. 20 e 21), numa tentativa de inibir uma aspiração à condição de homem e reafirmar a sua força.

Ele procura convencer-se de que é bicho e de que deve ser essa a sua condição. Essa forma de evitar conflitos é mais uma manifestação da importância da linguagem como elemento capaz de influenciar o homem.

“Consciente da injustiça que sofre Fabiano não se defende, sem saber como fugir à opressão”.

Considerando o desempenho linguístico de Fabiano, pode-se observar pelo discurso direto – representação concreta da fala – que ele tem dificuldade de articular as palavras para estruturar frases. Coloca-se o problema da abstração: não tendo facilidade de abstrair, ele só vai entender, conseguir apreender signos que tenham referentes concretos, referentes que sejam visíveis, palpáveis. Quando tenta estabelecer uma comunicação, geralmente há um desencontro: conteúdo e forma fragmentam-se. Assim, não consegue expressar-se de modo satisfatório.

Todavia, a despeito de toda a sua limitação, Fabiano, como falante nativo, demonstra uma percepção aguçada da importância da linguagem para a convivência social. Vê nela aquilo que a Ciência Linguística procura demonstrar: um instrumento que, filtrando o real, permite o conhecimento do mundo.

Por outro lado, se aceitamos que o pensamento e a linguagem são interdependentes, torna-se evidente a causa da incapacidade de Fabiano organizar o seu universo mental.
Se o pensamento se processa pela linguagem, a expressão verbal do pensamento se processa através de uma sequência, de uma cadeia sintagmática em que cada elemento ocupa o seu lugar, o que explica, no caso de Fabiano, como as imagens, as impressões e as sensações se sobrepõem em sua mente, sem que ele mesmo consiga entender, pela incapacidade de organizá-las. O personagem vive num estado permanente de confusão.

Mas isso não o impede de perceber que toda a sua limitação mental decorre da limitação de seus recursos linguísticos e que o domínio da linguagem lhe permitiria romper a tensão em que se perde sua identidade.

Fabiano percebe também que: a linguagem distingue o homem; ela é um instrumento de pensar o mundo; o conhecimento depende dela e também a vida em sociedade; ela exerce um grande poder sobre os indivíduos; pode ser instrumento de dominação, de exploração; pode libertar ou oprimir.

Fabiano não consegue se defender, gritar por seus direitos mais elementares. Nesse nível, o papagaio é um símbolo muito triste no romance. Ele encarna o desempenho linguístico de Fabiano: totalmente ineficaz, inútil. O papagaio reproduz grosseiramente palavras e mesmo frases, todavia, o faz graças a um automatismo, dada a sua incapacidade de compreender as regras linguísticas que lhe assegurariam a competência e a capacidade de produzir um discurso capaz de dar conta de uma realidade nova. E mais, limita-se a repetir sequências linguísticas sem ter a menor noção de seu significado. É o que ocorre com Fabiano, quando se restringe às frases feitas, palavras cujo sentido desconhece. Sua produção linguística realiza-se nos limites do que a língua tem de mais geral. Predominam no seu discurso frases curtas, incompletas.

“Sua fala é diretamente relacionada com a sua experiência. Sua palavra exprime fatos concretos”.
Pode-se ainda perceber que o sintagma também é raro, realizando sua comunicação no paradigma onde sua frase se reduz à palavra que, quase sempre, alterna-se com interjeições, exclamações. “Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto” (p. 79 e 80).

No seu vocabulário elementar, os impropérios ocupam lugar de destaque: capetas, safado, condenado do diabo, mofino, inferno, ladrões, ladroeira, cambada de cachorros, preguiçosos, escarro de gente, faladores, miseráveis, pestes, excomungados.

Convém observar que o vocabulário de impropérios está contido nos exemplos arrolados. São estas mesmas palavras que se repetem em todo discurso direto de Fabiano. Algumas, como por exemplo: peste(s) vai ter maior frequência, dando-nos uma indicação de que, mesmo no domínio xingamento, onde se esperaria uma variação maior, o vocabulário do personagem é igualmente restrito.

Os elementos abstratos da linguagem, aqueles cujos referentes têm existência meramente linguística, como as conjunções, desafiam o seu entendimento e, como se prestam a construções subordinadas, que têm um alto grau de complexidade – por depender de muitas transformações – criam embaraços para Fabiano, que as coloca numa sequência como se, sozinhas, fossem capazes de comunicar alguma coisa, como se elas constituíssem recortes do mundo extralinguístico “(isto é, contanto, quer dizer, enfim, é conforme etc)”.

Seu vocabulário está diretamente relacionado com a sua experiência e os pensamentos que expressa melhor são aqueles que se materializam linguisticamente através de comparações com fatos concretos como: “(…) caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer, não se diferenciava muito da bolandeira do Seu Tomás. E ele Fabiano era como a bolandeira, não sabia por que, mas era”.

A limitada linguagem de Fabiano é, assim, expressão da vida miserável e mesquinha, limitada, a que ele e os seus estão sujeitos. Uma vida que faz dele uma coisa entre outras, sem ter o direito de expressar vontades ou sentimentos. Mas este é tema para outro artigo.

* Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

Bibliografia
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EDIÇÃO 32, FEV/MAR/ABR, 1994, PÁGINAS 65, 66, 67, 68, 69