Cubanos chegam e já diagnosticam a doença do Brasil
Eles desembarcaram há apenas quatro dias.
Ainda nem começaram a trabalhar. Mas alguma coisa de essencial já foi diagnosticada entre nós, apenas com a sua presença.
Uma foto estampada na Folha de S. Paulo desta 3ª feira sintetiza a radiografia que essa visita adicionou ao diagnóstico da doença brasileira.
Um médico negro avança altivo pelo corredor polonês que espreme a sua passagem na chegada a Fortaleza, 2ª feira.
O funil do constrangimento é formado por jovens de jaleco da mesma cor alva da pele.
Uivam, vaiam, ofendem o recém-chegado.
Recitam um texto inoculado diuturnamente em sua mente pelas cantanhêdes, os gasparis e assemelhados.
Centuriões de um conservadorismo rasteiro, mas incessante.
É força de justiça creditar a esse pelotão a paternidade da linhagem, capaz de cometer o que a foto cristalizou para a memória destes tempos.
“Escravo!” “Escravo!” “Escravo!”.
Ecoa a falange cevada no pastejo da semi-informação, do preconceito e das tardes em shopping center.
Foi programada para cumprir esse papel, entre outros, de consequências até mais letais para a democracia e a civilização entre nós.
Um desembarque que em outros países seria motivo de festas, homenagens e bandas de música.
Aqui é emoldurado pelo espetáculo deprimente de uma classe média desprovida de discernimento sobre o país em que vive, o mundo que a cerca e as urgências da sociedade que lhe custeou o estudo.
Para que agora sabotasse a assistência cubana aos seus segmentos mais vulneráveis, aos quais ela se recusa a atender.
Os alvos da fúria deixaram família, rotinas e camaradagem para morar e socorrer habitantes de localidades das quais nunca ouviram falar.
Mas que a maioria dos brasileiros também sequer desconfia que existam.
Com o agravante de que ali talvez jamais pousem seus pés. Coisa que os cubanos farão. Por três anos.
E que graças a eles, agora saberemos que existem.
Se o governo for safo – espera-se que seja – fará do Mais Médico uma ponte de conexão de nós com nós mesmos.
O futuro da democracia agradecerá.
Os pilares dessa ponte, de qualquer forma, são os que transitam agora altivos diante da recepção que indigna o Brasil aos olhos do mundo.
Perfis médicos ainda improváveis entre nós, apesar do Prouni e das cotas satanizadas pela mesma cepa mental adestrada em compor corredores e funis.
Nem sempre físicos, como agora.
Mas permanentemente intolerantes, na defesa da exclusão e do privilégio.
Formados em uma ilha do Caribe desguarnecida de recursos, por uma escola de medicina que contorna a tecnologia cara, apurando a excelência do exame clínico – aquele em que o médico demora uma hora ou mais com o paciente, rastreando o seu metabolismo – eles passarão a cuidar da gente brasileira pobre e anônima.
Campos Alegres de Lourdes, Mansidão, Carinhanha, beira do São Francisco, Cocos, Sítio do Quinto, Souto Soares… Quem conhece esse Brasil?
É para lá que eles vão. E para mais 3.500 outras localidades.
Um Brasil esquecido, em muitos casos, mantido na soleira da porta, do lado de fora do mercado e da cidadania.
Que sempre esteve aí. Mas que agora, pasmem, terá um sujeito interessado em ouvir o que sua gente tem a dizer, esforçando-se por entender pronúncias que até nós, os locais, muitas vezes teríamos dificuldade de discernir.
O ‘doutor de Cuba’ de fala estrangeira e jeito parecido com a gente vai examinar, apalpar dores, curar vermes, prescrever cuidados, encaminhar cirurgias, ouvir e confortar.
Com remédios, atenção e esperança.
Houve um tempo em que essas expedições a um Brasil distante do mar eram feitas por brasileiros, e de classe média.
Protagonistas de um relato épico, de nacionalismo não raro ingênuo. Mas que aproximava e treinava o olhar do país sobre ele mesmo.
Coisa que a hiper-conexão disponível agora poderia fazer até melhor.
Não fosse a determinação superior de afastar e dissimular, o que muitas vezes se alcança destacando o pitoresco.
Em detrimento do principal: as questões do nosso tempo, do nosso desenvolvimento, as escolhas que elas nos cobram. E os interesses que as bloqueiam.
