A condição subalterna que lhes confere a organização social, fundada na rígida estrutura familiar burguesa, reflete-se em todas as dimensões de sua vida e se expressa na lei que lhes restringe direitos e lhes impõe deveres, moralmente definidos e discriminatórios. Por exigência mesma do processo social, a luta organizada das mulheres vem deixando de ser restrita à chamada condição feminina e à quebra das restrições legais a elas impostas, para se transformar na luta pela solução dos problemas decorrentes das condições objetivas de vida, pela conquista da liberdade e da participação, enquanto mulher e enquanto sujeito. Nessa perspectiva, algumas questões se colocam para a organização e a luta das mulheres: existem diferenças entre as mulheres? O que explica as diferenças? Como tratá-las?

Os movimentos e organizações de mulheres, em geral, congregam somente as mulheres urbanas. No entanto, as que vivem no campo representam um peso significativo no conjunto das mulheres. No Brasil elas somam quase metade da população feminina.

Por sua própria situação objetiva, dispersas em termos dos lugares de residência e de trabalho, e pela natureza específica de sua realidade, as mulheres rurais são privadas do acesso aos meios de vida e de luta, como informação, instrução, espaços culturais etc, de que gozam as mulheres da cidade. Por isso, têm mais dificuldades para desenvolver sua consciência política e avançar em sua organização. Mas não é só no plano organizativo que as mulheres do campo são, com raras exceções, deixadas de lado. Nos debates, na produção intelectual, nos projetos elas são tratadas no conjunto, ou nem são consideradas.

Isso não quer dizer que as mulheres do campo não lutam por seus direitos e por sua libertação. Ao contrário, sobretudo as mulheres trabalhadoras, tendo que enfrentar a dura realidade da vida rural que lhes coloca em primeiro lugar a busca da sobrevivência, elas têm de se engajar, cada vez mais, na luta dos trabalhadores rurais pelo direito de existir como cidadão e pelo direito de viver.

SITUAÇÃO DA MULHER NO CAMPO

Se se pode falar em diferenças entre as mulheres da cidade e as do campo, dada a natureza específica da realidade rural, aqui também as mulheres vivem situações diferentes. É claro que a mesma lógica, os mesmos valores, as mesmas normas que orientam a sociedade em geral orientam também a vida no campo. Mas,esses elementos aí se expressam sobre uma realidade material concreta específica, trazendo implicações diferentes para a vida das pessoas. Diferenças que não se explicam pela desigualdade formal de direitos e deveres, mas pela desigualdade de classes.

Para se compreender essa questão é necessário traçar um quadro da realidade rural, onde se identificam diferentes situações nas quais se inserem as mulheres. O pano de fundo para se definir esse quadro é a estrutura de distribuição da terra – o meio fundamental de produção da vida no campo. No Brasil a estrutura fundiária mostra, de um lado, alto grau de concentração da propriedade e, do outro, um processo de minifundização, significando que a maioria das terras se concentra nas mãos de poucos, enquanto pequena parte delas se divide em grande número de ínfimas parcelas, das quais os trabalhadores têm a propriedade formal ou a simples posse.

Esse perfil de distribuição fundiária, expressando a desigualdade no acesso à terra, está na base da diferenciação dos trabalhadores e define diferentes condições de vida das mulheres.

1 – As grandes propriedades, em número reduzido e ocupando a maior parte das terras, são, muitas delas, inexploradas – os chamados latifúndios improdutivos. Ou são exploradas na forma da empresa capitalista, empregando o trabalho assalariado, ou na forma do arrendamento e da parceria pelos pequenos produtores – os latifúndios por extensão.

2 – As médias propriedades, também em menor número em relação às pequenas, são exploradas ou na forma da empresa capitalista, ou pelo trabalho familiar do próprio proprietário, complementado pelo trabalho assalariado eventual. 3 – As numerosas pequenas parcelas de terra são exploradas pelo trabalho familiar dos pequenos produtores, proprietários ou posseiros.

Essas formas de acesso e de exploração da terra, correspondendo a diferentes formas que assume o trabalho, expressam a estrutura de classes no campo. Segundo dados do IBGE, em termos absolutos o número de mulheres na força de trabalho rural vem crescendo, embora sofrendo uma diminuição em 1980, explicada pela expulsão dos trabalhadores de suas terras, e maior inserção dos homens no trabalho assalariado.

