O negócio é falar mal da CLT
No ano de 2006, em pronunciamento no ato de inauguração da nova sede do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o Ministro Orlando Teixeira da Costa deixou às claras como no Brasil o descumprimento deliberado da legislação trabalhista havia se tornado “um bom negócio” para o empregador, o qual chega ao ponto de vislumbrar a estrutura da Justiça do Trabalho como um apêndice de seu departamento de recursos humanos.
Mas o problema é ainda maior porque parte do segmento empresarial não se contenta em descumprir a lei, pois busca meios para agir dessa forma como se tivesse o direito de fazê-lo, utilizando-se da retórica de que a lei trabalhista é retrógrada, velha, ultrapassada ou de inspiração fascista. Por uma impressão pessoal considera ser possível não cumprir a lei. Mas, claro, sempre que o empregado pratica um ato que não lhe agrada trata logo de aplicar, de forma unilateral, a lei (a mesma CLT), dispensando o trabalhador por justa causa ou efetuando desconto no seu salário, não se esquecendo, aliás, de todos os dispositivos legais que possa utilizar para inibir as reações dos trabalhadores, como na greve, por exemplo.
Fato é que falar mal da CLT, criando uma espécie de senso comum negativo a seu respeito, se insere no contexto da obtenção de vantagens econômicas que a prática do desrespeito aos direitos dos trabalhadores possibilita.
O interessante é que não se precisa explicitar o que, concretamente, existe na CLT que “atrapalha o desenvolvimento econômico das empresas”. Basta dizer que ela é “velha” e, pronto, já se tem a fórmula mágica para cometer o ilícito como se ilícito não fosse e ainda para acusar de imoral ou de mal agradecido o trabalhador que vai à Justiça buscar os seus direitos.
Esse contexto se desenvolveu no Brasil ao longo de décadas, desde o final da década de 50, quando a CLT tinha pouco mais de dez anos, e sempre por intermédio dos argumentos da “modernidade” e da adaptação às novas exigências do mercado.
Aliás, pouco importa também que a CLT ao longo de todos esses anos, desde 1943, tenha sido quase que integralmente reescrita, que praticamente nenhum direito que se aplica nas relações de trabalho atualmente esteja inscrito na CLT (repouso semanal remunerado, férias, 13º. salário, FGTS, limitação da jornada, adicional de horas extras etc.) e menos ainda que a maioria das reformas, já implementadas, tenha sido para, como gostam de dizer, flexibilizar” as leis do trabalho (trabalho temporário, 1974; estágio, 1977; vigilante, 1983; terceirização, 1993; cooperativa de trabalho, 1994; banco de horas, 1998; contrato provisório, 1998; contrato a tempo parcial, 1998; recuperação judicial, 2003; primeiro emprego, 2003; Programa de Proteção ao Emprego, 2015 etc.)
Essa fórmula discursiva, de atacar a CLT, foi tão difundida que acabou se incorporando à cultura nacional, de tal modo que se alguém quiser “se dar bem”, no sentido de ganhar notoriedade midiática, basta que no meio do discurso lance mão de um comentário crítico à CLT, não se exigindo, claro, que saiba do que está falando.
A máxima é a seguinte: quem estiver desgastado com os setores da classe dominante ou quiser espaço na grande mídia é só vir a público e falar mal da CLT, mesmo que, repito, nada saiba sobre o Direito do Trabalho, sendo que a fórmula serve também para quem não queira assumir o fracasso de um empreendimento mal gestado ou não pretenda acusar o capital concorrente pela opressão que lhe fora imposta. Lembre-se que a concorrência é o que impera na lógica empreendedora, sendo considerado o bom empreendedor aquele que vence, e, claro, se uns ganham outros perdem. Lembre-se, ainda, que o capital não está linearmente distribuído entre os que se consideram capitalistas e, portanto, essa concorrência não se dá a partir de preceitos igualitários.
É interessante verificar como as críticas à CLT e à Justiça do Trabalho aparecem de forma completamente descontextualizada e oportuna em discursos de pessoas que jamais abriram a CLT e que não conhecem nem um pouquinho da história da legislação do trabalho no Brasil e da atuação da Justiça do Trabalho.
Em 2003, Glaci Zancan, professora titular do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da UFPR (Universidade Federal do Paraná), que foi presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) de 1999 a 2003, após ver a instituição condenada em alguns processos trabalhistas, se considerou legitimada para falar em tom professoral sobre o processo trabalhista e a atuação de advogados e juízes trabalhistas, passando, então, a explicar, por meio de um artigo, com 3.000 caracteres, publicado em espaço nobre do jornal Folha de S. Paulo, como se deveria conceber a ciência processual, quais deveriam ser as características da atuação jurisdicional e como deveria ser ministrado o ensino jurídico[1].