Tivemos a Coluna Prestes, nos anos 20.
Os irmãos Villas Boas, apoiados por malucos como Darcy Ribeiro e entusiastas como Antonio Calado, fizeram isso nos anos 40/50 e início dos 60, quando foi criado o Parque Nacional do Xingu.
Trouxeram a boca do sertão para mais perto do olhar litorâneo e urbano.
Desbastavam distancias a facão.
Na raça, traziam horizontes, aproximavam rios, tribos, desafios e, de alguma forma, semeavam um espírito de pertencimento a algo maior que a linha do mar e a calçada de Copacabana.
A utopia geográfica, se por um lado borrava os conflitos de classe, ao mesmo tempo colidia com o país real que os esperava em cada socavão, de trincas sociais, fundiárias, étnicas e econômicas avessas à neblina da glamorização.
Paschoal Carlos Magno, a UNE e o CPC, o Centro Popular de Cultura, fariam o mesmo nos anos 60, antes do golpe militar.
As famosas ‘Caravanas do CPC’ rasgaram o mapa do sertão, a exemplo do que fizeram as Caravanas da Cidadania, de Lula, nos anos 80.
Desceriam o São Francisco nas gaiolas lendárias para garimpar e irradiar a cultura popular em lugares onde agora, possivelmente, um doutor cubano irá se instalar.
Caso de Carinhanha, um dos mais belos entardeceres do São Francisco.
Onde foi que a seta do tempo se quebrou?
Por que já não seduz a grande aventura de nossa própria construção terceirizada, por décadas, aos mercados autoregulados?
Uma leitora de Carta Maior, Odette Carvalho de Lima Seabra, resume em comentário enviado ao site o núcleo duro do problema.
“ A geração dos nossos jovens doutores”, escreve, “ jamais compreenderá de que se trata. Foram criados nos shopping centers. A escola secundária limitadíssima no seu alcance humanístico os fez também vítimas sem que o saibam que são. Uma revolução que durou vinte anos e cujo sentido era o de esvaziar de sentido a vida de todos nós deixou no seu rescaldo, esse bando de jovens, como são os nossos doutores, muito alienados. É tempo de aprender com os cubanos”, conclui Odette.
Colocado nos seus devidos termos, o impasse readquire a clareza histórica de que se ressente a busca de soluções.
Entre indignado e estupefato, o conservadorismo nega aos visitantes cubanos outra referência de exercício da medicina que não a dos valores argentários.
Ética médica, solidariedade, internacionalismo e humanismo formam uma constelação incompreensível a quem divide o mundo entre consumidores e escravos.
À esquerda, no entanto, cabe também evitar simplificações.
Se quiser enxergar a real abrangência das tarefas em curso, é preciso admitir que não estamos diante de uma batalha entre anjos e demônios.
Os médicos do Caribe não nascem bonzinhos. Tampouco endemoninhados, os dos trópicos.
Eles são formados assim. Por instituições.
A escola, por certo, mas a mídia, sem dúvida, que a completa pelo resto da vida.
É vital que o governo, lideranças sociais e os intelectuais compreendam o fundamental em jogo.
Se quisermos colher frutos duradouros com o ‘Mais Médicos’, o passo seguinte do programa terá que ser a reforma universitária brasileira.
Que reaproxime universidade e a juventude das grandes tarefas coletivas do nosso tempo.
As diferenças entre a formação do cubano hostilizado na chegada a Fortaleza, e aqueles que o ofendiam não são apenas de ordem técnica.
Mas, sobretudo, de discernimento diante do mundo.
A ponto de um não achar estranho sair de seu país para ajudar um outro.
Nem considerar despropositado que parte de seu ganho se transforme em fundo público de reinvestimento.
O oposto das convicções dos que o agraciavam com o corolário de sua própria servidão.
Esse talvez seja o aspecto mais chocante da visita que acaba de chegar.
E, sobretudo, o mais instrutivo.
Ela escancara a doença social que corrói o nosso metabolismo. E adverte para as limitações que irradia.
Na sociedade que estamos construindo.
Na mentalidade que vai se sedimentando. No risco que ela incide sobre o todo.
Para que o ‘Mais Médicos’ um dia possa ser dispensável, o Brasil precisa se tornar ele próprio um grande ‘Mais Solidariedade’.
Como faz Cuba desde 1959, com todos os seus erros, acertos e percalços.
Postado às 05:15 em Carta Maior