Em 1976 mais de 15 milhões de trabalhadores representavam a força de trabalho ativa no campo, sendo 68% camponeses e 32% assalariados.
As mulheres têm um peso significativo, sobretudo na categoria dos trabalhadores camponeses (proprietários, posseiros, rendeiros e parceiros).

O avanço do capital no campo na última década – que se faz expulsando os camponeses de suas terras e intensificando o processo de proletarização – vem modificando a estrutura do trabalho, com o crescimento dos assalariados, sobretudo os temporários, e diminuição dos camponeses, principalmente a categoria dos parceiros e rendeiros. Isso se explica pela transformação das propriedades grandes e médias em empresas rurais, aliás, com o incentivo do Estado.

OS DIVERSOS PROBLEMAS

Essas situações estruturais definem as condições objetivas das mulheres rurais e apontam para perspectivas de vida e para problemas diferentes.
As mulheres da categoria dos grandes proprietários (em número reduzido), com acesso a todos os benefícios sociais e culturais, se situam em posição privilegiada em relação às outras, nas comunidades rurais. O mundo dessas mulheres está dividido: o mundo do trabalho para a produção material, do qual elas não participam, mas dele se beneficiam, e o mundo da família e das relações na comunidade, onde elas se movem com certo grau de liberdade a partir do prestígio que lhes é dado pelo mundo do trabalho. Elas têm como referência a vida da cidade.

As mulheres da categoria dos médios proprietários, se situam na escala intermediária, se consideramos o nível de vida, seja material ou não.
Nessa categoria há uma penetração entre os dois mundos e, embora elas participem do mundo do trabalho, essa não é sua prioridade. Sobretudo as mulheres dos empresários rurais têm sua prioridade de vida no mundo da organização familiar e das relações sociais fora da família.
Em muitos casos o trabalho da mulher se realiza fora do mundo da produção das atividades na lavoura. Elas realizam atividades de maior prestígio, como, por exemplo, de professora. Em geral, têm como referência a vida das mulheres da escala mais alta.

Na categoria dos camponeses, os pequenos produtores (proprietários, posseiros, parceiros e arrendatários), está o maior número de mulheres. Com baixíssimo nível de vida, elas têm sua preocupação voltada para produzir a sobrevivência. O mundo do trabalho não se separa do da família. A família é, ao mesmo tempo, unidade de produção econômica e unidade social; e a comunidade é um prolongamento da família. Nesse mundo as relações de trabalho e as relações familiares se interpenetram e se completam.

Sob a aparência de autonomia e independência elas se defrontam com condições desfavoráveis à realização de sua vida. Para conseguir os meios de viver são exploradas com seus companheiros e filhos, seja pelo capital, seja pela grande propriedade. Elas têm todo o seu tempo dividido entre as tarefas de produção da vida material na roça ou em casa, no cuidado dos filhos e nas demais tarefas familiares e sociais, não lhes sobrando nenhum tempo para si próprias. O empobrecimento crescente e a dificuldade enfrentadas pelos camponeses para produzir a sobrevivência da família em seu pedaço de terra obrigam os homens a buscar alternativas para completar o seu rendimento, trabalhando como assalariados temporários nas terras dos grandes e médios proprietários capitalistas, mesmo em outras regiões, deixando suas lavouras sob a responsabilidade das mulheres e crianças. E, na medida em que a busca dos meios de vida é mais importante,
muitas delas têm também de trabalhar para os outros, engrossando o contingente das mulheres assalariadas.

As mulheres proletárias, assalariadas de forma permanente ou temporária, já em grande número e tendendo a crescer, compõem com as camponesas a grande força de trabalho feminino na produção agrícola. Na medida em que são obrigadas a buscar os meios de vida através do salário, trabalhando nas grandes e médias explorações capitalistas, elas têm já o seu mundo dividido, pelas próprias condições objetivas de sua vida. O mundo do trabalho é para elas prioritário, ocupando a maior parte de seu tempo, do qual elas não têm nenhum controle e está separado do mundo das relações familiares e comunitárias, ao qual elas têm de se dedicar, às vezes de forma contraditória. No trabalho elas participam de um conjunto de relações determinadas pela lógica do capital, conflitantes com as relações na família; trazendo-lhes uma situação contraditória em que se misturam sentimentos de independência e submissão.