Em 2007, ao dar uma entrevista para o mesmo jornal, falando de conjuntura política, o empresário Henry Maksoud não fez por menos e não perdeu a oportunidade para justificar a decadência de sua influência no cenário hoteleiro do país por meio de um ataque à CLT. Lá pelo meio da entrevista, sem que nada lhe tivesse sido perguntado a respeito, disse:
FOLHA – Como o sr. é punido?
MAKSOUD – Me punem, eles punem você também. Você é punido quando, no fim do mês, não leva dinheiro para casa, leva dívida. Não trabalho livremente. Há coisas que não deveriam existir neste país.
FOLHA – Por exemplo?
MAKSOUD – Aquele livro amarelo que está lá [aponta a estante em frente], a Consolidação das Leis Trabalhistas, só aqui existe isso e é um dos troços que vêm mantendo o país subdesenvolvido e, se continuar existindo, vai manter o país assim ao longo da vida. Não tem nada a ver com Justiça. É um troço estapafúrdio, travesseiro dos advogados. Segura o progresso e vai continuar segurando. O Brasil não cresce por causa disso. E também não tem como crescer por causa do sistema tributário.[2]
Em 2013 foi a vez de Olivier Anquier, que, para ganhar adeptos no enfretamento que fazia a um site que havia feito críticas aos preços cobrados em seus restaurantes, não teve dúvidas de que a melhor fórmula para alcançar esse objetivo seria atacar os direitos trabalhistas, fingindo não saber que na França o custo do trabalho é muitas vezes maior que o do Brasil[3]. Lá no meio do artigo, disse o cozinheiro:
O custo estratosférico dos encargos e obrigações trabalhistas – e seus absurdos efeitos colaterais, como processos sistemáticos, sistematicamente perdidos, com indenizações de cifras irreais (e sublinho que não se debate aqui o mérito das decisões jurídicas, mas sim os altíssimos valores das indenizações) – é um capítulo à parte.[4]
Em 2016, enquanto se consolida o golpe de Estado, cujo maior fundamento foi o de quebrar a regularidade institucional para facilitar o advento de reformas trabalhistas precarizantes para favorecimento do capital internacional, as pessoas que querem espaço na grande mídia ou pretendem se aliar ao novo “establishment” já aprenderam a fórmula: falar mal da CLT.
Flávio Rocha, Presidente da Riachuelo, foi além[5]. Aproveitou a oportunidade para fazer de vítimas as empresas que foram condenadas por exploração de trabalhadores em condições análogas às de escravo, sugerindo que as condenações são “ideológicas” porque, afinal, teriam sido baseadas em uma interpretação exagerada da expressão “jornada exaustiva”. Mas, afinal, qual cognição falta a esse senhor para compreender o que está dito, expressamente, na Constituição Federal (art. 7º. XIII, da CF), com esteio da Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 24)?
Os limites da jornada de trabalho são 8 horas diárias e 44 horas semanais e o número máximo legal permitido para as horas extras (praticadas de forma não habitual) é de duas horas:
Art. 59 – A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho.
Assim, se crítica pode ser realizada às decisões judiciais que interpretam o dispositivo legal que trata do crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, que está regulado no Código Penal (art. 149)[6] e não na “retrógrada CLT”, que foi introduzido no cenário jurídico nacional em 2003 pela Lei n. 10.803, e que não é aplicado pela Justiça do Trabalho e sim pela Justiça Federal, é a de que não se tem considerado, como deveria, tipificado o crime quando se exige do trabalhador, de forma habitual, uma jornada de trabalho superior a 10 horas. Verdade que uma interpretação exagerada e ideológica da lei, patrocinada por uma doutrina ligada aos interesses do capital, conseguiu emplacar o permissivo jurídico para a realização de jornadas de trabalho de até 12 horas, primeiro pelo sistema 12×36, que, na linha da geração de insegurança jurídica aos trabalhadores, foi ampliado para os esdrúxulos regimes 2×2, 4×2 e, mais recentemente, 5×1, ou seja, cinco dias com jornadas de 12 horas e um dia de folga (que é quase sempre trabalhada). Então, com muito favor se poderia admitir, sem margem a qualquer dúvida, que jornada exaustiva é aquela que ultrapassa 12 horas por dia, quando prestada de forma habitual.
Diante desse critério, alguém mais atento, tentando refutar a conclusão acima expressa, diria: “Bom, mas aí haverá condenação por trabalho em condições análogas às de escravo em quase todas as relações de trabalho no Brasil”. Eis a triste verdade, que apenas demonstra qual é de fato o problema das relações de trabalho no Brasil, ainda mais quando se sabe que sequer as horas extras prestadas são integralmente pagas e muitas empresas ainda se valem de mecanismos para fraudar os registros das efetivas horas trabalhadas, apresentando-os, impunemente, nos processos judiciais!
E o governo interino e ilegítimo aprendeu muito rápido a lição. Percebeu que a fórmula básica para se manter no poder seria a de anunciar reformas na CLT.
Diante da reação das centrais sindicais deixou de falar nisso durante algum tempo, mas bem na semana da votação do impeachment no Senado, mais precisamente um dia antes, ou seja, em 24 de agosto de 2016, chamou empresários para um evento no Palácio do Planalto e, em manifestação pública, fez o quê? Defendeu a reforma trabalhista, que, claro, muito rapidamente foi repercutida na imprensa[7]. Não expressou, é verdade, que tipo de reforma seria essa, mas ela pode ser extraída das manifestações recentes dos Ministros do Trabalho e da Saúde[8].
Vide, por fim, o que se passou com o Ministro do STF Gilmar Mendes, que, vendo-se em choque com a grande mídia por ter defendido a imposição de limites à operação Lava Jato, não perdeu tempo e, na primeira chance, atacou a CLT:
Eu tenho a impressão que a CLT tem que passar por reformas e que nós também no âmbito da Justiça, da Justiça do Trabalho, do Supremo Tribunal Federal, temos que fazer uma releitura atualizada da legislação. Hoje nós não temos só o desafio de proteger o empregado, ou o chamado ex-empregado. Nós temos que garantir o sistema de empregabilidade. Esse é o grande desafio.[9]
Como se vê, essas proposições, “data venia”, não podem ser consideradas para o efeito de um debate sério e fundamentado sobre o Direito do Trabalho, vez que as questões próprias da origem e da efetiva evolução da legislação do trabalho no Brasil, do papel que a proteção do trabalho exerce no modelo de produção capitalista, no sentido de uma regulação que procura sustentabilidade e viabilidade para o modelo, do regramento que concretamente se aplica nas relações de trabalho no Brasil (que não é a CLT de 1943) e no mundo (cujo custo é bem superior ao do Brasil[10]), das necessárias reformas que precisam ser feitas para ampliar as garantias jurídicas dos trabalhadores (notadamente no que se refere à proteção contra dispensa arbitrária, à participação na gestão da empresa, no respeito ao direito de greve, na eliminação do banco de horas, da terceirização, do efetivo respeito à limitação da jornada e aos demais direitos trabalhistas) e com isso minimizar as perversidades do sistema, não passam pelas preocupações reais daqueles que, publicamente, se manifestam na grande mídia sobre a CLT (que nunca leram ou que deixaram de ler há muito tempo), afinal o negócio, o bom negócio, que sequer exige fundamentação específica, é, simplesmente, falar mal da CLT.
NOTAS
1 ZANCAN, Glaci. “Quanto o ‘Processo’ se torna real”. Folha de S. Paulo, 04/08/03, p. A-3.
2 Entrevista da 2ª, a Guilherme Barros. Folha de S. Paulo, 24 de dezembro de 2007.
3 Segundo estatística elaborada pela Eurostat, órgão de estatísticas oficial da União Européia, os custos não salariais (previdência social e assemelhados) incidentes na França são da ordem de (33,1 %), um dos mais altos da União Européia. (Dados colhidos em 27.08.2016 em: http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Wages_and_labour_costs/pt) Por sua vez, os custos não salariais (previdência social, SAT etc) incidentes no Brasil, a cargo dos empregadores, são de cerca de 23%.
4 ANQUIER, Olivier. “Com quantos reais se faz um omelete”. Folha de S. Paulo, 22 de abril de 2013, p. A-3.
5 ROCHA, Flávio. “Ideologia fora de moda”. Folha de S. Paulo, 23/08/16, p. A-3.
6 Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
7 http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/08/temer-defende-reforma-trabalhista-e-diz-que-e-saida-para-manter-empregos.html, acesso em 27/08/16.
8 Vide: http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/07/ate-o-fim-do-ano-governo-vai-enviar-proposta-trabalhista-e-de-terceirizacao.html; http://oglobo.globo.com/economia/flexibilizacao-da-clt-entra-na-pauta-do-governo-temer-19353463
9 SILVEIRA, Daniel. “Ministro quer mudanças na CLT que ‘não defendam só o empregado’.” In: http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/08/ministro-defende-mudancas-na-clt-que-nao-defendam-so-o-empregado.html, acesso em 27/08/16.
10 Basta consultar o relatório produzido pela Eurostat, órgão de estatísticas oficial da União Européia, acessível via internet: http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Wages_and_labour_costs/pt
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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?.
Publicado no Blog da Boitempo mensalmente às segundas.