A impressão que se tem é que nem mesmo os economistas mais ortodoxos, aqueles que consideram o sacrossanto “mercado” como um infalível guia orientador de suas análises, se opõem à evidência da natureza financeira e da falta de controle da atual crise por que passa o capitalismo em todo o planeta. Afinal, a realidade grita mais forte, escancara as dificuldades e supera a fragilidade dos pressupostos ideológicos conservadores.

O processo crescente de financeirização das atividades econômicas começou a apresentar as suas faturas perversas do apoio incondicional que recebeu de economistas, analistas, gestores do mercado financeiro, integrantes dos organismos multilaterais e governantes pelo mundo afora. Durante pelo menos 3 décadas todos assistiram passivamente, quando não contribuíam ativamente, ao crescimento desproporcional da dimensão financeira em relação à economia real, ou seja, a produção de bens e serviços.

Hegemonia conservadora e expectativas (ir) racionais

A afirmação dos princípios do chamado Consenso de Washington, no final dos anos 1980, vinha consolidar a supremacia hegemônica das idéias da ortodoxia econômica no interior e junto aos dirigentes dos principais organismos multilaterais, como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), entre tantos outros. As propostas e os instrumentos de análise estavam na base da constituição do arcabouço teórico daquilo que veio a ficar conhecido como “neoliberalismo”.

O cenário internacional apontava para um aprofundamento do processo de trocas na esfera internacional, com o fortalecimento do processo de globalização ou mundialização. A maior parte dos governos do mundo e os dirigentes de instituições como a União Européia, a Organização Mundial para o Comércio (OMC) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) estavam em sintonia a respeito de como se comportar em matéria econômica. Tratava-se da implementação da estratégia de reduzir o papel dos Estados na economia e de propugnar pela desregulamentação desse tipo de atividade. Em termos concretos, isso significou um vasto processo privatização de empresas estatais em todos os continentes e a liberalização de amplos setores para a chamada “livre ação das forças de mercado” pelo mundo afora.

Um dos principais pressupostos a embasar tais propostas era a noção de “expectativas racionais”. Assim, imaginava-se que o comportamento dos agentes econômicos estivesse assentado na racionalidade do ser humano e que o equilíbrio das forças de oferta e demanda sempre levaria ao melhor resultado possível para toda a sociedade. Afinal, as expectativas em relação ao futuro seriam racionais, como seria o comportamento daqueles indivíduos (e instituições) que tomavam as decisões – em casa, na empresa, na cidade, no país ou no mundo. A crença era tão forte que chegou mesmo a se constituir em algo próximo a uma corrente de pensamento econômico. Triste ilusão! Assim como sempre acontecera antes na história da humanidade, as crises demonstraram mais uma vez que a lógica de acumulação do capital não apresentava nada de “racionalidade”, mas tão somente a busca da geração e apropriação do excedente de forma privada. E pouco importava as conseqüências colaterais decorrentes da busca de tal resultado. A lógica que prevalece, como sempre, é a do capital e não a do social.

Autonomia da esfera financeira

Assim, o resultado da livre ação das forças de mercado não significava melhoria das condições da maioria da população e nem mesmo a garantia de crescimento ou desenvolvimento econômicos. Não apenas as atividades de produção de bens e serviços passavam a ficar menos sujeitas a regulação e fiscalização, como assistiu-se mesmo a um verdadeiro “boom” de crescimento das atividades de natureza puramente financeira, inclusive em escala internacional. Os bancos, as bolsas de valores, os mercados de capitais, os mercados de operações futuras (derivativos), os mercados de “commodities”, os mercados de compra e venda de divisas internacionais, enfim o conjunto da dimensão financeira da dinâmica capitalista ganha cada vez mais destaque e relevância.

Um dos problemas gerados por tal autonomização da esfera financeira em relação ao setor real é o surgimento de crises de natureza distinta daquelas que o capitalismo estava habituado a conviver. Não se trata mais das tradicionais e conhecidas crises de superprodução ou de escassez de demanda. A partir da generalização dos processos de financeirização, a dinâmica de geração de patrimônio e de riqueza capitalistas passa a ocorrer de forma absolutamente descolada da produção de bens e serviços. Tudo se passa como se o capital fosse multiplicado a partir de bases inexistentes.

Vejamos de perto casos bem concretos para facilitar a compreensão desse fenômeno tão complexo. A título de ilustração, consideremos os seguintes processos: i) a produção de um bem agrícola, por exemplo o milho; e ii) a construção de um imóvel residencial.

Efeitos perversos no caso agrícola

A produção agrícola mundial tem experimentado um grande salto ao longo das últimas décadas, com ampliação da oferta de crédito e incorporação de inovações tecnológicas. Tal fenômeno tem ocorrido em especial na área dos produtos chamados de “commodities”, que apresentam possibilidade de comercialização e de estoque em todo o planeta. Assim, o processo de produção de milho envolve um conjunto enorme de agentes econômicos e produtos financeiros, que ultrapassam em muito o valor da produção agrícola “stricto sensu”. Em tese não se trata de algo necessariamente negativo, mas apenas é fruto do processo de divisão internacional do trabalho e da especialização das atividades no mundo contemporâneo.

