Inquestionavelmente, jamais haveria a conferência Genebra-2 sobre a Síria,[1] não fosse a estratégia brilhante do ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov, que ofereceu proposta positiva ao presidente da Síria Bashar al-Assad, pela qual a Síria entregaria ao ocidente seu arsenal químico, para evitar ataque militar de forças ocidentais.

Kerry introduzira a entrega das armas químicas como ‘condição’ para não atacar a Síria, em conferência de imprensa, em setembro de 2013, em Londres, com o secretário de Relações Exteriores britânico, William Hague. Respondendo a uma pergunta de jornalista, sobre o que Assad poderia fazer para deter um ataque de forças dos EUA e OTAN, Kerry respondeu “Umm… ora… Ele poderia entregar todas as suas armas químicas à comunidade internacional semana que vem. Entregue tudo! Tudo, sem demora. e permita total e completa transparência. Mas é claro que ele nunca fará tal coisa. Obviamente não é possível.”

O tom de voz de Kerry baixou, na última parte da fala, porque percebeu que metera o pé, até o joelho, numa montanha de excremento. Hoje já é evidente que Kerry, já ali, começou a preocupar-se porque, se Assad viesse a fazer o que Kerry supunha que fosse impossível e entregasse seu arsenal químico, não haveria ataque militar do ocidente contra a Síria, porque o casus belli imposto pelos EUA teria sido retirado da mesa.

Lavrov respondeu rapidamente ao ultimatum irrefletido e tolo de Kerry, anunciando que Assad aceitava os termos dos norte-americanos. Kerry então foi obrigado a reunir-se com Lavrov em Genebra, onde Rússia e EUA definiram um contexto para o desarmamento químico da Síria. Diferente de Kerry, que nunca trabalhou como diplomata em campo, Lavrov é diplomata experimentado, que trabalhou na União Soviética e no Sri Lanka, falante do idioma Sinhala, que já ocupou inúmeras posições do Ministério de Relações Exteriores da Rússia, inclusive como embaixador à ONU. Antes de ser nomeado ao Sri Lanka, o embaixador Lavrov serviu na República Russa de Tuva, de maioria budista.

Críticos que trabalharam na campanha de 2004 dizem que, se Kerry dedicasse mais tempo à campanha presidencial que ao próprio corte de cabelo, poderia ter derrotado George W. Bush.

As ondas de choque geradas pela notícia de que o ocidente planejava ataque militar contra a Síria agitaram as fileiras do Conselho Nacional Sírio rebelde, (SNC) em Istanbul e nos corredores do poder em todas as capitais regionais pró-guerra – Ancara, Riad, Doha, Paris e Jerusalém. Lavrov e o presidente Vladimir Putin podem orgulhar-se de ter arrancado o Oriente Médio da beira da guerra, para a mesa das negociações de paz.

A Conferência Genebra-2, que, de fato, acontecerá em Montreux, Suíça, acontece depois de Genebra-1 realizada sob os auspícios do Grupo de Ação na Síria da ONU, em junho de 2012. Essa conferência, presidida pelo ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, aceitou a formação de um governo de transição para a Síria, composto de membros da oposição síria e do governo sírio. Genebra-2 estava prevista para acontecer em julho de 2013 mas foi adiada até setembro. A Síria foi pressionada pelo governo de Mohamed Morsi no Egito, e também pelo governo da Turquia, a participar de Genebra-1 e fazer consideráveis concessões à oposição. Dificultando ainda mais a situação da Síria, as potências ocidentais rejeitavam a ideia de que o Irã participasse das conversações. A Síria, exceto pelo apoio da Rússia, estaria sozinha.

Com a derrubada de Morsi e de seu governo da Fraternidade Muçulmana no Cairo, pelos militares egípcios pró-Síria, e diante da surpreendente aceitação, por Lavrov e Assad das ‘condições’ apresentadas por Kerry, de trocar um ataque militar por um acordo para entregar seu arsenal químico, Damasco assistiu a uma dramática mudança na correlação de forças; e a seu favor. Depois da derrubada de Morsi, Assad declarou, triunfante, o fim do “Islã político” como força no Oriente Médio. A própria facção síria da Fraternidade Muçulmana, apoiada pelo Qatar e que participa da coalizão ‘rebelde’ foi eclipsada pelos salafistas ainda mais radicais apoiados pela Arábia Saudita, com a Al-Qaeda e outros grupos radicais.

Dia 25/6/2013, outro movimento que beneficiou Assad, quando o emir do Qatar, Sheikh Hamad bin Khalifa al Thani, abdicou a favor de seu filho, Tamim bin Hamad al Thani. Quase imediatamente, Tamim começou a retirar o apoio dos qataris à Fraternidade Muçulmana. O novo emir deu ao líder espiritual da Fraternidade, Sheikh Yusuf al Qaradawi, 48 horas para deixar o Qatar. Tamim também começou a fechar a torneira do dinheiro qatari para a Fraternidade Muçulmana na Síria. Foi outro duro golpe, demolidor, contra os rebeldes sírios.

