Uma das autoras, ao lado de Ana Carneiro, do livro Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962-1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos, a jornalista e antropóloga Marta Cioccari espera que a obra produzida possa servir de consulta para os integrantes da recém-criada Comissão da Verdade que vai analisar os casos de violação dos direitos humanos ocorridos entre 1946 e 1985.

O livro tem como ponto de partida uma série de pesquisas desenvolvidas em todo o País dentro do projeto Memórias Camponesas e foi enriquecido por dezenas de entrevistas e material de arquivo da época. Acima de tudo, acabou por se transformar em um dos poucos “documentos” sobre o tema, já que os registros da violência contra os camponeses, em um ambiente onde a própria denúncia representava um risco, são bastante escassos.

Carta Maior – Por não haver um registro tão forte quando os fatos ocorridos nas zonas urbanas, a realidade da repressão política no campo é ainda mais cruel no que se relaciona à ausência da memória e da verdade?

Marta Cioccari – Com certeza. Todos os relatos que nós percorremos mostram que a questão do anonimato contribui em grande parte para a impunidade desses crimes. A própria intimidação para que houvesse um silenciamento. Esses casos, que continuam ocorrendo no campo, mas que ocorreram de maneira mais intensa em décadas anteriores, com torturas privadas e públicas, ameaças de morte e assassinatos, sempre eram acobertados, numa naturalização de que a violência fazia parte da ação no campo. Era considerado não só parte do cenário das relações de dominação, mas também onde a própria denúncia gerava um risco. Talvez atravessar esse risco seja uma das configurações que a gente possa mudar. É um risco que permanece.

Carta Maior – Pois é, uma das questões que os militantes dos direitos humanos colocam sobre a necessidade de se garantir o direito à memória e à verdade é que os diversos problemas que existem na atuação da polícia, hoje em dia, são decorrentes da cultura policial cultivada na época da ditadura. Os problemas de hoje nas relações no campo também podem ser atribuídos a uma herança daquele período?

Marta Cioccari – Sim. Algumas das pesquisas de gente como Moacir Palmeira, que desde o final dos anos 60 começou a pesquisar a questão do campesinato, mostram que a relação de violência no campo atravessa toda a história do Brasil – há uma relação de perpetuação da violência. Mas há, ao mesmo tempo, um agravamento dessas relações após o golpe de 64, onde é criada essa aliança entre proprietários e o Estado. Como diz Gregório Bezerra, em suas memórias, passou a haver um “terrorismo de Estado”. Essas relações serviram para acobertar a participação também das forças armadas e de milícias privadas contratadas pelos latifundiários e muitas vezes compostas também pelos profissionais das forças armadas. Ou seja, muitos desses membros eram treinados com recursos do poder público.

Carta Maior – Quais as suas expectativas pessoais sobre os resultados que podem ser atingidos pela Comissão da Verdade?

Marta Cioccari – Esse Governo tem a obrigação de fazer justiça a milhares de brasileiros e brasileiras que sofreram talvez as coisas mais atrozes e mais terríveis que um país pode atravessar. Quando se conta para estrangeiros o processo político no Brasil, como em uma aula em que estávamos, essa semana, no Museu Nacional, onde falávamos das memórias de Gregório Bezerra e havia vários alunos estrangeiros, é inimaginável que isso tenha ocorrido em um País que se considera democrático.

E que, mesmo nos anos mais recentes, esse seja um processo que ainda vem atravessando muitos desafios.

Recuperar essas histórias, fazer justiça a esses trabalhadores, mas também esse reconhecimento político por parte do estado, é um papel fundamental no sentido de transformar as relações de produção nas cidades e no campo, que são ainda extremamente atrasadas.

Esse processo nas cidades pode acontecer até de forma mais rápida, em comparação às localidades mais desenvolvidas, mas nós ainda temos rincões no Brasil, que não são pequenos, em que essas relações não são exceções à regra.

Fonte: Carta Maior