Aqui eu me refiro a itens como insumos presentes na produção (água, fertilizantes, sementes, maquinário, etc) e outros elementos como transportes, estocagem, seguro e custo do financiamento. Dessa forma, só aqui nessa pequena lista de itens paralelos, pode-se perceber que a participação do produtor agrícola no valor agregado final da mercadoria a ser comercializada é cada vez mais reduzida.

No entanto, a necessidade que o capitalismo enfrenta de sempre criar novas oportunidades de acumulação de capital terminou por ampliar as alternativas de ganho financeiro associado de forma indireta à atividade agrícola, mas completamente descoladas da mesma. Trata-se aqui das operações de mercado futuro das “commodities”. Os grandes operadores do mercado financeiro constituem verdadeiros balcões de negócio, em que se aposta – literalmente – a respeito dos preços dos bens agrícolas no futuro. Com isso, cria-se um mercado secundário e de risco para esse tipo de produto – por exemplo, o milho aqui considerado. Qual a sua opinião a respeito da tonelada de milho para safra de 2014? Não se preocupe, pois com certeza já existe uma cotação para tal especulação e isso termina por influenciar as condições do mercado presente, atual. Os grandes operadores desse tipo de mercado financeiro acabam por determinar ao ganhos e/ou perdas dos produtores agrícolas.

Apenas para se ter uma noção de ordem de grandeza, a relação entre o valor da produção real mundial e o valor de títulos financeiros do mercado de derivativos é de 1:10. Ou seja, há dez vezes mais papéis sem lastro algum – pura especulação em embalagem de sofisticação tecnológica – em relação ao produto da economia concreta. Ora, não há modelo que seja sustentável no longo prazo com tal disparidade ente a produção e a especulação.

Financeirização e crise dos imóveis

No caso da construção de um imóvel, as relações entre o mundo real e a economia virtual são de natureza distinta. Em geral, as deformações têm início no processo de financiamento das construções. São bens de valor relativamente elevado para o padrão de renda da maioria das famílias. Em razão disso, o sistema financeiro é obrigado a constituir mecanismos para a concessão de crédito imobiliário de longo prazo, capaz de oferecer prestações e condições compatíveis para os interessados. Os casos mais freqüentes são os de hipotecas de 2, 3 ou mais décadas. No caso brasileiro, utiliza-se como lastro para esse tipo de empréstimo os mecanismos de poupança compulsória (como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS) ou o sistema da caderneta de poupança.

Em termos gerais, nos momentos de expansão do crédito há uma tendência inerente ao sistema de constituição das chamadas “bolhas de preços”. O sistema todo passa a operar como que inflacionando os preços dos imóveis: existe crédito suficiente, há aumento de demanda, as empresas construtoras atendem pelo lado da oferta. Assim, as condições parecem ideais para um salto à frente. Para aqueles que estão operando no dia-a-dia desse tipo de mercado, tudo parece normal. Mas basta um mínimo de distanciamento para se perceber que ele está completamente deslocado dos preços da economia real.

Os primeiros sinais de crise começam a surgir nos momentos da chamada “realização” dos ganhos. As expectativas com relação ao passado começam a não mais se realizar, tal como pretendido pelos agentes intervenientes no mercado. As empresas não cumprem com as promessas de entrega dos imóveis, os compradores começam a ter problemas para fazer face às obrigações financeiras dos empréstimos contraídos. Os preços elevados de compra e venda revelam-se estar em um verdadeiro mundo da fantasia. Como os tomadores de empréstimos não tinham condições de renda para assegurar as condições dos contratos em horizontes de várias décadas, as instituições financeiras criaram mecanismos de repasse do risco de não-pagamento das hipotecas. São os mercados derivativos de risco de inadimplência, onde os agentes apostam na maior ou menor especulação quanto às hipóteses dos contratos serem ou não honrados.

Há instituições financeiras de segunda linha especializada na comercialização desse tipo de “ativo tóxico”. Em seu conjunto, o sistema opera como as conhecidas “pirâmides da alegria” – na verdade, de ilusão e fantasia. Enquanto tudo está em movimento, tem-se a falsa sensação de normalidade. Porém, quando há uma primeira falha e não se consegue cumprir o prometido, está criado um efeito dominó e tudo passa a se desfazer como um castelo de cartas. O devedor não consegue pagar a prestação. O banco exige o imóvel dado em garantia. As instituições que ficavam com o risco não têm como repassá-lo à frente. Rapidamente aumenta a oferta de imóveis para venda e os preços vão lá para baixo.
Quem consegue vender, dá-se conta que o valor obtido na operação é muito menor do que o constante no contrato de empréstimo contraído. O mundo real se impõe ao da especulação artificial. A crise está escancarada.

Taxa Tobin e maior regulação do capital financeiro

Esses são apenas alguns dos inúmeros efeitos perversos provocados pela excessiva financeirização da economia e pela falta de controle e regulação dos Estados sobre os agentes que operam nessa dimensão. Assim, o que se faz necessário é reforçar as instituições e as regras de fiscalização na área financeira no interior dos países, inclusive criando mecanismos de controle da governança global sobre as atividades especulativas no plano internacional. A implementação de um tributo a incidir sobre as transações financeiras internacionais – a Taxa Tobin – certamente viria a contribuir para tal mudança comportamental. É urgente a adoção de medidas de maior controle sobre a incrível mulitplicidade de operações financeiras que comprometem o equilíbrio das contas internacionais e que demonstraram a capacidade de prejudicar seriamente a economia real em todo o planeta.

 

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Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Fonte: Carta Maior