A situação estrutural diferenciada define a diferente inserção das mulheres nos diversos espaços sociais, seu lugar, suas relações, seus problemas.

A MULHER NA FAMÍLIA

Se considerarmos alguns elementos que se apresentam como universais na constituição da unidade familiar, como a forma monogâmica, a consagração pelo casamento, as leis e valores morais, temos a impressão de que as famílias de todas as categorias das mulheres rurais são iguais; como de resto todas as famílias. Essa concepção de família universal encobre a questão das desigualdades de classe e mascara as relações básicas estabelecidas entre os membros da organização familiar, determinadas pelas condições objetivas dessas pessoas.

É certo que muitos desses elementos, seja de ordem estrutural, valorativos ou morais, –, como machismo, submissão da mulher, autoridade, obediência, fidelidade etc. – estão presentes nas diversas organizações familiares. No espaço da família é claramente definido e separado o lugar do homem do da mulher, não só sob o ângulo da relação de autoridade e obediência, mas até mesmo da divisão do espaço físico moralmente definido: "lugar de homem e cachorro é da sala para a rua, lugar de mulher e gato é da cozinha para o quintal".

Essa divisão expressa também a distribuição de tarefas, em que as mulheres se encarregam dos cuidados da casa e da educação dos filhos, enquanto ao homem cabe a direção da família e do trabalho de produzir o seu sustento. As tarefas das mulheres são consideradas como trabalho improdutivo e não socialmente necessário. Porque não remuneradas, essas tarefas e o lugar da mulher na família são valorativamente menos prestigiados. Essa diferenciação, por sua vez, define a discriminação sexual da mulher. A pomposa expressão burguesa para designar a mulher "a rainha do lar" deveria ser substituída pela expressão real "a escrava do lar".

Mas esses elementos se manifestam e são percebidos e valorizados pelas mulheres de forma diferente em cada realidade familiar. Se considerarmos o significado da unidade familiar no processo de produção material da vida, o lugar dos indivíduos e a natureza das relações que daí decorrem, temos evidenciadas as diferenças tanto ao nível interno das famílias e em sua inserção na sociedade, como ao nível da percepção das mulheres que delas participam.

A MULHER NO TRABALHO

Essa mesma diferenciação se observa na organização do trabalho, isto é, no espaço das relações que se estabelecem no processo de produção das condições materiais da vida. Não se trata de apenas distinguir entre a mulher na força de trabalho e a mulher fora da força de trabalho. Trata-se de compreender que a participação da mulher no espaço do trabalho e a natureza dessa participação vão direcionar sua inserção nos demais espaços sociais. Isto quer dizer que a fusão, ou separação, entre a família e o trabalho define o lugar, a participação e a importância das mulheres nos outros espaços como sindicato, partidos políticos, organizações comunitárias.

Nessas diversas dimensões da vida das mulheres se expressa o grau de exploração, discriminação social, repressão ou de liberdade.
Portanto, os problemas enfrentados pelas mulheres no seu dia-a-dia e a luta por sua libertação são diferentes em natureza e em proporção, e são determinados por sua situação de classe.
Há que se considerar, ainda, as diferenças regionais, a histórica e cultural, a proximidade ou não dos grandes centros, o acesso aos meios de comunicação, a atuação do Estado e de outras organizações políticas, culturais e religiosas.

Considerando esse quadro estrutural diferenciado, a questão mais importante que se coloca é: qualquer movimento ou luta pela libertação da mulher, pela solução de seus problemas, precisa compreender as mulheres inseridas em situações concretas específicas e não colocá-las todas "no mesmo saco", fechando-o com a rubrica MULHER.

Nesse sentido, também é preciso considerar que as categorias mais importantes são as das mulheres trabalhadoras – camponesas e proletárias – não só porque formam o maior contingente das mulheres rurais mas, sobretudo, porque sendo elas submetidas a todas as formas de exploração, a luta por sua libertação significa a luta pela libertação de todas as mulheres e pela libertação de todos os trabalhadores. A conquista de sua liberdade e de sua realização enquanto mulher é a conquista da liberdade enquanto sujeito de sua própria história.

* Otávia Fernandes é professora de sociologia e membro do Centro de Estudos Rurais do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG.

EDIÇÃO 11, AGOSTO, 1985, PÁGINAS 33, 34, 35, 36, 37