Na Turquia, o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan passou também a enfrentar significativa oposição interna. O apoio dos turcos aos rebeldes na Síria também começou a diminuir, sobretudo depois de ações, dos rebeldes sírios, dentro da Turquia.

Mais ou menos ao mesmo tempo, surgiram fortes indicações de que os autores do mortal ataque com armas químicas em Ghouta, próximo de Damasco, dia 21/8 foram islamistas radicais sírios apoiados pela Arábia Saudita. As potências ocidentais e grande parte das empresas de mídia, televisões e jornais, muito se empenharam para tornar Assad responsável pelo ataque, na tentativa de fazer aumentar o apoio a um ataque militar de EUA-OTAN contra a Síria. A mão clandestina da inteligência saudita e do espião chefe dos sauditas, o príncipe Bandar bin Sultan foi identificada, não só no ataque em Ghouta, mas também em outros ataques químicos semelhantes, sempre em ações de rebeldes salafistas financiados e armados pelos sauditas, tanto na Síria como no Iraque.

Com notícias cada vez mais frequentes vindas dos fronts da guerra civil, sobre ataques violentíssimos de autoria de radicais salafistas do grupo Jabhat al Nusra, de Takfiris, da Al-Qaeda, do ISIL/ISIS (Islamic State in Iraq and the Levant/al-Sham (ISIL/ISIS), contra minorias alawitas, cristãs, curdas, druzas e xiitas na Síria, entre as quais notícias que mostravam grupos de milícias financiadas pelo ocidente devorando órgãos dos cadáveres de suas vítimas, até as potências ocidentais passaram a considerar mais prudente suspender o fornecimento de armamento aos ‘rebeldes’. O grande influxo de mercenários pró-rebeldes em direção à Síria, saídos da França, Grã-Bretanha, EUA, Canadá, Bélgica, Espanha, Suécia e Alemanha também alarmaram os países ocidentais. O medo, então, já era de que, se esses cidadãos europeus fossem vitoriosos no ataque contra a Síria, poderiam voltar suas atenções para a Europa e os EUA, em ataques semelhantes aos da Al-Qaeda contra o ocidente, depois de os Talibã terem-se implantado como governo no Afeganistão.

Elementos do Exército Sírio Livre pró-ocidente passaram a engajar-se em duros combates contra os salafistas financiados pela Arábia Saudita e contra forças da Fraternidade Muçulmana. Enquanto os rebeldes devoravam-se entre eles mesmos, as forças de Assad conseguiram retomar posições e o controle em grandes partes do território, exceto algumas áreas próximas da fronteira turca e alguns bolsões em torno de Damasco e outras cidades sírias.

O fracasso dos EUA, que não puderam atacar a Síria, combinado ao movimento de ‘aproximação’ de Washington em direção ao Irã, e a abertura de conversações bilaterais entre os dois países também fizeram esfriar as relações entre Washington e a Arábia Saudita. O príncipe Bandar deixou de ser visto em Washington como parceiro confiável, sobretudo depois que propôs ao presidente Putin ‘impedir’ ataques terroristas dos salafistas e da Al-Qaeda contra os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, em troca de a Rússia suspender o apoio a Assad. Moscou rejeitou a ‘proposta’ de Bandar.

Dado que a posição de Assad em campo n Síria é muito mais forte hoje do que há um ano, o Conselho Nacional Sírio tem falado de não participar da Conferência Genebra-2. Para alguns membros do CNS, essas ameaças seriam meio para fazer aumentar a pressão ocidental a favor de Assad ser obrigado a deixar o governo. E, por sua vez, o ocidente tem rejeitado essa frente rejeicionista e instado que participem das conversações de Genebra-2. Mas o ocidente, por sua vez, não aceita a possibilidade de Assad permanecer ativo num governo de transição; e não quer que o Irã participe das conversações.

Apesar disso, o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon já convidou o Irã para a Conferência Genebra-2; e o Irã já aceitou.

É perfeitamente claro que Assad, antes de Genebra-2, está em sua posição mais forte desde a eclosão da rebelião síria. Os rebeldes aceitaram um cessar-fogo em Aleppo e uma troca de prisioneiros com Damasco. Há um ano, os ‘rebeldes’ teriam rejeitado, sem maiores considerações, esse tipo de acordo com o governo de Assad.

Na semana antes do início das conversações de 22 de janeiro, quem pilota o carro da chamada Conferência Genebra-2 é sem dúvida o presidente Assad.

Diferente do que os EUA e outras potências ocidentais desejam, o presidente Assad continuará a ter papel dominante na vida política síria. Não por milagre, mas por sua capacidade para resistir e pelo total colapso da coalizão que se construiu contra ele. *****

[1] http://www.strategic-culture.org/news/2014/01/20/geneva-2-keeping-iran-away-matches-us-saudi-interests.html

Publicado em 21/1/2014, Wayne MADSEN, Strategic Culture
http://www.strategic-culture.org/news/2014/01/21/who-is-in-the-driver-seat-before-geneva-ii.html

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu