Centenário dos 18 do Forte de Copacabana: o levante derrotado que marcou a história brasileira por décadas
A eclosão da Revolta do Forte de Copacabana, em 5 de julho de 1922, reverbera cem anos depois, em que os militares voltam a ocupar papel político controverso.
Artigo de Altair Freitas
O mês de julho deste ano marca o centenário do início do Movimento Tenentista, a partir da eclosão da Revolta do Forte de Copacabana, em 5 de julho de 1922, episódio que ficou mais conhecido como a Revolta dos 18 do Forte, cuja iconografia, relatos e estudos, atravessaram gerações nestes cem anos, especialmente as imagens que mostram uma parte dos revoltosos saindo do famoso Forte para enfrentar de peito aberto as tropas legalistas mobilizadas pelo Ministro da Guerra, o historiador e civil Pandiá Calógeras, a serviço do presidente Epitácio Pessoa.
Longe de ser um “raio em céu azul”, o levante de Copacabana estava diretamente ligado às enormes contradições da sociedade e da política brasileira, dominada pelas oligarquias rurais, especialmente a oligarquia cafeeira de São Paulo, que implantaram no Brasil uma república de corte liberal, com baixíssima atuação do Estado Nacional em prol da maioria da população, com um federalismo particularmente voltado para atender aos interesses das oligarquias rurais estaduais e com uma enorme concentração da política exatamente nas mãos desses oligarcas, com quase nenhum espaço democrático para as demais classes e com uma população, seja no campo ou nas cidades, sem direitos sociais, trabalhistas, vivendo em pobreza intensa. De modo mais direto, a revolta de 1922 e as que se seguiram na sua esteira, guardavam ainda enormes contradições na relação entre o exército brasileiro e os diversos governos da época que pouca atenção davam à necessária e demandada modernização das tropas, remontando ainda ao governo do presidente Hermes da Fonseca (1910-1914), que tentou intervir diretamente nos estados para afastar as oligarquias rurais que a ele se opunham. Hermes da Fonseca, então presidente do Clube militar, foi o comandante oculto do levante de 1922.
A revolta em si durou três dias principalmente porque as articulações feitas pelos comandantes pra sublevar outras unidades militares do Rio de Janeiro, então a capital da república, fracassaram em função da rápida ação do governo que trocou diversos comandantes dos quartéis, dias antes da revolta começar. Factualmente falando, o Forte de Copacabana, comandado pelo capitão Euclides Hermes da Fonseca, filho de Hermes da Fonseca, deflagrou o levante abrindo uma salva de tiros, a senha para que outros quarteis aderissem ao movimento. Sem a adesão esperada, o Forte foi cercado e pesadamente bombardeado por tropas do exército em terra e pela marinha. O capitão Hermes foi preso ao tentar negociar com o ministro Calógeras no Palácio do Catete. O comando da revolta passou para o tenente Siqueira Campos, que bombardeou os quartéis generais do exército e da marinha, o Forte do Leme e o Depósito Naval, que registrou quatro mortes.
Diante do fracasso imediato da revolta, no dia 6 de julho, o tenente Siqueira Campos toma a decisão que entraria para a História: o Forte não bombardearia mais a cidade do Rio de Janeiro e seus homens não seriam rendidos dentro das suas paredes, o que implicava em saírem em campo aberto, em marcha, para combater as tropas legalistas. Os números são contraditórios, mas cerca de 28 homens, entre oficiais e praças, saíram do Forte rumo ao Palácio do Catete, ainda na esperança de não serem confrontados por seus pares. A maioria debandou ou foi capturada durante o trajeto pela Avenida Atlântica. Aos revoltosos juntou-se o civil Otávio Correia, amigo de Siqueira Campos. O ato final da revolta foi o tiroteio entre os revoltosos e as tropas leais, que resultaram na morte de 16 dos últimos combatentes, sendo 15 militares e o civil Otávio Correia. Os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes, gravemente feridos, foram capturados e sobreviveram. E voltariam a fazer parte da história, anos depois.
O heroísmo daqueles jovens oficiais, dispostos a honrar o hino nacional na sua frase mais impactante “verás que um filho teu não foge à luta” está eternizado no imaginário popular e nos inúmeros estudos historiográficos sobre o Movimento Tenentista. Contudo, para bem além dos acontecimentos daquele Julho de 1922, estão algumas questões que merecem ser avaliadas de modo mais profundo, elementos que são recorrentes no desenvolvimento da história brasileira, de antes daquele acontecimento e bem depois dele, com repercussões até os dias de hoje:
- É impossível analisar a história brasileira sem levar muito em conta o papel das Forças Armadas, com ênfase nas ações do Exército, especialmente no que diz respeito às diversas intervenções militares na política nacional desde 1922. Do jovem e precário exército imperial sob o comando de Pedro I, nas lutas pela independência entre 1822 e 23, o fechamento da Constituinte em 1824 sob as ordens do imperador, a abdicação do próprio Pedro em 1831, passando pela Guerra do Paraguai e suas profundas conexões com a Proclamação da República em 1889, o país vivenciou a estruturação técnica e ideológica de uma tropa profundamente atuante nos acontecimentos chaves da nossa vida política. Há quem diga, e eu concordo com a linha mais geral desse pensamento, que as Forças Armadas, em especial o Exército, formaram com o tempo uma espécie de “partido político” cuja atuação acompanha os fluxos e refluxos das lutas populares, geralmente contra essas lutas. Um “partido” não unido, com inúmeras disputas e contradições internas, muitas vezes violentas, mas que se tornou um ente permanente nas disputas políticas brasileiras;
- Longe de ter sido a primeira intervenção militar na política nacional, entretanto, o levante do Forte de Copacabana abriu uma nova e duradoura página nessa história, que se estenderia até o golpe de 1964 (logo, até o fim da ditadura em janeiro de 1985). Num primeiro momento, o movimento tenentista representou uma ruptura intensa entre parte da jovem oficialidade do exército e o oficialato de alta patente. Muitos são os motivos e não há espaço aqui para dissecá-los. No entanto, é fundamental registrar que, de modo geral, o “programa político” do Tenentismo era progressista, de rompimento com as oligarquias rurais que comandavam o Brasil desde a Independência, ainda que seus principais comandantes olhassem para o povo e para os civis em geral com um certo grau de desprezo e desconfiança. Na sua esteira direta, vieram a “Revolução Paulista de 1924” que resultou na formação da épica “Coluna Prestes/Miguel Costa” (1924-1927), o golpe militar de 1930 contra o presidente Washington Luís, que resultou na “Revolução de 30” liderada por Getúlio Vargas e no apoio fundamental a Getúlio quando da guerra civil com os paulistas em 1932. Setores do tenentismo, em especial sob a liderança de Luís Carlos Prestes, que havia aderido ao comunismo, se rebelaram contra Getúlio em 1935, na insurreição armada da Aliança Nacional Libertadora, que contou com apoio e participação do Partido Comunista do Brasil;
- A adesão de Prestes ao Partido Comunista do Brasil, consolidou um cisão no tenentismo, cujas raízes remontavam à Revolução de 30, quando o “Cavaleiro da Esperança” rejeitou o comando militar do movimento e a aliança com Getúlio Vargas. Conforme o próprio Prestes declarou mais tarde, nos anos da Coluna, ele percebeu que o Brasil precisava de uma revolução muito mais profunda do que preconizava o Tenentismo. Essa cisão teve desdobramentos profundos no seio das Forças Armadas, novamente com ênfase no exército. A partir de 1935, antigas lideranças do Tenentismo estiveram em campos opostos e confrontaram-se em diversos momentos. Boa parte aderiu ao nacionalismo de corte varguista; outra parte enveredou para o apoio ao nazifascismo, então em ascensão na Europa, geralmente compondo-se politicamente com o governo de Getúlio, em especial no apoio à implantação da ditadura do Estado Novo (1937-1945), enquanto um outro setor seguiu na esteira de Prestes e do então PCB. Para a historiadora Marly Viana, por exemplo, a Insurreição da ANL foi o último levante tenentista, mesmo tendo contado com apoio direto do PCB e da Internacional Comunista;
- Esse processo teria um desfecho histórico mais profundo com o golpe militar de 1964, cujo ensaio geral havia ocorrido na enorme crise política que resultou no suicídio de Getúlio em agosto de 1954, e que teve na Força Aérea e no Exército, dois instrumentos fundamentais de desestabilização ao seu governo. Basta dizer que as diversas contradições políticas no seio das Forças Armadas que foram se acumulando desde a década de 20, foram violentamente “solucionadas” com a vitória da extrema direita militar, a bordo da sua aliança com a classe dominante brasileira e o imperialismo, em plena Guerra Fria. Conforme os dados históricos disponíveis, mais de seis mil militares foram diretamente afetados pelo golpe de 64, entre prisões, assassinatos, exílios, expulsões e cerceamentos diversos para a evolução nas carreiras, conforme apontou relatório da Comissão Nacional da Verdade que analisou os crimes cometidos pela ditadura de 64. Muitas das lideranças militares de proeminência na vida política brasileira entre as décadas de 30, 40, 50 e 60, haviam participado do Tenentismo nos anos 20.
O centenário dos 18 do Forte, portanto, merece da nossa parte, não apenas a lembrança de um episódio épico em si, de forte impacto à época, mas, acima de tudo, o estudo profundo sobre suas conexões com o passado e suas enormes influências para as décadas que se seguiram. E ouso dizer: num momento no qual setores das Forças Armadas voltam a pairar sobre a política brasileira aliando-se ao nefasto governo de Jair Bolsonaro, buscar compreender a evolução da presença política do militarismo no Brasil nos ajuda muito a compreender aspectos relevantes do nosso presente.